Produzido no início dos anos 2000 pelo Centro de Produção Cultural e Educativa (CPCE) da Universidade de Brasília (UnB), o documentário "Direito Achado na Rua" aborda inúmeras temáticas comuns – e até inerentes – aos estudantes e profissionais do Direito, como políticas públicas, participação popular, democracia e propriedade privada. Dirigido por Cesar Mendes, o filme fundamenta-se na proposta didática do jurista Roberto Lyra Filho (1926-1986) de investigar as variadas definições e concepções que as pessoas – em seus diversos campos de atuação e vivência, incluindo o científico – têm sobre o Direito, e como isso impacta diretamente suas vidas.
Inicialmente, na rua, um repórter colhe definições diversas – algumas até mesmo fragmentadas ou de difícil compreensão – de indivíduos escolhidos aleatoriamente, questionando sobre algo que, à primeira vista, parece de fácil definição: afinal, o que é o Direito?
Em seguida, contrastando diretamente com essa abordagem popular, são apresentados depoimentos de estudiosos que definem e analisam o Direito, expondo suas características e sua relação intrínseca com o Estado. A análise transcende o mero Direito positivo, reconhecendo-o também como fenômeno social, caracterizando-o, por meio de movimentos populares, como um Direito que emerge do povo e se volta para a sociedade. Como expõe o professor José Geraldo de Souza Júnior, coordenador do documentário e organizador de livro homônimo: “[...] Para o Direito Achado na Rua, embora se reconheça o papel do Estado na declaração do direito, o entendimento é que o Estado apenas o declara; entretanto, o direito emerge, surge da sociedade e não se esgota na enunciação legal que o estado produz, isto é: continua a haver direito além da lei, fora da lei e mesmo contra a lei[...]”. O Direito, portanto, revela-se contraditório, sem definição única, abarcando não apenas o direito dos estratos dominantes, mas também aquele que se ergue das lutas dos excluídos.
De acordo com Maria Célia Paoli, então professora de Sociologia da USP, “O Direito Achado na Rua implica em que a rua é o espaço de organização dos movimentos sociais populares, que trazem tão profundamente a demanda desse direito a ter direitos e que fala uma outra linguagem através da qual a clássica inspiração de justiça social é demandada. [...]”. Assim, o povo, percebendo-se como agente na busca pelos direitos que lhes são negados, faz da rua o local ideal para expressar suas identidades, manifestar suas indignações e debater suas pautas.
O Poder Judiciário, tema recorrente na filmagem, é apresentado como um “poder sem poder”, criticado por ser um sistema permeado de promessas não cumpridas e pela morosidade no andamento dos processos da época, muitas vezes oferecendo soluções tardias que já não atendiam às necessidades das partes. Nesse contexto, valorizam-se as mobilizações de grupos de juízes que, defendendo uma organização mais eficiente do Judiciário, buscaram resgatar sua credibilidade e a confiança da população.
Em um país marcado pela crescente desigualdade, a ideia tradicional de Justiça como "dar a cada um o que é seu" é questionada como insuficiente ou inadequada. Essa crítica é ecoada por juristas que, inspirados por correntes como o Direito Alternativo, propõem uma interpretação mais humanizada e socialmente engajada do Direito, a fim de "vivificar" o sistema jurídico.
Ao final do documentário, são expostos fragmentos da desocupação de uma ocupação no Distrito Federal, autorizada pelo Governo em agosto de 1987, na qual foram derrubados 270 barracos em uma área considerada nobre. Como alternativa, o Governo ofereceu passagens de volta para as terras de origem ou a realocação em um assentamento distante 70 quilômetros. A proposta foi aceita pela maioria, exceto por um grupo de 50 famílias que, resistindo, lutou pelo direito de permanecer no Distrito Federal. Após um ano de luta, obtiveram êxito, dando origem à Vila Nova Esperança.
Não por acaso, o documentário continua relevante, abordando temáticas que permanecem atuais. À primeira vista, reforça a percepção de que há muito a melhorar em matéria de Direito – seja tornando a legislação mais socialmente sensível, reconhecendo-a como fruto da convivência, seja legitimando os direitos que emergem das lutas populares ("que têm a rua como plenário"). O argumento de que "cada um tem o seu lugar" ou de que justiça é meramente "dar a cada um o que é seu" mostra-se insustentável. Tais expressões, há muito tempo – quiçá alguma vez –, já não cumprem o que se espera da Justiça em uma sociedade desigual. Nesse sentido, ao refletir sobre a concessão do Direito devido a cada um, Lyra Filho propõe: “admite-se a regra justa como sendo a de dar a cada um segundo o seu trabalho, enquanto não seja possível a aplicação do princípio de dar a cada um segundo a sua necessidade” (extraído de “O que é o Direito”).
Destarte, os pouco mais de 20 minutos do documentário são um convite extraordinário à reflexão sobre as múltiplas facetas e as potenciais insuficiências do Direito, compreendido não como algo estático, mas como um fenômeno vivo, que "encontra moradia no seio da comunidade", a qual o vive, o cria, o renova e por ele batalha. É necessário, contudo, contextualizar a análise, reconhecendo que alguns aspectos criticados na época podem ter evoluído – como o Poder Judiciário que, apesar dos desafios persistentes, tornou-se, em muitos aspectos, mais acessível e ágil.
Analisar o documentário é um exercício desafiador e necessário para todos aqueles dedicados à concretização dos Direitos Humanos, oferecendo farto material para análise e debate.
A mensagem final sobre a verdadeira ferramenta democrática para a conquista e melhoria dos direitos ecoa nas palavras de Maria da Cruz, moradora da Vila Nova Esperança: a luta não deve ser individualista, mas coletiva, visando ao bem comum, pois, como ela afirma, “é a união que forma a força”.