Aonde é que foi parar a solidariedade? Uma breve análise sobre as festas clandestinas na pandemia e o prazer das pessoas pelo proibido.

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Diante do caos que estamos vivendo é mesmo curioso pensar no que leva as pessoas a gostarem do proibido, a sentirem prazer em não cumprirem as regras e a celebrarem – aglomerados - a vida, com tantas mortes ocorrendo diariamente.

No início da pandemia da COVID-19, antes de registrar o primeiro caso de infecção da doença o Poder Legislativo brasileiro editou a Lei nº 13.979/2020 que previu medidas excepcionais a serem utilizadas no enfrentamento do estado de calamidade pública.

Essas medidas consistem, basicamente, na restrição da liberdade individual das pessoas em prol do bem coletivo (combate ao coronavírus). 

Embora a vigência da referida Lei estivesse, de maneira pouco técnica, vinculada à vigência do Decreto Legislativo nº 6/2020, prudentemente o STF prorrogou a aplicabilidade das medidas sanitárias previstas na mencionada legislação, a fim de conter a disseminação ainda mais desenfreada da doença no país no final do ano passado.

Em sua decisão, de 30 de dezembro de 2020, o Ministro relator considerou a infeliz permanência da doença e o crescente aumento de infectados e mortos no país para prorrogar a possibilidade de incidência das medidas de restrição, a fim de que elas “continuassem a integrar o arsenal das autoridades sanitárias para combater a pandemia[1]. Em seus argumentos, o Ministro Relator Ricardo Lewandowski destacou:

“(...) a insidiosa moléstia causada pelo novo coronavírus segue infectando e matando pessoas, em ritmo acelerado, especialmente as mais idosas, acometidas por comorbidades ou fisicamente debilitadas. Por isso, a prudência - amparada nos princípios da prevenção e da precaução,14 que devem reger as decisões em matéria de saúde pública - aconselha que as medidas excepcionais abrigadas na Lei n° 13.979/2020 continuem, por enquanto, a integrar o arsenal das autoridades sanitárias para combater a pandemia.[2]”     ( ADI 6625 MC / DF).

As medidas sanitárias, atreladas aos programas de vacinação, são instrumentos comprovadamente eficazes para que as autoridades tentem conter o avanço da pandemia no país, que se alastra, especialmente, por meio do contato entre pessoas.

A Lei Federal nº 13.979/2020 traz diversas dessas medidas excepcionais restritivas. Algumas delas são: determinação de realização compulsória de isolamento social, de quarentena, exames médicos, de testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação e outras medidas profiláticas; a exigência do uso de máscaras de proteção individual, restrição excepcional e temporária, por rodovias, portos ou aeroportos, dentre outras medidas restritivas.

Não obstante a liberdade seja regra no nosso país e nos demais países do globo, vivemos um estado de exceção que reclama medidas também excepcionais, inclusive a de restrição parcial da “liberdade de ir e vir” do indivíduo, para salvaguardarmos o bem maior que é a vida de todas as pessoas do mundo.

É por isso que, desde o início da pandemia, a produção legislativa aumentou para regular a sociedade nos moldes da nova realidade que se instalava, determinando regras e limitações da vida do indivíduo, com olhos no comportamento do vírus mortal. No Brasil, os Estados soberanos, Distrito Federal e os Municípios tiveram sua autonomia e competência para legislar e ampliar as restrições sociais reconhecidas pelo STF[3], portanto cada ente federativo é livre para legislar sobre o tema, trata-se da chamada competência concorrente. No Estado de São Paulo são diversos os Decretos que regulamentam a quarentena e as medidas sanitárias transitórias e de caráter excepcional.

Uma das tantas medidas restritivas é a proibição de aglomerações e, por óbvio, a proibição e o controle do funcionamento de casas noturnas, realização de shows e eventos lotados de pessoas, já que a doença de dissemina por meio do contato entre pessoas infectadas e não infectadas.

Para estes casos a legislação paulista[4] prevê imposição de multa graduada de acordo com a quantidade de pessoas presentes no evento clandestino. A multa será de 500 (quinhentas) a 1.000 (mil) vezes o valor nominal da Unidade Fiscal do Estado de São Paulo – UFESP, para infrações relativas a eventos com aglomeração inferior a 100 (cem) pessoas; para infrações relativas a eventos com aglomeração de 100 (cem) até 500 (quinhentas) pessoas, a multa é de 1.001 (mil e uma) a 3.000 (três mil) vezes o valor nominal da Unidade Fiscal do Estado de São Paulo – UFESP e para infrações relativas a eventos com aglomeração superior a 500 (quinhentas) pessoas, a multa prevista é de 3.001 (três mil e uma) a 10.000 (dez mil) vezes o valor nominal da Unidade Fiscal do Estado de São Paulo – UFESP.

O valor da UFESP para o ano de 2021 é de R$ 29,09 (vinte e nove reais e nove centavos). Façam as contas!

A legislação prevê, ainda, a possibilidade de aplicação da multa em dobro na hipótese de reincidência; também a aplicação da pena de prestação de serviços à comunidade de modo alternativo ou cumulativo com as demais sanções e a penalidade de interdição do estabelecimento, sendo que se forem aplicadas três interdições ao mesmo infrator no período de um ano, ele estará sujeito à sanção de interdição definitiva do estabelecimento, prevista no inciso III do artigo 115 do Código Sanitário do Estado de São Paulo.

Além das penalidades previstas nos Decretos, o descumprimento das medidas sanitárias impostas pelo Poder Público configura o delito previsto no artigo 268 do Código Penal, qual seja: o crime de infração de medida sanitária preventiva, que tem pena de detenção de um mês a um ano e multa.

Não obstante o aparato legislativo e a previsão de punição para estes casos, notícias sobre festas clandestinas realizadas Brasil afora têm sido recorrentes. Isso nos mostra que o arcabouço legislativo e o esforço de muitos para a contenção do avanço do coronavírus não parecem eficazes para impedir tais condutas.

A impressão que temos é de que a aglomeração clandestina virou um seguimento rentável e instigante para quem promove e para quem frequenta. Os organizadores destes eventos justificam a realização de festas clandestinas na necessidade do sustento próprio e da família, já que é esta a única fonte de renda que possuem e os frequentadores argumentam, muitas vezes, que sua participação nestas aglomerações se explica pela necessidade de socializar, sair de casa, encontrar pessoas.  Vê-se que todas as justificativas são um tanto quanto egoístas e consideram apenas o próprio indivíduo.

Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo são os maiores palcos das festas clandestinas no Brasil. Temos visto de tudo um pouco: festa temática em embarcação de luxo no Amazonas, a “famosa” festa Circus em Magé, no Rio de Janeiro, inúmeras festas em São Paulo e cada dia um espetáculo de aglomeração diferente no Brasil (e em outros países também).

O “esquema” para que estas festas ocorram é profissional. Os organizadores divulgam o local e a data do evento em cima da hora para evitar que sejam pegos. Algumas dessas festas sugerem que os celulares dos frequentadores sejam retidos na entrada para que não haja registros, filmagens que, futuramente, venha a incriminá-los.

Segundo dados do site do governo do Estado de São Paulo[5], a Força-Tarefa fechou 2.475 festas clandestinas e comércios irregulares, no período entre 12 de março e 12 de abril deste ano, na capital, interior e litoral do Estado. Ainda assim as festas seguem acontecendo.

 Não são raras as discussões sobre a criminalização de novas condutas. Quer comportamento mais agressivo e repugnante do que uma aglomeração e a realização de festas clandestinas em plena pandemia, quando sabemos que o vírus se transmite pelo contato entre pessoas? Por que o legislador não cria um crime específico de aglomeração na pandemia? O novo tipo penal para a “aglomeração clandestina” deveria prever quantos anos de reclusão para que fosse suficiente para desencorajar os frequentadores e organizadores dessas festas e shows que temos visto acontecer? As penas previstas pelos Decretos Estaduais e também no crime previsto no artigo 268 do Código Penal são brandas e por isso as pessoas continuam realizando estas festas? O que leva as pessoas a burlarem as regras e criarem esquemas profissionais para tanto?

Penso que essas questões são muito mais complexas do que simplesmente enrijecer a lei. Algumas condutas são praticadas à revelia das regras e, não importa o quanto se legisle, o quanto as penas de prisão sejam aumentadas, as pessoas seguirão subvertendo a ordem. O Direito Penal é sim um forte instrumento de controle social, porém deve ser a ultima ratio[6].

Como vimos, já temos punição para a conduta de descumprir medida sanitária de cumprimento obrigatório (art. 268 do CP) com pena de detenção, sujeitando o agente, inclusive, à marca dos antecedentes criminais, fora as multas pecuniárias. Não da para crer que a insuficiência do valor da multa ou que o pouco tempo que o infrator pode passar na cadeia sejam os únicos motivos responsáveis pelo comportamento desumano da multidão.

Considerando todas as ciências sociais aplicadas, a disciplina do Direito não dá conta de compreender sozinha determinadas condutas, tampouco inibi-las.

Tenho profunda admiração pelos profissionais que se dedicam a estudar e tentar compreender mente e comportamentos humanos. É curioso como as pessoas sentem prazer em burlar regras e, em grupo, a impressão que dá é de que os infratores ficam ainda mais corajosos e impulsionados a fazê-lo. Não é apenas impressão, a psicologia estuda e denomina esse fenômeno de “comportamento de manada” ou “psicologia das massas”, segundo Freud, ou ainda “inconsciente coletivo” para Carl Jung.

Diante do caos que estamos vivendo é mesmo curioso pensar no que leva as pessoas a gostarem do proibido, a sentirem prazer em não cumprirem as regras e a celebrarem aglomerados a vida, com tantas mortes ocorrendo diariamente. Nessa hora, o ditado popular que ecoa como um questionamento é: “o proibido é mais gostoso”.

Será mesmo que proibido é mais gostoso? Foi o que pesquisei e, em matéria publicada na revista digital “Eclética” da PUC-Rio encontrei a opinião da psicanalista e professora Madalena Sapucaia, que discorda do ditado popular afirmando que: “o proibido não é necessariamente mais gostoso, e sim mais culpável. Na vida social, a neurose é a melhor forma de funcionamento do sujeito e também a mais comum. Somos todos neuróticos, e só um neurótico é marcado pela culpa, resultado da realização de um ato ilícito”[7]. A matéria pondera ainda que, no senso comum, o proibido é mais gostoso porque o risco de ser pego produz adrenalina[8].

De fato não sei se criminalizar de forma mais robusta estas condutas seria suficiente para inibi-las. Tentar entender estes comportamentos é uma tarefa complexa e demorada. Entender os comportamentos sociais e pretender modifica-los requer tempo e educação.

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Hoje precisamos de ações coletivas eficientes que vão além da atividade legislativa e perpassam pelo senso de coletividade, empatia, educação e conscientização de toda uma nação em prol do coletivo. Sabedores de que a educação primária no Brasil é extremamente precária, duvido que em tempo recorde alcancemos esse movimento coletivo positivo, na busca de abrandar os efeitos da pandemia. A verdade é que para viver em sociedade o homem precisa abrir mão de certos desejos pessoais, como ensina Rousseau desde 1762[9] e ainda não estamos preparados para tanto.

Assim, impossibilitados de modificar o inconsciente coletivo para que sejamos uma nação mais empática e lutemos todos juntos contra o avanço do coronavírus ou de qualquer ameaça à coletividade, meu apelo é para que sigamos com os instrumentos que nos são dados e que, hoje, são o meio eficiente que temos de contribuir para uma sociedade futura melhor, mais justa e mais empática.

Qualquer pessoa pode denunciar festas clandestinas e o funcionamento irregular de serviços não essenciais pelo telefone 0800-771-3541, site procon.sp.gov.br ou pelo e-mail [email protected] , do Centro da Vigilância Sanitária. Façamos, então, a nossa parte.


[1] Palavras do Ministro, no penúltimo parágrafo da decisão na ADI 6625 MC /DF.

[2] Leia a íntegra da decisão: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI6.625MC4.pdf

[3] Conforme decisão proferida em 15/04/2020 pelo STF - (ADI) 6341.

[4] Vide Decreto nº 65.671 de 04 de maio de 2021, Decreto nº 64.994 de 28 de maio de 2020 e Decreto nº 64.887 de 22 de março de 2020, todos do Estado de São Paulo.

[5] para mais veja https://www.saopaulo.sp.gov.br/noticias-coronavirus/forca-tarefa-fecha-2-475-festas-clandestinas-e-comercios-irregulares-2/

[6] Segundo Rogério Sanches Cunha, na obra Revisaço, Direito Penal: Ultima ratio, como princípio norteador do Direito Penal, significa que a lei penal se aplica quando somente ela é capaz de evitar a ocorrência de atos ilícitos ou de puni-los à altura da lesão ou do perigo a que submeteram determinado bem jurídico, dotado de relevância para a manutenção da convivência social pacífica. É a partir daí que se verifica a importância do princípio da intervenção mínima (destinado especialmente ao legislador), segundo o qual o Direito Penal só deve ser aplicado quando estritamente necessário.

[7] para mais veja http://puc-riodigital.com.puc-rio.br/media/Ecletica%2035%20%20%20%20%20%203%C2%AA%20materia.pdf

[8] Idem

[9] Data da primeira publicação do Livro “O contrato social”, de
Jean-Jacques Rousseau

Sobre a autora
Marina Vezu Macedo de Oliveira

Advogada. Direito civil, penal e administrativo. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Bacharel pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (FDSBC).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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