Desafios para uma Igreja mais solidária e profética

17/06/2021 às 06:36
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A Igreja Católica deve promover ação profética, libertadora e solidária contra injustiça, miséria e exclusão. Como crer sem agir diante da fome, da violência e do colapso ambiental?

A Igreja, tanto católica quanto evangélica — ou seja, as Igrejas Cristãs, que representam o cristianismo enquanto religião —, da mesma forma que outras religiões, deve, cada vez mais, pautar suas ações e ancorar suas bases teológicas nas dimensões missionária, samaritana, solidária, mas também profética e libertadora.

Em um mundo cada vez mais injusto, materialista e consumista, que gera exclusão, fome, miséria e violência, não se concebe que continuemos apenas ouvindo mensagens e sermões alienadores, desconectados da realidade dura e cruel em que vivem milhões e bilhões de pessoas, nas chamadas “periferias existenciais”.

A humanidade requer Igrejas e religiões que representem e estimulem a esperança, tanto de uma vida após a morte — a salvação e a eternidade junto a Deus, no Céu ou Paraíso, enfim, em algum lugar onde reine a paz, a harmonia, onde não exista mais sofrimento, dor ou exploração das pessoas —, mas, fundamentalmente, também a esperança de um mundo terreno melhor. Um mundo em que não haja, de um lado, tanta opulência, riqueza, poder e bens concentrados nas mãos de uma ínfima minoria, e, de outro lado, a imensa maioria da população vivendo uma vida miserável, de fome, pobreza, violência de toda ordem e injustiças, inclusive social e ambiental.

Se somos filhos e filhas de um mesmo Pai, de um mesmo Criador, que deu/ofereceu seu Filho Único — o “Verbo Encarnado” — para redimir a humanidade do pecado, inclusive desses já mencionados, como explicar tantas desavenças, tanta violência, tantos conflitos e guerras sangrentas, sofrimento e morte na família humana? Este é o paradoxo que as Igrejas e religiões tentam explicar ou justificar, sem sucesso, ao longo de milênios.

Neste sentido, precisamos refletir mais sobre o papel das Igrejas e religiões — de todos os matizes, inclusive o cristianismo — no que concerne às suas dimensões humanas, temporais e também transcendentais/espirituais. Quando falamos em Igrejas e religiões, não podemos esquecer que, além dos aspectos institucionais, elas também são representadas por seus fiéis, adeptos e seguidores. Afinal, são essas pessoas que demonstram, por atitudes, comportamentos e ações do dia a dia, tanto o compromisso ético, moral e espiritual quanto o compromisso social, econômico, ambiental e político com seus semelhantes.

A humanidade, imagino eu, requer Igrejas e religiões que se comprometam mais, de forma efetiva, com a solidariedade, com a fraternidade, com a justiça — inclusive a justiça social —, com o amor verdadeiro ao próximo, e que tenham mais compaixão real pelos que sofrem: os excluídos, as pessoas injustiçadas, perseguidas, discriminadas, violentadas e vilipendiadas. Este compromisso tem um nome: ação sócio-transformadora; ação libertadora, tanto no plano transcendental quanto nos planos humano, histórico, social, econômico, ecológico e político.

Se assim acontece, seus fiéis e adeptos, como seguidores das normas e doutrinas — como a Doutrina Social da Igreja, no caso da Igreja Católica —, e dos ensinamentos de tais igrejas e religiões, precisam pautar suas relações sociais, políticas, econômicas e culturais por princípios éticos e morais que atestem, na prática, quais são os parâmetros que devem reger tais relações.

Podemos dizer que, se os adeptos do cristianismo e do judaísmo — que têm na Bíblia, principalmente no Velho Testamento, verdades sagradas, e onde consta que Moisés recebeu de Deus a Tábua das Leis, contendo os Dez Mandamentos —, vivessem plenamente esses preceitos, não seriam necessárias tantas leis nas sociedades para coibir, por exemplo, os homicídios, o feminicídio, os roubos e furtos, a corrupção, o adultério e outros crimes, os quais são o substrato que favorece o surgimento e a perpetuação da violência, da injustiça e de uma ordem socioeconômica e política injusta.

Precisamos, de forma urgente, também de igrejas e religiões que respeitem mais as obras do Criador — inclusive com um cuidado maior com o meio ambiente, com a ecologia integral, enfim, que melhor possam cuidar da Casa Comum, como frequentemente tem exortado o Papa Francisco e diversos outros líderes religiosos mundo afora.

Só assim, as igrejas, as religiões e seus adeptos — fiéis ou membros do “Corpo de Cristo” — terão a credibilidade necessária como força transformadora da realidade circundante e também poderão acenar com uma mensagem de salvação, como consta na Carta de Tiago, capítulo 2, versículo 14 e seguintes, quando diz textualmente que a fé sem obras é morta, como segue:

“Meus irmãos, que interessa se alguém disser que tem fé em Deus e não fizer prova disso através de obras? Esse tipo de fé não salva ninguém. Se um irmão ou irmã sofrer por falta de vestuário ou por passar fome, e lhe disserem: ‘Procura viver pacificamente, vai-te aquecendo e comendo como puderes’, e não lhe derem aquilo de que precisa para viver, uma tal resposta fará algum bem? Assim também a fé, se não se traduzir em obras, é morta em si mesma. Poderão até dizer: ‘Tu tens a fé, mas eu tenho as obras. Mostra-me, então, a tua fé sem as obras, porque eu te dou a prova da minha fé através das minhas boas obras!’”

Vale ressaltar que as obras referidas ao longo dos textos sagrados não são apenas de natureza assistencial — que, por vezes, acabam sendo transformadas em assistencialismo e em manipulação dos pobres e excluídos para interesses políticos imediatos de conquista e manutenção do poder —, mas sim obras de caridade sócio-transformadoras dessas estruturas injustas. Por essa razão, a “caridade libertadora”, para utilizar um conceito da Cáritas Brasileira, é a única que possibilita tanto romper com as amarras da exploração humana, do trabalho escravo e semiescravo, e outras formas de opressão, quanto colocar o bem comum — incluindo o meio ambiente — a serviço de todos.

Os frutos do chamado desenvolvimento, pouco importam os adjetivos que o acompanhem — mesmo com o advento do conceito de desenvolvimento sustentável —, não devem ser apropriados por uma ínfima minoria das sociedades ou do Estado, mas, sim, melhor repartidos entre todos que contribuíram para o enriquecimento da sociedade como um todo.

No caso da Igreja Católica, essas ações e formas de caridade — seja assistencial, promocional ou libertadora — são realizadas pelas diversas pastorais e movimentos. Ressalta-se que tais ações, pastorais e movimentos não podem ser caracterizados ou vistos como ONGs, pois devem estar, e sempre estão, fundados e fundamentados no Evangelho, na Doutrina Social da Igreja e nos ensinamentos contidos nas diversas encíclicas.

Por exemplo, um ponto muito importante e imprescindível nesse processo de uma Igreja em saída, missionária, samaritana e profética, é que essas pessoas (colaboradores, animadores, agentes da Pastoral da Ecologia Integral, por exemplo, além dos demais fiéis que representam o corpo da Igreja) estejam inseridas no processo, iniciando por uma formação básica, a partir da leitura e reflexão de documentos como a encíclica Laudato Si', o Documento de Aparecida, a exortação Querida Amazônia, além de conteúdos sobre a Doutrina Social da Igreja e outros artigos e livros já escritos sobre o tema (Igrejas proféticas, Ecologia Integral e pastorais da Ecologia Integral). Assim, a caminhada será ancorada e inspirada pelo Evangelho. Como se costuma dizer, “pastoral não é apenas mais uma ONG”, pois, conforme a CNBB, “Ação pastoral da Igreja no Brasil ou simplesmente pastoral é a ação da Igreja Católica no mundo, ou o conjunto de atividades pelas quais a Igreja realiza a sua missão de continuar a ação de Jesus Cristo junto a diferentes grupos e realidades.”

Com certeza, trata-se de um trabalho lento, que passa pelo batismo, pela compreensão da fé que anima os fiéis, pela conversão — inclusive pela conversão ecológica, como afirma o Papa Francisco. E isso, às vezes, enfrenta resistências até mesmo dentro da própria Igreja ou encontra dificuldades para maior adesão, tendo em vista a enorme gama de atividades já em curso com outras pastorais e movimentos, que acabam por sobrecarregar pessoas já engajadas.

Todavia, nem por isso devemos desanimar. Precisamos preparar o terreno, formar as equipes que vão plantar as sementes, regar, cuidar com zelo e carinho deste trabalho, que também faz parte da messe e onde a presença da Igreja é importante, fundamental e não pode estar ausente.

Finalmente, é importante também destacar por que as Igrejas precisam estar calcadas e embasadas na dimensão profética. O que é uma Igreja profética? Por que uma Igreja profética?

Para Alexis Parra, da organização Catholic Voices Chile, uma Igreja profética “tem que anunciar as boas novas do Evangelho, mas também denunciar as estruturas que geram e dão forma a todos os tipos de pecado”.

Em meu entendimento, isso significa que uma Igreja profética não pode estar abraçada com os poderosos, os donos do poder, os que exploram e violentam o povo. Essa Igreja não pode estar de costas para os que sofrem injustiças; deve estar mais próxima e voltada para os pobres, os excluídos e marginalizados.

De forma semelhante, uma Igreja profética não pode estar centrada em si mesma, em suas estruturas e hierarquias eclesiásticas, em seus ritos e práticas distantes da realidade de seus fiéis, alheia a tantos pecados — inclusive pecados econômicos, sociais, políticos (como a corrupção e o abuso de poder) e ecológicos/ambientais — que são cometidos na sociedade e afetam diretamente os mais frágeis, aprofundando o sofrimento das grandes massas e tornando a vida não apenas difícil, mas quase impossível para bilhões de pessoas.

Uma Igreja profética não pode ser conivente com o desrespeito aos direitos humanos, com a cultura da violência institucionalizada — inclusive praticada por agentes do Estado contra pessoas inocentes, geralmente os pobres, excluídos e marginalizados, enfim, grupos humanos vulneráveis.

Uma Igreja profética não pode fechar os olhos para as práticas de trabalho escravo ou semiescravo, aos crimes ambientais; não pode se calar nem fazer coro com o racismo, os preconceitos, o feminicídio e tantas outras formas de violência que marcam profundamente não apenas as sociedades, mas, principalmente, a vida de dezenas ou centenas de milhares de famílias das vítimas dessa violência cotidiana.

Uma Igreja profética não pode pactuar com as estruturas e relações de trabalho e de produção que geram desigualdades, o acúmulo de capital em poucas mãos, que degradam os ecossistemas e biomas, que impõem condições de vida indignas aos trabalhadores, provocam sofrimento e mortes desnecessárias, e desrespeitam todas as formas de vida.

Enfim, uma Igreja profética é aquela que está ancorada nos ensinamentos de Jesus, que tem suas práticas voltadas para a realidade tanto espiritual quanto temporal, que defende de forma efetiva e corajosa todas as formas de vida e que jamais aceita qualquer forma de injustiça, violência e abuso contra as pessoas — principalmente os pobres, excluídos e marginalizados.

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Com certeza, uma Igreja profética precisa estar ancorada na Bíblia, tanto no Velho quanto no Novo Testamento, tanto nas exortações dos diversos profetas — que sempre denunciaram o pecado e as injustiças de seu tempo — quanto nos ensinamentos de Jesus.

Amós, capítulo 2, versículos de 6 a 8, um desses profetas, assim fala quanto aos pecados e injustiças cometidas pelos poderosos de Israel naquela época:

“Assim diz o Senhor: ‘Por três transgressões de Israel, e ainda mais por quatro, não anularei o castigo. Vendem por prata o justo, e por um par de sandálias, o pobre. Pisam a cabeça dos necessitados como pisam o pó da terra e negam justiça ao oprimido. Pai e filho possuem a mesma mulher e, assim, profanam o meu santo nome. Inclinam-se diante de qualquer altar com roupas tomadas como penhor. No templo do seu deus bebem vinho recebido como multa.’”

Jesus, quando questionado pelos fariseus e doutores da Lei quanto às exortações de seus discípulos, não titubeia em responder-lhes: “Se esses se calarem, até as pedras clamarão” (Evangelho de Lucas 19:40).

A Bíblia Sagrada, que é a única regra de fé e compromisso dos cristãos, destaca diversas passagens sobre a questão da injustiça — considerada a mãe de todas as mazelas humanas — como algo contrário tanto aos desígnios de Deus quanto à vida humana.

Isso pode ser observado, por exemplo, em algumas citações bíblicas:

  • Provérbios 22:8 – “Quem semeia a injustiça colhe a maldade; o castigo da sua arrogância será completo.”

  • Provérbios 16:8 – “É melhor ter pouco com retidão do que muito com injustiça.”

  • 1 Coríntios 13:6 – “O amor não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade.”

  • 1 João 1:9 – “Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para perdoar os nossos pecados e nos purificar de toda injustiça.”

  • Jeremias 17:11 – “O homem que obtém riquezas por meios injustos é como a perdiz que choca ovos que não pôs. Quando a metade da sua vida tiver passado, elas o abandonarão, e, no final, ele se revelará um tolo.”

  • Provérbios 29:27 – “Os justos detestam os desonestos, já os ímpios detestam os íntegros.”

  • Provérbios 19:5 – “A testemunha falsa não ficará sem castigo, e aquele que despeja mentiras não sairá livre.”

  • Deuteronômio 16:19 – “Não pervertam a justiça nem mostrem parcialidade. Não aceitem suborno, pois o suborno cega até os sábios e prejudica a causa dos justos.”

  • Colossenses 3:25 – “Quem cometer injustiça receberá de volta injustiça, e não haverá exceção para ninguém.”

  • Romanos 1:18 – “Portanto, a ira de Deus é revelada dos céus contra toda impiedade e injustiça dos homens que suprimem a verdade pela injustiça.”

  • Romanos 2:6-8 – “Deus retribuirá a cada um conforme o seu procedimento. Ele dará vida eterna aos que, persistindo em fazer o bem, buscam glória, honra e imortalidade. Mas haverá ira e indignação para os que são egoístas, que rejeitam a verdade e seguem a injustiça.”

Com certeza, uma Igreja profética e seus fiéis podem contribuir de maneira muito importante para construirmos um mundo e uma sociedade melhores, onde possam reinar a justiça, a justiça social e ambiental, a solidariedade, a fraternidade e o respeito por todas as formas de vida — enfim, uma vida humana mais igualitária e com equidade.

Este é um dos grandes desafios que se apresentam na atual caminhada, não apenas da Igreja Católica, mas de todas as Igrejas Cristãs e também de tantas outras religiões. Ou seja, o que podemos fazer para termos Igrejas e religiões verdadeiramente mais solidárias e mais proféticas, principalmente em tempos tão difíceis como os que estamos atravessando no mundo e, em especial, no Brasil na atualidade?

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Sobre a autora
Juacy da Silva

Professor fundador, titular e aposentado da Universidade Federal de Mato Grosso, sociólogo, mestre em sociologia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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