A ação policial em manifestações e a responsabilidade civil do Estado: Estudo do tema 1055 da repercussão geral do STF

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O presente trabalho pretende tratar da responsabilidade civil do Estado diante de danos cometidos pelas forças de segurança pública em manifestações, considerando a recente tese de repercussão geral 1.055 fixada pelo STF.

O presente trabalho pretende tratar da responsabilidade civil do Estado diante de danos cometidos a particulares, pelas forças de segurança pública, em manifestações em que há tumulto ou conflito entre a polícia e os manifestantes, considerando a recente tese de repercussão geral 1.055 fixada pelo STF.

Recentemente, no dia 10/06/2021, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento do Recurso Extraordinário 1.209.429/SP a respeito do pleito indenizatório de repórter fotográfico que, na cobertura jornalística de manifestação de greve, em São Paulo, sofreu ferimento no olho esquerdo que culminou na sua limitação visual, sequela incapacitante, de modo parcial, e permanente.

O tema de repercussão geral foi admitido sob o número 1.055 e teve como resultado o seguinte:

“REPÓRTER – EXERCÍCIO PROFISSIONAL – TUMULTO – COBERTURA JORNALÍSTICA – ATUAÇÃO POLICIAL – DANOS – REPARAÇÃO – RECURSO EXTRAORDINÁRIO – ADEQUAÇÃO – REPERCUSSÃO GERAL CONFIGURADA. Possui repercussão geral controvérsia alusiva à responsabilidade civil do Estado em relação a profissional da imprensa ferido, em situação de tumulto, durante cobertura jornalística.”

(RE 1209429 RG, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 20/06/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-210 DIVULG 25-09-2019 PUBLIC 26-09-2019)

Pois bem, em análise meritória concluída este mês, o referido julgamento trouxe definições mais específicas para o delineamento da responsabilidade civil do Estado, com relação a danos sofridos em manifestações causados por agentes policiais.

Dada a relevância, fora reconhecida a repercussão geral (tema 1055), tendo sido fixada, ao final, a seguinte tese:

“É objetiva a responsabilidade civil do estado em relação ao profissional de imprensa ferido por agentes policiais durante a cobertura jornalística em manifestações em que haja tumulto ou conflito entre policiais e manifestantes. Cabe a excludente de responsabilidade da culpa exclusiva da vítima nas hipóteses em que o profissional de imprensa descumprir ostensiva e clara advertência sobre acesso a áreas delimitadas em que haja grave risco a sua integridade física”.

O recurso constitucional havia sido interposto de decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que, mesmo concluindo que o dano à visão do jornalista fora ocasionado por bala de borracha disparada pela Polícia Militar do Estado, reformou sentença de primeira instância para assentar a culpa exclusiva da vítima e negar o pedido de indenização por danos materiais e morais contra o Estado.

Na ocasião do julgamento de segunda instância, a culpa exclusiva da vítima restou configurada pela conclusão, segundo os Desembargadores, de que “o autor, apesar de não ser manifestante, colocou-se no tumulto, entre os manifestantes e os policiais, colocando-se em situação de risco ou perigo. Nesse sentido, pode-se afirmar ser dele a culpa exclusiva e lamentável do episódio do qual foi vítima.”

No julgamento do recurso extraordinário, entretanto, prevaleceu o entendimento majoritário de que a decisão de segunda instância, ao assentar a culpa exclusiva da vítima, inibiu a cobertura jornalística e o direito-dever de informar, previsto na Constituição Federal (artigo 5º, incisos IX e XIV[1] e artigo 220[2]). Ainda, concluiu-se que a Polícia Militar não obedeceu aos protocolos de uso de armas não letais, nem as regras de conduta em eventos públicos.

Apesar de restar isolado na divergência e, portanto, vencido, faz-se pertinente tecer considerações a respeito dos fundamentos do voto do Ministro Nunes Marques, dada sua importância para a Fazenda Pública e por respeito ao debate e às posições contrárias, mesmo enquanto obiter dictum.

Para o ministro, concluir pela excludente de responsabilidade, no caso, não violaria o direito ao exercício da profissão, muito menos o dever de informação, justamente pelo fato de a ordem constitucional não conferir proteção especial diferenciada a certas categorias de trabalhadores. Para ele, a profissão poderia até ser utilizada para mensurar a indenização a ser eventualmente estabelecida, mas não para fins de definir a própria responsabilidade estatal de indenizar.

Percebe-se, portanto, que, segundo o Ministro, o fato de a vítima ser jornalista e a eventualidade de estar cobrindo determinada manifestação não poderia alargar as hipóteses de responsabilidade civil do Estado.

Vejamos o que dispõe o parágrafo 6º do art. 37 da Constituição Federal, que consagrou, no Brasil, a responsabilidade civil objetiva do Estado, na modalidade do risco administrativo, in verbis:

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...)

§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”

De fato, da análise do texto constitucional, infere-se que a norma que estabelece a responsabilidade civil do estado é especificamente clara, não conferindo margem para proteção diferenciada de categoria ou situação.

Pela teoria objetiva da responsabilidade civil, em resumo, diante de fatos lícitos ou ilícitos, basta a comprovação do nexo de causalidade entre o fato e a ocorrência do dano, podendo a Administração, em sua defesa – a fim de afastar ou atenuar sua responsabilidade –, comprovar a ocorrência de alguma das excludentes de responsabilidade. É exatamente o que ficou consignado ao final da tese fixada: “Cabe a excludente de responsabilidade da culpa exclusiva da vítima nas hipóteses em que o profissional de imprensa descumprir ostensiva e clara advertência sobre acesso a áreas delimitadas em que haja grave risco a sua integridade física”.

Nesse ponto, é salutar reconhecer que, salvo situações excepcionais, é despiciendo investigar a licitude, ou não, da atividade policial diante de intercorrências em manifestações e tumultos. Isso porque, atualmente, é perfeitamente possível a atribuição de responsabilidade ao Estado pelo desempenho de condutas lícitas. Assim, a discussão não deve enveredar a respeito do estrito cumprimento do dever legal.

Pela pertinência, faz-se oportuno mencionar o brilhante ensinamento de Gilmar Mendes:

“A existência ou inexistência do dever de reparar não se decide pela qualificação da conduta geradora do dano (lícita ou ilícita), mas pela qualificação da lesão sofrida. Logo, o problema da responsabilidade resolve-se no lado passivo da relação, não em seu lado ativo. Importa que o dano seja ilegítimo, não que a conduta causadora o seja. Por isso, não basta para caracterizar a responsabilidade estatal a mera deterioração patrimonial sofrida por alguém. Não é suficiente a simples subtração de um interesse ou de uma vantagem que alguém possa fruir, ainda que legitimamente. Quatro são as características do dano indenizável: 1) o dano deve incidir sobre um direito; 2) o dano tem de ser certo, real; 3) tem de ser um dano especial; e, por último, 4) há de ocorrer um dano anormal.”[3]

A teoria do risco administrativo – como fundamento da teoria objetiva – parte do pressuposto de que, por ser mais poderoso, o Estado teria que arcar com um risco natural decorrente de suas numerosas atividades.

A responsabilidade objetiva, portanto, parte do princípio da igualdade: considerando-se que todos se beneficiam da atuação estatal, todos, igualmente e em última instância, devem, suportar os riscos advindos dessa atividade. Seria, no mínimo, desarrazoado e desproporcional que um administrado precisasse comprovar a culpa de determinado agente estatal para que pudesse ter por assegurada sua possibilidade de indenização.

Para José dos Santos Carvalho Filho:

“Não há dúvida de que a responsabilidade objetiva resultou de acentuado processo evolutivo, passando a conferir maior benefício ao lesado, por estar dispensado de provar alguns elementos que dificultam o surgimento do direito à reparação dos prejuízos, como, por exemplo, a identificação do agente, a culpa deste na conduta administrativa, a falta do serviço, etc.”[4]

Nesse sentido, deve-se mencionar que, apesar de não existir um consenso na doutrina, admite-se amplamente a culpa exclusiva da vítima, a força maior e o caso fortuito como excludentes da responsabilidade estatal, sob o enfoque da teoria do risco administrativo. Ainda, na hipótese de culpa recíproca, há a atenuação da obrigação de indenizar.

Outrossim, por um lado, o Estado, sendo responsável direto pela conduta de seus agentes, deve garantir a segurança da população. Por outro, o mesmo Estado não pode ser alçado à qualidade de segurador universal de tudo e contra todos, mormente quando necessária a intervenção das forças de segurança pública para conter tumultos generalizados, que poderiam inclusive resultar em danos ainda maiores.

A objeção ao acolhimento do entendimento do Estado enquanto segurador universal, pode-se dizer, restou afastada pelo próprio tema fixado em repercussão geral, visto que se possibilitou o reconhecimento da culpa exclusiva da vítima “nas hipóteses em que o profissional de imprensa descumprir ostensiva e clara advertência sobre acesso a áreas delimitadas em que haja grave risco a sua integridade física.”

No caso, a culpa exclusiva da vítima, acima aduzida, refere-se ao comportamento de um indivíduo que, por si só e a si próprio, causa dano, rompendo o nexo de causalidade e, por consequência, a responsabilidade de outro eventual agressor.

Pondera Sílvio Rodrigues, conforme citado por Cavalieri[5], que a culpa exclusiva da vítima é causa de interrupção do próprio nexo de causalidade, porque o agente, aparente causador direto do dano, é mero instrumento do acidente.

A respeito da culpa exclusiva da vítima, mostra-se relevante, pela didática, citar entendimento firmado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça:

“o fato exclusivo da vítima será relevante para fins de interrupção do nexo causal quando o comportamento dela representar o fato decisivo do evento, for a causa única do sinistro ou, nos dizeres de Aguiar Dias, quando ‘sua intervenção no evento é tão decisiva que deixa sem relevância outros fatos culposos porventura intervenientes no acontecimento’ (Da responsabilidade civil, vol. II, 10ª. edição. São Paulo: Forense, 1997, p. 946)(STJ, REsp 1.268.743/RJ, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 04/02/2014, DJe 07/04/2014).

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Diante do exposto, faz-se necessária a correta interpretação dos delineamentos fáticos a fim de se evitar a banalização de indenizações atribuídas ao Estado, diante de intercorrências em manifestações ou tumultos com intervenção das forças de segurança pública. Aliás, eventual banalização tenderia até mesmo a prejudicar os indivíduos que realmente tenham direito.

Partindo do pressuposto de que o Estado não é a cura de todos os males, deve-se ter em mente que aquele deverá ser responsabilizado apenas dentro dos critérios constitucionalmente definidos, os quais, no caso específico tratado no presente trabalho, foram interpretados e consolidados no tema 1.055 de repercussão geral do STF.

Nesse diapasão, flexibilizar os critérios fixados para reconhecimento da responsabilidade civil, no intuito de possibilitar a responsabilização do Estado perante determinado administrado fora dos limites da interpretação fixada pelo Supremo, significará, por consequência, minorar os recursos para as atividades essenciais estatais mediante a repartição, direta e indireta, do referido ônus com toda a sociedade.

Em outras palavras, além do possível enriquecimento ilícito para o indenizado, a sociedade como um todo sofrerá com o encargo pecuniário da indenização, e com a falta de investimentos decorrentes da realocação orçamentária para pagamentos indenizatórios em serviços públicos, visto que, como se sabe, os recursos estatais são limitados e insuficientes para o atendimento das inúmeras necessidades sociais.

Conquanto tenha sido firmado o entendimento pela possibilidade de responsabilização objetiva do Estado diante de ferimentos causados por policiais em manifestações em que haja tumulto ou confronto entre policiais e manifestantes, há de se atentar para as eventuais especificidades do caso concreto, tendo em vista que o próprio tema 1.055 de repercussão geral ressalvou da obrigatoriedade de indenizar os casos em que, por culpa exclusiva da vítima, haja desrespeito a ostensivas e claras advertências sobre acesso a áreas de risco.

É preciso considerar que a flexibilização acerca das hipóteses de responsabilidade civil do Estado pode comprometer seu próprio funcionamento, vez que, em primeiro lugar, o Estado não pode ser alçado à posição de segurador universal, considerando que as necessidades sociais são ilimitadas, mas não os recursos. Em segundo lugar, por outro lado, responsabilizar o Estado em parâmetros que excedam a tese referendada pelo STF legitimará o enriquecimento ilícito, haja vista a ausência de fundamento jurídico indenizatório.

Por fim, não se pode deixar de afirmar que a presente tese visa reafirmar a responsabilidade do Poder Público e, ao mesmo tempo, garantir às instituições jornalísticas (e seus agentes) proteção adequada para o seu direito-dever a cobrir os eventos e acontecimentos de interesse de toda a população, priorizando o acesso à informação.


[1] Art. 5º (...)

IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; (...)

XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;

[2] Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

 § 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

§ 3º Compete à lei federal:

I - regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada;

II - estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.

§ 4º A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso.

§ 5º Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio.

§ 6º A publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença de autoridade.

[3] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 15ª ed., São Paulo, Saraiva Educação, 2020, n.p.

[4] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25 ed., 2012, Atlas, p. 547.

[5] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 11 ed., 2014, Atlas, 2014, p. 86.

Sobre os autores
Gentil Ferreira de Souza Neto

Procurador de Estado e Advogado. Mestre em Direito Constitucional. Especialista em Direito Público e Direito Constitucional.

Rafael José Farias Souto

Advogado e consultor jurídico. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Atuação nas searas pública e privada. Possui pós-graduação em Direito Público pela Universidade Anhaguera-UNIDERP, em Direito Administrativo pelo Instituto Elpídio Donizetti, e atualmente é pós-graduando em Direito Previdenciário pela Faculdade Legale.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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