Direito à alimentação e constitucionalização do direito civil - personalização dos direitos fundamentais

14/06/2021 às 15:05
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O presente trabalho tem o intuito de abordar sobre como o direito à alimentação se apresenta no cenário de constitucionalização do direito civil, no Brasil, e de que forma ocorre a sua proteção através da aplicação dos direitos fundamentais.

INTRODUÇÃO

    A Constituição Federativa do Brasil tem como pilares os princípios e direitos fundamentais. Dessa forma, a constitucionalização do direito civil tem se mostrado indispensável para garantir a eficácia dos direitos fundamentais no âmbito privado, inclusive o direito fundamental à alimentação. Isso ocorre porque é permitida a interpretação do direito privado conforme a Constituição, com vistas a garantir a promoção dos direitos fundamentais nas relações privadas. Dessa forma, é conferida maior proteção ao direito à alimentação, que pode ser garantido através da utilização de princípios constitucionais, como o da dignidade da pessoa humana, e através do seu artigo 6º, que dispõe sobre tão importante direito.

    O objetivo do trabalho é, portanto, investigar as relações presentes entre a Constituição do Brasil e o Código Civil de 2002, apurando de que forma a eficácia dos direitos fundamentais da esfera privada contribui para a promoção do direito à alimentação, e de que formas ele pode manifestar-se nessa área.

    Optou-se por dividir esse artigo em seis seções. A primeira, "A Constituição do Brasil e os Direitos Fundamentais", versa sobre a presença dos direitos fundamentais na Constituição, assim como se estruturam e de que forma são aplicados. A segunda, "Os Tratados Internacionais de Direitos Humanos", discorre sobre os tratados internacionais de direitos humanos alçados ao nível constitucional. A terceira, "O Direito à Alimentação", trata objetivamente do direito à alimentação presente no ordenamento jurídico brasileiro e nos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, bem como a relevância desse direito ao ser alçado ao nível constitucional, introduzido ao rol dos direitos fundamentais. A quarta, "O Direito à Alimentação e o Código Civil", discorre sobre a presença desse direito no Código Civil de 2002, e de que forma é protegido e aplicado nessa área. A quinta, " A Constitucionalização do Direito Civil", desenvolve a conceituação desse fenômeno e apresenta a sua importância para a proteção e aplicação dos direitos fundamentais. E, por fim, a última sessão, "A Constitucionalização do Direito Civil e o Direito à Alimentação", que discorre sobre a proteção desse direito através da aplicação da Constituição nas relações privadas e da interpretação dos dispostos civis baseados na Constituição, confirmando tal matéria através de decisões jurisprudenciais. 

1. A Constituição do Brasil e os Direitos Fundamentais

    A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 foi inspirada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU. Essa declaração, guiada pelos princípios revolucionários da Revolução Francesa, caracterizou um marco na universalização dos direitos do homem, pois trouxe consigo um rol de direitos humanos, válidos para qualquer pessoa, independentemente de sexo, religião, cor etc.

    É relevante a diferenciação entre direitos humanos e direitos fundamentais. Segundo Ingo Wolfgang Sarlet (2006, p.36) os direitos humanos são os direitos do homem no plano internacional, e os direitos fundamentais são os direitos do homem em um plano nacional, positivados nas constituições.

    A Constituição brasileira é uma das mais avançadas no tocante à proteção dos direitos fundamentais. Ela elenca uma série de princípios e regras, dentre os quais estão, notadamente, os direitos fundamentais, sendo estes os pilares da Constituição. No âmbito dos direitos fundamentais, é de suma importância estudar a distinção entre princípios e regras, visto que advêm diversos conflitos entre normas. Assim, para que haja a aplicação do Direito com clareza e segurança, é notadamente importante essa distinção.

    Segundo Robert Alexy (2015, p. 90), princípios jurídicos são mandamentos de otimização, através dos quais busca-se o cumprimento de deveres da melhor forma possível. Para Miguel Reale, (2001, p. 286) princípios são "enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para a sua aplicação e integração, quer para a elaboração de novas normas." A Constituição elenca uma série de princípios, no meio dos quais está o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CF), sobre o qual, Sarlet (2009, p. 94) discorre:

A dignidade da pessoa humana, na condição de valor fundamental atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais, exige e pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões. Assim, sem que se reconheçam à pessoa humana os direitos fundamentais que lhes são inerentes, em verdade estar-se-á negando-lhe a própria dignidade. 

   Assim, para que a dignidade da pessoa humana seja protegida, é necessário que os seus direitos fundamentais sejam reconhecidos. Sarlet (2009, p. 44) ainda discorre que "os direitos, liberdades e garantias pessoais e os direitos econômicos, sociais e culturais comuns têm a sua fonte ética na dignidade da pessoa, de todas as pessoas”.

    O Ministro Luís Roberto Barroso (2015, p. 241) diferencia princípios de regras, se referindo às regras como “comandos objetivos, prescrições que expressam diretamente um preceito, uma proibição ou uma permissão”. Nesse sentido, ou a regra é válida para um caso, e deve ser aplicada, ou não é válida, e em nada colabora para a solução da situação.

    Ainda sobre a importância da distinção entre princípios e regras, Barroso (2015, p. 243) nos elucida que:

[...] a Constituição abriga princípios que apontam em direções diversas, gerando tensões e eventuais colisões entre eles. Alguns exemplos: [...] a liberdade de expressão frequentemente interfere com o direito de privacidade. Como todos estes princípios têm o mesmo valor jurídico, o mesmo status hierárquico, a prevalência de um sobre outro não pode ser determinada em abstrato; somente à luz dos elementos do caso concreto será possível atribuir maior importância a um do que a outro. Ao contrário das regras, portanto, princípios não são aplicados na modalidade tudo ou nada, mas de acordo com a dimensão de peso que assumem na situação específica. Caberá ao intérprete proceder à ponderação dos princípios e fatos relevantes [...].

    Em virtude do grau de importância dos direitos fundamentais, especificados na Constituição como direitos e garantias individuais, eles são classificados como cláusulas pétreas, de acordo com o art. 60, parágrafo 4º da CF/88, ou seja, não podem ser abolidos. Nada obstante, os direitos fundamentais não se limitam ao artigo 5º da CF/88. Os direitos fundamentais também podem ser encontrados fora do catálogo expresso, nos tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil seja signatário e ao longo do texto constitucional, de acordo com o parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição. Ou seja, é possível a existência de outros direitos fundamentais além desses expressos pelo artigo 5º. A exemplo, Pedro Lenza(2016, p. 1.155)expõe decisão proferida pelo Ministro Sydney Sanches, que estabeleceu como cláusula pétrea a garantia constitucional prevista no artigo 150, III, "b": 

O relator, Ministro Sydney Sanches — medida cautelar, RTJ 150/68 —, no julgamento da ADI 939 -7/DF, entendeu tratar -se de cláusula pétrea a garantia constitucional prevista no art. 150, III, “b”, declarando que a EC n. 3/93, ao pretender subtraí-la da esfera protetiva dos destinatários da norma, estaria ferindo o limite material previsto no art. 60, § 4.º, IV, da CF/88.

    Sobre a eficácia das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, o artigo 5º, parágrafo 1º dispõe que estas possuem aplicação imediata, o que, de acordo com José Afonso da Silva (2008, p. 408), quer dizer que são “dotadas de todos os meios e elementos necessários à sua pronta incidência aos fatos, situações, condutas ou comportamentos que elas regulam”.

    Ainda segundo Silva (2008, p. 408), as normas definidoras de direitos sociais não gozam, habitualmente, dessa característica, pois são normas que necessitam de medidas para definirem sua eficácia e sua aplicação. Assim, tais normas citadas são, por vezes, de eficácia limitada e aplicabilidade indireta. Portanto, via de regra, são as normas que constituem os direitos fundamentais democráticos e individuais que possuem aplicabilidade imediata.

2. Os Tratados Internacionais de Direitos Humanos

    Primeiramente, faz-se necessária a definição de tratados internacionais. De acordo com Hildebrando Accioly, (1995, p.120) são "uma das fontes do Direito Internacional positivo e podem ser conceituados como todo acordo formal, firmado entre pessoas jurídicas de Direito Internacional Público, tendo por finalidade a produção de efeitos jurídicos”. Portanto, para executar determinados direitos e deveres, são formalizados acordos entre os Estados. A execução de tais tratados se restringe aos países a eles signatários e pressupõe o respeito por parte destes. Os tratados internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil é signatário, acrescentam uma série de direitos e garantias ao ordenamento jurídico brasileiro.

    A Emenda Constitucional nº 45/2004 – EC nº 45/04 inseriu no artigo 5º da Constituição o parágrafo 3º, alterando o processo de incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos. Assim, de acordo com o artigo 5º, parágrafo 3º da Carta Magna:

Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

     Tal modificação estabeleceu um quórum de votação desses tratados semelhante ao de emendas constitucionais. Assim, obedecidos tais critérios previstos no parágrafo 3º, os tratados internacionais de direitos humanos farão parte, materialmente, da Constituição. 

    Como já citado em tópico anterior, o parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição dispõe que os direitos fundamentais também podem ser encontrados em tratados internacionais dos quais o Brasil faça parte. Portanto, em conjunto com o artigo 5º, parágrafo 3º, os tratados internacionais de direitos humanos fazem parte, materialmente, do corpo constitucional, e não podem ser revogados por lei posterior.

    Já os tratados internacionais de direitos humanos vigentes no Brasil antes da emenda constitucional recebem o status de norma surpralegal, ou seja, superiores às normas ordinárias e inferiores às normas constitucionais. Esse é o atual entendimento do STF, estabelecido no julgamento do Recurso Extraordinário 466.343- SP, em dezembro de 2008.

3. O Direito à Alimentação

    O Direito à alimentação consta em tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil faz parte. À exemplo, encontra-se presente no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, no artigo 11 do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e no Comentário Geral nº 12 da ONU. Tais tratados, por versarem sobre os direitos humanos, possuem o caráter de normas supralegais.

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    Em fevereiro de 2010, a emenda constitucional 64 modificou o texto da Constituição brasileira, acrescentando ao artigo art. 6º o direito social à alimentação. Assim ficou a nova redação do texto constitucional: "Art. 6º - São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma da constituição”.

    Alguns dispositivos da CF/88, como o artigo 5º - que garante o direito à vida -, o artigo 3º - no qual apresentam-se os objetivos fundamentais do país - e o próprio artigo 6º, antes de sua modificação, implicitamente se relacionam com o direito à alimentação, pois, para garantir tais dispostos, é necessário que seja garantida a alimentação adequada para a população.

    Considerando a hierarquia Constitucional, de suma importância é a Constituição possuir, de forma direta, o direito à alimentação, por mais que fosse estabelecido por tratados internacionais, leis ordinárias ou que fosse objetivo de programas estabelecidos pelo Governo. Assim, demasiado importante foi a inclusão do direito à alimentação no rol de direitos sociais da Constituição, pois, além de ter que ser garantida a alimentação para que se preserve outro direito fundamental, como o direito à vida, é necessária sua garantia com qualidade. Ademais, se tornou um instrumento mais direto para a exigibilidade desse direito por parte do cidadão e, desde então, garantir esse direito se tornou responsabilidade dos Municípios, dos Estados e do Governo Federal, de forma que a alimentação com qualidade deva fazer parte dos programas de saúde pública em todas essas esferas. 

    Conforme descrito anteriormente, "as normas definidoras dos direitos sociais são as normas de eficácia limitada, declaratórias de princípios programáticos, veiculam programas a serem implementados pelo Estado, visando à realização de fins sociais" (Lenza, 2016, pag. 304). Segundo essa visão, o direito à alimentação, sendo um direito social, necessita de programas e medidas para que possa ser garantido. O Brasil, antes mesmo de adicionar o direito à alimentação no rol e direitos sociais, já dispunha de programas objetivando esse fim. A LOSAN (11.346/2006), anteriormente, já abrangia o direito à alimentação adequada, conforme disposto em seu art.2º: 

A alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população.

    A Losan também estabeleceu o SISAN – Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - como um dispositivo importante para a promoção desse direito. Portanto, a LOSAN é um importante mecanismo para promover eficácia ao disposto constitucional e, ao mesmo tempo, este intensifica a força daquele. 

4. O Direito à Alimentação e Código Civil

    O Direito à alimentação também está presente nas esferas privadas. Tal circunstância se demonstra de diversas formas, como: a preocupação com o controle de nutrientes presentes nos alimentos nos colégios particulares, através do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Lei nº 11.947 de 16 de junho de 2009); a fiscalização alimentícia nos restaurantes, através da Resolução RDC número 216 de 15 de Junho de setembro de 2004 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária; e a lei que dispõe sobre a ação de alimentos (Lei nº 5.478, de 25 de julho de 1968).

    É legítimo apontar o conceito de "alimentos" do autor de Direito Civil Orlando Gomes (1999, p.455), no qual:

Alimentos são prestações para satisfação das necessidades vitais de quem não pode provê-las por si, em razão de idade avançada, enfermidade ou incapacidade, podendo abranger não só o necessário à vida, como a alimentação, a cura, o vestuário e a habitação, mas também outras necessidades, compreendidas as intelectuais e morais, variando conforme a posição social da pessoa necessitada. 

    Dessa forma, os alimentos correspondem a componentes essenciais para a vida do ser humano; nesse sentido, educação, saúde, roupas, cultura e alimentos são dispositivos que contribuem para o conceito de alimentos no âmbito civil. Tal conceituação é deveras importante, principalmente no ramo do Direito de família, pois a obrigação de alimentar refere-se à responsabilidade pela manutenção da vida do indivíduo.

    As pessoas que podem estar caracterizadas na categoria de alimentando são parentes, cônjuges e companheiros. O artigo 1.694, caput, do Código Civil prevê que “podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.”

    A partir da análise desse dispositivo, pode-se afirmar que os recursos alimentares que estão presentes nesse instituto são de caráter assistencialista. Dessa maneira, nas situações nas quais a pensão alimentícia se faz presente, nota-se a relevância do acesso à alimentação adequada, direito presente no Código Civil.

    Soma-se, aos componentes associados ao direito à alimentação no texto legal, as fundações e as associações. Nesse sentido, observa-se que existem fundações e associações que possuem a finalidade de possibilitar o acesso à alimentação saudável. Para compreender esse objetivo, é preciso definir o conceito de fundação e o de associação.

    De acordo com o artigo 53 do Código Civil, "constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos." As associações podem se organizar para qualquer fim, desde que seja lícito (art. 5º, XVII, da CF/88), inclusive finalidades culturais, religiosas, sociais, entre outros. A ABRACON SAÚDE - Associação Brasileira de defesa dos consumidores de Plano de saúde, é um exemplo de associação que possui entre os fins institucionais a promoção da segurança alimentar e nutricional.

    De acordo com o Código Civil de 2002, as fundações são pessoas jurídicas de direito privado que atuam no âmbito da ordem social e não possuem fins lucrativos. O parágrafo 1º do artgo 62 do código civil de 2002 estipula que “a fundação somente poderá constituir-se para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência.” A Lei número 13.151, de 2015 foi responsável por adicionar a alimentação no rol de finalidades das fundações: O inciso quinto prevê a “segurança alimentar e nutricional”. Em virtude disso, ocorre a atuação de fundações preocupadas com a alimentação adequada. Um exemplo disso é a atividade realizada pela “Fundação Cargill”, que busca promover a alimentação saudável, segura, sustentável e acessível do campo ao consumidor. 

    À vista disso, torna-se claro que o direito à alimentação se faz presente, com peso, nas relações privadas. Em consequência de tal situação, há a existência de diversas lides que dizem respeito à tal direito, o que faz necessário a formação de mecanismos que promovam a proteção e a devida aplicação desse direito. 

5. A Constitucionalização do Direito Civil

    O direito constitucional exerce uma expressiva influência sobre qualquer âmbito do direito. Isso ocorre porque a Carta Magna, norma de validade de toda a estrutura do direito brasileiro, possui força normativa e ocupa o topo da pirâmide do sistema jurídico. Em virtude disso, observa-se que há uma forte influência do direito constitucional sobre o direito privado, fenômeno chamado de constitucionalização do direito civil. Tal pensamento foi desenvolvido pela relação das ideias promovidas pelo autor Konrad Hesse na obra “A força normativa da Constituição” (2010), juntamente com os escritores Sarlet, Marinoni e Mitidiero, no livro “Curso de Direito Constitucional” (2017).

    Com base nesses aspectos, esse fenômeno conquista notoriedade e avanços significativos nas relações privadas. Tal medida está relacionada com a introdução dos direitos fundamentais, presentes na Constituição, nas relações entre particulares. Como consequência, os negócios jurídicos realizados no meio privado devem estar submetidos à força vinculante dos direitos fundamentais. Tal fenômeno é denominado de eficácia horizontal dos direitos fundamentais, que visa a proteção da pessoa humana nas relações particulares, sendo uma característica essencial no sistema jurídico contemporâneo.

     A interpretação do Código Civil a partir dos dispostos constitucionais representa um avanço no sistema jurídico. Esse progresso ocorre porque o antigo Código Civil de 1916 recebia diversas críticas por não estar devidamente compatível com as mudanças sociais. 

    Nesse sentido, a introdução de direitos fundamentais constitucionais na aplicação do direito privado representa a atualização dessa área do direito, transformação possibilitada pelo Código Civil de 2002. Em decorrência disso, a utilização de dispostos constitucionais, sobretudo o princípio da dignidade da pessoa humana, é perceptível em alguns elementos relevantes do direito privado.

    O princípio da dignidade da pessoa humana, presente no artigo primeiro, parágrafo III da Constituição Federal de 1988, como já citado, pode ser definido como o princípio-matriz de todos os direitos fundamentais. Por isso, a eficácia dos direitos fundamentais no campo privado deve respeitar esse mecanismo jurídico. A partir dessa análise, é essencial ressaltar a relevância desse princípio e como ele pode estar associado ao direito à alimentação, como será visto no tópico seguinte.

   Somado a isso, o pensamento do escritor Flávio Tartuce (2012, p. 57) sobre a matéria analisada é que:

Ocorre, portanto, a ressistematização do Direito Civil, ou seja, uma nova interpretação dos Códigos à luz da axiologia da Constituição de modo a restaurar a unidade do sistema jurídico. A eficácia dos direitos fundamentais é o signo dessa mudança, ao apontar pelo reconhecimento da existência e aplicação dos direitos que protegem a pessoa nas relações entre particulares.

    Com isso, a constitucionalização do direito civil é um fenômeno que contribuiu para a execução dos direitos fundamentais nas relações particulares. Desse modo, o direito à alimentação adequada pôde ser visualizado com maior êxito e frequência no âmbito privado. Assim sendo, a relevância do direito à alimentação, presente na Constituição, tende a crescer e a ser aplicado em todas as áreas do Direito, significantemente no Direito Civil. 

6. O Direito à Alimentação e a Constitucionalização do Direito Civil 

    Em virtude dos aspectos traçados, observa-se que existem vantagens significativas com a realização da constitucionalização do direito civil. Por isso, é possível fazer a relação entre esse importante fenômeno com a aplicabilidade do direito à alimentação nos vínculos entre particulares.

    Como consequência da constitucionalização do direito civil, o princípio da dignidade da pessoa humana deixou de ser apenas aplicado no Direito Público e passou a ser utilizado também nas relações privadas.

    Com base nisso, torna-se recorrente a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana nas esferas privadas. Em virtude dos dados associados ao princípio da dignidade da pessoa humana, pode-se retratar com clareza a relação da constitucionalização do Direito Civil com o Direito à Alimentação. Para o indivíduo obter a dignidade humana e os seus desdobramentos, é necessário que ele possua uma alimentação adequada. Logo, há um vínculo direto e consistente entre a alimentação saudável e o princípio da dignidade humana.

    Por outro lado, o direito à alimentação, sendo um direito social, presente na Constituição, poderá ser utilizado nas relações privadas, inclusive dando forças aos dispostos presentes no Direito Civil que dizem respeito à alimentação.

    Assim, nas lides em que ocorrem conflitos entre princípios, os princípios que dizem respeito aos direitos fundamentais, inclusive o da dignidade da pessoa humana, prevalecem quando há a ponderação. Dessa forma, o direito à alimentação pode ser protegido através desse entendimento. E, da mesma forma, a eficácia dos direitos fundamentais explicitados na Constituição possibilita o entendimento de que é fundamental a concretização do acesso a esses direitos, essencialmente o direito à alimentação, nas relações privadas.

    Partindo para as concretizações, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça do Distrito Federal por bem aplicou o direito humano à alimentação adequada em uma ação civil pública, em decisão de recurso especial interposto pela ABRACON SAÚDE. No presente recurso, foi ajuizada uma ação civil pública contra a Subway com a finalidade de a empresa apresentar nos rótulos e embalagens dos seus produtos informações se esses possuem ou não glúten. O objetivo da ABRACON SAÚDE era o de proporcionar a segurança alimentar dos consumidores portadores de doença celíaca:

Recurso especial. Ação civil pública. Produtos alimentícios. Obrigação de informar a presença ou não de glúten. Legitimidade ativa de associação. Requisito temporal. Constituição há, pelo menos, um ano. Flexibilização. Interesse social e relevância do bem jurídico tutelado. Direito humano à alimentação adequada. Pertinência temática demonstrada. Defesa dos consumidores. Promoção da segurança alimentar e nutricional. (STJ, REsp 1.357618/DF. Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Julgado em 26/09/2017) 

    No caso, há claramente a utilização do disposto constitucional referente ao direito à alimentação para basear uma decisão no âmbito civil. Tal decisão demonstra a importância da implementação de tal direito na Constituição e, por outro lado, a importância da constitucionalização do direito civil para garantir a concretização dos direitos fundamentais, principalmente o direito à alimentação. De acordo com o relatório:

A informação acerca da existência do glúten em determinado produto alimentício é a forma mais eficiente para que o portador da doença garanta seu bem-estar, e, sobretudo, uma das formas de efetivação do direito humano à alimentação adequada, alçado ao nível de direito fundamental, acrescentado ao rol de direitos sociais, após a Emenda Constitucional n. 64/2010, tomando lugar entre os direitos individuais e coletivos. (STJ, 2012)

    Ainda exemplificando, o seguinte caso se trata da utilização de um princípio constitucional para fundamentar uma decisão no âmbito civil para garantir o direito à alimentação. A emenda é autoexplicativa:

EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. INTERCEPTÇÃO TELEFÊNICA DO DEVEDOR DE ALIMENTOS. CABIMENTO. Tentada a localização do executado de todas as formas, residindo este em outro Estado e arrastando-se a execução por quase dois anos, mostra-se cabível a interceptação telefônica do devedor de alimentos. Se por um lado a Carta Magna protege o direto à intimidade, também abarcou o princípio da proteção integral a crianças e adolescentes. Assim, ponderando-se os dois princípios sobrepõe-se o direito à vida dos alimentados. A própria possibilidade da prisão civil no caso de dívida alimentar evidencia tal assertiva. Tal medida dispõe inclusive de cunho pedagógico para que outros devedores de alimentos não mais se utilizem se subterfúgios para safarem-se da obrigação. Agravo provido. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Agravo de Instrumento Nº 70018683508, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Berenice Dias, Julgado em 28/03/2007)

    Portanto, em virtude da convergência do princípio que protege o direito à intimidade e o princípio da dignidade da pessoa humana do alimentando, foi necessário realizar a ponderação deles. Com base no princípio da dignidade da pessoa humana, o direito à vida do alimentando preponderou nessa lide. Destarte, o agravo foi provido em função do princípio da dignidade da pessoa humana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

    O direito à alimentação, presente em vários dispositivos no ordenamento brasileiro e nos tratados internacionais dos quais o Brasil faz parte, exerce importante papel na sociedade, pois trata-se de um direito inerente ao ser humano, sem o qual não há a promoção de sua qualidade de vida. Dessa forma, de suma importância foi a sua colocação no rol dos direitos fundamentais, pois, através disso, constitucionalização do direito civil é capaz de garantir a promoção desse direito nas relações privadas. Da mesma forma, o fenômeno da constitucionalização do direito civil protege o direito à alimentação através da utilização de princípios constitucionais e direitos fundamentais, principalmente o princípio da dignidade da pessoa humana, nas relações privadas.

    A eficácia dos direitos fundamentais na esfera privada assegura o direito à alimentação quando os princípios constitucionais e os direitos fundamentais são utilizados nas relações privadas para esse fim. Através desse fenômeno, denominado de eficácia horizontal dos direitos fundamentais, a pessoa humana é protegida nas relações particulares, com a promoção dos direitos inerentes à sua qualidade de vida. Assim, conclui-se que a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas representa a principal finalidade da constitucionalização do direito civil e que, através dela, há a possibilidade da maior proteção e garantia do direito à alimentação.

    Infere-se que a seguridade do direito à alimentação se manifesta através da garantia dos componentes essenciais para a vida do indivíduo. Nas relações privadas, tal conceituação de alimentos é deveras importante, assim como a proteção desse direito através da constitucionalização do direito civil, visto que lides relacionadas ao direito à alimentação podem se manifestar de diversas formas, como através de ações de alimentos e pela existência de fundações e associações que têm como fim a promoção desse direito.

    A seleção dos conceitos contidos ao longo texto possibilitou tal análise do direito à alimentação. Em suma, a escolha das diretrizes, que constituíram o trabalho, proporcionou o enriquecimento do estudo sobre alimentação e como ela deve e pode ser interpretada e aplicada no direito brasileiro. 

REFERÊNCIAS

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GOMES, Orlando. Direito de Família. 11ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1999.

HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio, 2010.

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Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências.

Sobre a autora
Bárbara Goniadis Lima

Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal Fluminense - RJ. Membro da Comissão dos Juizados Especiais, 8ª Subseção do Rio de Janeiro Pós-graduanda em Advocacia Cível, Fundação Escola Superior do Ministério Público

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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