OBRIGAÇÃO DE DAR
A obrigação de dar consiste na transferência da posse ou propriedade de um bem móvel ou imóvel. Entre os romanos era conhecida como obligationes dandi.
A obrigação de dar pode ser:
a) obrigação de dar “em sentido estrito”: quando a entrega implica em transferência da propriedade da coisa. Exemplo: “A” vende para “B” um cavalo de corrida.
b) obrigação de entregar: quando o devedor transfere apenas a posse (uso e gozo) da coisa. Exemplo: “A” aluga para “B” um automóvel.
c) obrigação de restituir: quando o devedor devolve a coisa que recebeu do credor. Não tem, pois, o escopo de transferir a propriedade, porquanto o credor já é o dono do bem. Todavia, implica na transferência da posse direta. É o caso dos depositários, comodatários, locatários etc. Note-se que, na obrigação de restituir, o credor é o dono da coisa, ao passo que, na obrigação de dar propriamente dita e de entregar, o dono é o devedor. Esse detalhe repercutirá nas hipóteses de risco, isto é, perda ou deterioração da coisa sem culpa do devedor.
d) obrigação de dar coisa certa ou obrigação específica: quando o devedor compromete-se a entregar ou restituir um bem individualizado. Exemplo: “A” vende o seu automóvel para “B”.
e) obrigação de dar coisa incerta ou obrigação genérica: quando o devedor compromete-se a entregar um bem considerado no gênero a que pertence, e não em sua individualidade. Exemplo: obrigação de entregar 10 (dez) sacas de café de determinada marca.
OBRIGAÇÃO DE DAR COISA CERTA
Na obrigação de dar coisa certa, o credor não pode ser obrigado a receber outra, ainda que mais valiosa (art. 313 do CC.). Portanto, a dação em pagamento, isto é, a entrega de prestação diversa da devida, depende da concordância do credor.
A obrigação de dar coisa certa abrange os acessórios dela embora não mencionados, salvo se o contrário resultar do título ou das circunstâncias do caso (art. 233 do CC.). É claro, pois o acessório segue o principal (art. 92 do CC). É o princípio da gravitação jurídica. Assim, na venda de um pomar encontra-se implícita a obrigação de entregar os frutos pendentes. Anote-se, porém, que as pertenças, conquanto acessórios, são excluídas do negócio, isto é, não seguem a sorte do principal, salvo se o contrário resulta da lei, da manifestação da vontade, ou das circunstâncias do caso (art. 94 do CC.). Assim, na venda de uma casa não está compreendida a obrigação de entregar as pertenças, tais como, telefone, sofá, quadros etc. Os demais acessórios, porém, são transferidos junto com a coisa. Dentre os acessórios, vale mencionar a servidão, hipoteca, frutos, produtos, benfeitorias, acessões, pertenças essenciais etc.
Até a tradição pertence ao devedor a coisa, com seus melhoramentos e acrescidos, pelos quais poderá exigir aumento no preço; se o credor não anuir, poderá o devedor resolver a obrigação (art. 237 do CC). Igualmente, os frutos percebidos até a tradição são do devedor, cabendo ao credor os pendentes. Assim, a cria do animal negociado, que nasce antes da tradição, pertence ao vendedor, mas se nascer após a entrega será do comprador. A propósito, denomina-se cômodos as vantagens que a coisa produz, abrangendo os melhoramentos (modificações positivas do bem), os frutos e os acréscimos, (o que é incorporado ao bem). A expressão acréscimos abrange, dentre outros, as acessões e benfeitorias.
No tocante ao perecimento e deterioração da coisa, as hipóteses são bem variadas.
O perecimento da coisa, isto é, a sua perda total pode ser:
a) natural: quando a coisa perde as suas qualidades essenciais. Exemplo: morte do cavalo.
b) jurídico: quando a coisa perde o seu valor econômico ou então torna-se inalienável. Exemplo: desapropriação da casa que se prometera alienar a outrem.
Quando a coisa perece antes da tradição extingue-se a obrigação, pois esta não pode subsistir sem objeto. Em caso de culpa, o devedor indenizará o credor, restituindo-lhe o preço mais as perdas e danos. Se, porém, não teve culpa, apenas restituirá o preço, porventura recebido, mas não arcará com perdas e danos, salvo se estava em mora (art. 399) ou se havia cláusula expressa de responsabilidade pelos danos advindos de caso fortuito ou força maior (art. 393).
Na hipótese de a coisa perecer após a tradição, subsiste a obrigação de o adquirente efetuar o pagamento, ainda que não tenha tido culpa.
Note-se que o problema é solucionado pela máxima res perit domino, isto é, o dono suporta os prejuízos. Assim, na compra e venda, por exemplo, antes da tradição, isto é, da entrega, o dono é o vendedor; após, o dono é o comprador.
Por outro lado, ao invés do perecimento, pode ocorrer apenas a deterioração da coisa, que é a perda parcial, isto é, de qualidades não essenciais, que diminuem a sua utilidade ou o valor.
Quando a coisa se deteriora antes da tradição, com ou sem culpa do devedor, o credor pode optar pela extinção do contrato, exigindo a restituição do que pagou, ou então pode aceitar a coisa, abatido no preço o valor do estrago. Quanto às perdas e danos, só terá direito na hipótese de a deterioração emanar de culpa do devedor.
Se, ao revés, a deterioração ocorrer após a tradição, subsiste a obrigação de o adquirente efetuar o pagamento do preço, ainda que não tenha tido culpa, por força da máxima res perit domino.
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIR
Vimos que a obrigação de restituir implica na devolução da coisa ao proprietário. Tal obrigação é assumida pelo depositário, locatário, comodatário etc.
Se a coisa perecer antes da tradição, isto é, da devolução, extingue-se a obrigação, pois esta não pode subsistir sem objeto, quer haja ou não culpa do devedor. Se não teve culpa não arcará sequer com as perdas e danos; estas só serão devidas na hipótese de culpa. Exemplo: A empresta o automóvel para B, mas o veículo é destruído por um raio, antes da restituição; nesse caso, o comodatário B não responderá por perdas e danos. Se, porém, agiu com culpa, colidindo, por exemplo, o automóvel, culminando pela sua perda total, arcará com o equivalente ao valor mais as perdas e danos, ou seja, pelo pagamento do valor do veículo e outros prejuízos causados ao comodante A.
Cumpre ressaltar que se por ocasião do perecimento da coisa o comodatário B estava em mora, porque já havia ultrapassado o prazo de devolução, subsiste a obrigação de indenizar, arcando com todos os prejuízos, ainda que o perecimento tenha emanado de caso fortuito ou força maior, por força do art. 399, que prevê a perpetuatio obligationis para o devedor em mora, excepcionando a máxima res perit domino. Também responderá pelas perdas e danos em havendo previsão no contrato quanto à responsabilização pelos danos advindos de caso fortuito ou força maior (art.393 do CC).
Por outro lado, quando a coisa apenas se deteriora, antes da tradição, isto é, da sua devolução, sem culpa do devedor, o credor não terá direito a indenização, devendo contentar-se em recebê-la no estado em que se encontra. Se, ao revés, a deterioração ocorrer por culpa do devedor, abre-se ao credor duas opções: receber a coisa no estado em que está mais as perdas e danos; ou então, rejeitá-la e exigir o equivalente ao seu valor mais as perdas e danos. Anote-se, porém, que, por questão de bom senso, os pequenos estragos, que não comprometem em nada a utilidade da coisa, não podem conferir ao credor o direito de rejeitá-la.
Se, na obrigação de restituir, sobrevier melhoramentos ou acréscimos à coisa, sem despesa ou trabalho do devedor, lucrará o credor, desobrigando da indenização (art.241 do CC). Trata-se da aplicação do princípio de que o acessório segue o principal. Se para o melhoramento, ou aumento, empregou o devedor trabalho ou dispêndio, o fato passa a ser regulado pelas normas que regem as benfeitorias (art. 242 do CC), isto é, o possuidor de má-fé só terá direito a indenização pelos melhoramentos necessários, que são os destinados à conservação do bem, sonegando-lhe, porém, o direito de retenção, perdendo, em prol do credor, os melhoramentos úteis e voluptuários, sem qualquer indenização (art.1.220). Já o possuidor de boa-fé será indenizado dos melhoramentos necessários e dos úteis (que torna o bem mais servível), sobre os quais ainda terá direito de retenção até receber o valor da indenização, podendo ainda, levantar os melhoramentos voluptuários (os feitos para fim de recreio ou embelezamento do bem), se não for reembolsado do seu valor (art. 1.219). A regra do art. 242, porém, sofre exceção em relação ao comodatário, pois este, conforme dispõe o art. 584 do CC, não poderá jamais recobrar do comodante as despesas feitas com o uso e gozo da coisa emprestada.
Quanto aos frutos percebidos, observar-se-á também o disposto no Código Civil acerca do possuidor de boa-fé ou má-fé (art.242, parágrafo único), isto é, o possuidor de boa-fé tem direito aos frutos percebidos tempestivamente (art. 1.214), mas não terá direito aos frutos pendentes nem aos colhidos com antecipação (parágrafo único do art. 1.214). Já o possuidor de má-fé não tem direito a nenhum fruto, devolvendo os colhidos e indenizando os que, por sua culpa, deixou de perceber; contudo tem direito às despesas da produção e custeio dos frutos (art. 1.216 do CC).
Os frutos percipiendos (os que podiam, mas não foram colhidos) pertencem ao credor a partir da tradição.
OBRIGAÇÃO DE DAR COISA INCERTA OU OBRIGAÇÃO GENÉRICA
Vimos que, nessa obrigação, a coisa é indicada pelo gênero e quantidade. Sua prestação é relativamente indeterminada, mas passível de determinação pelo ato de escolha, distinguindo-se da obrigação de dar coisa certa, que não há escolha, pois a coisa já é determinada de modo específico.
Dois são os requisitos dessa obrigação:
a) indicação do gênero próximo a que pertence a coisa;
b) indicação da quantidade.
Não basta, pois, a indicação do gênero, urge ainda que se delimite a quantidade, sob pena de inexistência da obrigação, por falta de determinação do objeto. Assim, é inexistente a obrigação em que A promete vender café a B, pois a quantidade não foi delimitada.
Por outro lado, o gênero sob o prisma jurídico, é o conjunto de seres semelhantes, isto é, a classe de objetos com caracteres comuns.
O código, ao cuidar da obrigação de dar coisa incerta, refere-se, evidentemente, ao gênero próximo, indicativo da espécie. É válido, por exemplo, a obrigação em que A promete vender para B 10 (dez) sacas de café, ainda que não especifique a marca. Tratando-se, porém, do chamado gênero remoto, isto é, indeterminado, que não indica sequer a espécie, a obrigação será inexistente. Exemplos: A promete vender 10 (dez) animais para B ou então 20 Kg de alimentos.
Por outro lado, na obrigação de dar coisa incerta, há a fase da escolha, que, no silêncio do negócio, será efetuada pelo devedor (art. 244). A escolha, isto é, a separação das coisas, só se consuma, vinculando o devedor, quando o credor é dela cientificado (art. 245 do CC.). A partir daí, o devedor não poderá mais alterá-la unilateralmente.
Quando o credor é cientificado da escolha ocorre a chamada concentração do débito; desde então, a obrigação de dar coisa incerta transforma-se em obrigação de dar coisa certa, regendo-se pelas normas que disciplinam essa última obrigação.
Sobre o critério da escolha, quando esta é feita pelo devedor, ou por terceiro designado por ambas as partes, devem seguir o princípio do meio-termo, isto é, ele deverá escolher, pela média, nem as piores nem as melhores, de modo que essa liberdade de escolha é relativa. Exemplo: Se o devedor deve entregar 10 sacos de café da qualidade A, B ou C, a entrega há de recair sobre a qualidade B. Se, porém, a escolha for deferida ao credor, este poderá escolher as melhores, a nata do gênero, salvo se esta não era a intenção das partes. No processo de execução para entrega de coisa incerta, se a escolha couber ao credor-exequente, este indicará os bens na petição inicial, sob pena de renúncia do direito de escolha (art. 629 do CPC). Se, no entanto, a escolha competir ao devedor-executado, este será citado para entregá-las individualizadas. Qualquer das partes poderá, em quarenta e oito horas, impugnar a escolha feita pela outra, e o juiz decidirá de plano, ou, se necessário, ouvindo perito de sua nomeação (art.630 do CPC). Após a escolha, aplica-se o procedimento da execução para a entrega de coisa certa (art. 631 do CPC). Vale lembrar a corrente que sustenta que o credor, quando lhe couber a escolha, também deve seguir pelo meio-termo, aplicando-lhe o art. 244 do CC (princípio da equivalência das prestações), mas que, a meu ver, trata apenas da escolha pelo devedor.
É equivocado o raciocínio de que a obrigação de dar coisa incerta só é compatível com os bens fungíveis. Conquanto isso seja mais usual, nada obsta compreenda também bens infungíveis, como, por exemplo, a promessa de vender por um preço certo um dos três quadros de determinado pintor.
No concernente ao perecimento ou deterioração da coisa antes da entrega, é irrelevante que haja ou não culpa do devedor, subsistindo na íntegra a obrigação, porque o gênero não perece (genus non perit). Assim, o sujeito que vende 100 (cem) sacas de café, não se exonera da obrigação, alegando o perecimento da coisa por caso fortuito ou força maior, pois, em tese, como ensina Silvio Rodrigues, poderá obter alhures tal mercadoria, a fim de proceder à entrega a que se comprometeu.
Essa máxima genus non perit é aplicável apenas às coisas pertencentes a gênero ilimitado. Exemplos: dinheiro, café, açúcar etc. Se a coisa pertencer a gênero limitado, o perecimento de todas as espécies que a componham acarretará a extinção da obrigação, responsabilizando-se o devedor pelas perdas e danos apenas na hipótese de ter procedido com culpa.
A propósito, quando o gênero é limitado a obrigação de dar coisa incerta denomina-se obrigação quase-genérica. O gênero é limitado quando existe uma delimitação, quer porque a quantidade é escassa, quer porque o negócio faz referência a coisas que se acham num certo local ou que pertençam a certa pessoa ou ainda que sejam referentes a determinada época ou acontecimento. Exemplo: A vende para B 10 (dez) garrafas de vinho de sua safra de 1970.
Em relação ao gênero ilimitado, Maria Helena Diniz cita um único caso em que o devedor se exonera da obrigação, sem ter que indenizar o credor. Tal ocorre quando a perda ou deterioração de coisa, que não é mais fabricada, se der em virtude de caso fortuito ou força maior. Ora, a meu ver, a hipótese é de gênero limitado, pois a quantidade do bem era restrita.
Referentemente à multa diária (astreintes) pelos dias de atraso ao cumprimento da obrigação, é prevista na obrigação de dar, entregar e restituir, quando envolver coisa certa, por força do parágrafo único do art. 621 do CPC, excluindo-se essa possibilidade quando se tratar de obrigações pecuniárias. Na obrigação de dar coisa incerta, a multa diária, a meu ver, não é cabível, por falta de previsão legal. Assim, o devedor é citado para em 10 dias entregar as coisas individualizadas, sob pena de preclusão, transferindo-se o direito de escolha ao credor, em vez de se lhe aplicar a multa diária. Todavia, após a individualização da coisa, isto é, após a escolha, a obrigação torna-se de coisa certa, sendo cabível, a partir daí, a multa diária, por força do parágrafo único do art. 621 do CPC.
Referências bibliográficas
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GOMES, Orlando. Obrigações, Forense. 17 ed. Rio de Janeiro, 2007.
NADER, Paulo. Curso de Direito Civil, Obrigações. Forense. 5 ed. Rio de Janeiro, 2010.
DINIZ, Maria Helena. Curso Brasileiro de Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações, 1998.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro - Teoria Geral das Obrigações, 15ª edição. São Paulo: Saraiva, 2018, v. 2.
VENOSA, Silvio de Salvo Venosa, Direito Civil, Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos, 10ª edição, ATLAS, São Paulo, 2010.