A CONSTITUCIONALIDADE DA LEI ESTADUAL QUE IMPEDE O CORTE NO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA DURANTE A PANDEMIA DO NOVO CORONAVÍRUS: PREVALÊNCIA DA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA CONCORRENTE.

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O presente artigo trata da prevalência da competência legislativa concorrente, reconhecendo-se a constitucionalidade da lei estadual que versa sobre a impossibilidade de corte no fornecimento de energia elétrica durante a pandemia do novo coronavírus.

Diante do cenário pandêmico que se alastra desde o início de 2020, os agentes públicos foram instados a buscar soluções para assegurar a continuidade do funcionamento dos serviços públicos e, assim, assegurar minimamente o bem-estar social, diante da gravidade e excepcionalidade da situação.

Nesse contexto, em que se demonstra de extrema necessidade a coordenação de atuações e cooperação entre os três poderes de todos os entes federativos, foi editada, em Roraima, a Lei n. 1.389/2020, que, segundo a ementa, trata de “medidas de proteção à população roraimense durante o plano de contingência da Secretaria de Estado da Saúde relacionado ao Coronavírus - COVID-19.”

Referida lei teve sua constitucionalidade questionada no Supremo Tribunal Federal por meio da ADI 6.432 movida pela ABRADEE – Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica –, por dispor, dentre outros pontos, sobre corte no fornecimento de energia elétrica.

Com a referida ação de controle concentrado objetivou-se a declaração de inconstitucionalidade da expressão “energia elétrica”, contida no § 1º do art. 2º da Lei n. 1.389/2020 de Roraima, além da interpretação conforme à Constituição do § 2º do art. 2º e dos arts. 3º, 4º, 5º e 6º da lei em comento, “reconhecendo[-se] a nulidade de qualquer sentido ou interpretação que inclua o serviço de energia elétrica no referido regramento do Estado de Roraima”. Confira-se a redação dos dispositivos legais estaduais:

“Art. 2º Ficam proibidas as concessionárias de serviços públicos essenciais de cortar o fornecimento residencial de seus serviços por falta de pagamento de suas respectivas contas, enquanto perdurar o estado de emergência decorrente de situações de extrema gravidade social, no âmbito do estado de Roraima.

§ 1º Entendem-se como serviços públicos essenciais, para efeito do disposto no caput deste artigo, o fornecimento de água, energia elétrica e tratamento de esgoto.

§ 2º Após o fim das restrições decorrentes do plano de contingência, as concessionárias de serviço público, antes de proceder à interrupção do serviço em razão da inadimplência anterior a março de 2020, deverão possibilitar o parcelamento do débito das faturas referentes ao período de contingência.

§ 3º O débito consolidado durante as medidas restritivas não poderá ensejar a interrupção do serviço, devendo ser cobrado pelas vias próprias, sendo vedada a cobrança de juros e multa.

Art. 3º Ao consumidor que tiver suspenso o fornecimento fica assegurado o direito de acionar juridicamente a empresa concessionária por perdas e danos, além de ficar desobrigado do pagamento do débito que originou o referido corte.

Art. 4º Fica estabelecido que, cessado o estado de emergência, o consumidor deverá procurar as respectivas concessionárias de serviços públicos de água e energia elétrica, a fim de quitar o débito que, por ventura, venha a existir.

Art. 5º Ficam suspensos a incidência de multas e juros por atraso de pagamento das faturas de serviços públicos concedidos enquanto perdurar o plano de contingência da Secretaria de Estado da Saúde.

Art. 6º O descumprimento ao disposto na presente Lei ensejará a aplicação de multas, nos termos do Código de Defesa do Consumidor, pelos órgãos responsáveis pela fiscalização, em especial, o Programa de Proteção e Orientação ao Consumidor do Estado de Roraima (PROCON-RR).”

Segundo alegado pela requerente, em linhas gerais – e adstringindo-se à temática do artigo proposto –, os dispositivos supra infringiriam a competência constitucional privativa atribuída à União para legislar sobre energia elétrica[1], ao impedir o corte do serviço por falta de pagamento e, também, ao tratar das consequências financeiras da pandemia a respeito da prestação do serviço de fornecimento de energia elétrica.

Nesse diapasão, no dia 08/04/2021, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento meritório da referida ação objetiva, decidindo, por maioria, pela constitucionalidade dos dispositivos legais então vergastados, em acórdão assim ementado:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA CAUTELAR. EXPRESSÃO ENERGIA ELÉTRICA, PREVISTA NO § 1º DO ART. 2º DA LEI N. 1.389/2020 DE RORAIMA: PEDIDO DE INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO DO § 2º DO ART. 2º E DOS ARTS. 3º, 4º, 5º E 6º DA LEI ESTADUAL PELA QUAL VEDADA A INTERRUPÇÃO DO SERVIÇO DE DISTRIBUIÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA PELA INADIMPLÊNCIA DOS USUÁRIOS: COBRANÇA E PAGAMENTO DOS DÉBITOS. FLUÊNCIA E EXIGIBILIDADE DE MULTA E JUROS MORATÓRIOS PELOS DÉBITOS SOBRE A FRUIÇÃO DO SERVIÇO DURANTE A PANDEMIA DA COVID-19. NORMAS DE DIREITO DO CONSUMIDOR E DE PROTEÇÃO À SAÚDE PÚBLICA. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA CONCORRENTE DA UNIÃO, DOS ESTADOS E DO DISTRITO FEDERAL. INCS. V E XII DO ART. 24 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. AÇÃO DIRETA JULGADA IMPROCEDENTE.

1. Conversão do rito do art. 10 para o rito do art. 12 da Lei n. 9.868/1999. Julgamento definitivo do mérito considerada a formalização das postulações e dos argumentos jurídicos, sem necessidade de novas informações. Precedentes.

2. Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica – Abradee: parte legítima ativa para propositura da ação direta. Precedentes.

3. São constitucionais as normas estaduais que veiculam proibição de suspensão do fornecimento do serviço de energia elétrica, o modo de cobrança e pagamentos dos débitos e exigibilidade de multa e juros moratórios, limitadas ao tempo da vigência do plano de contingência, em decorrência da pandemia de Covid-19, por versarem, essencialmente, sobre defesa e proteção dos direitos do consumidor e da saúde pública. Precedentes.

4. É concorrente a competência da União, dos Estados e do Distrito Federal para legislar sobre consumo e proteção à saúde pública, nos termos dos incs. V e XII do art. 24 da Constituição da República.

5. As normas impugnadas, excepcionais e transitórias, editadas em razão da crise sanitária causada pelo novo coronavírus, não interferem na estrutura de prestação do serviço público de energia elétrica, nem no equilíbrio dos respectivos contratos administrativos. Ação direta julgada improcedente para declarar constitucionais as normas, na parte afeta à expressão “energia elétrica”, previstas no § 1º do art. 2º, no § 2º do art. 2º e nos arts. 3º, 4º, 5º e 6º da Lei n. 1.389/2020 de Roraima.”

Da análise dos autos, constata-se que o cerne da questão remetia à controvérsia de possível violação de competências constitucionais privativas da União.

Se, de um lado, os Estados e o Distrito Federal possuem competência concorrente legislativa para editar leis acerca de proteção do consumidor e proteção e defesa da saúde, tal qual estabelecem o art. 24, V[2], da CRFB/1988 e o art. 24, XII[3], ambos da CRFB/1988; por outro, cabe privativamente à União explorar diretamente ou por autorização, concessão ou permissão os serviços de energia elétrica e legislar sobre energia elétrica, conforme a alínea b do inciso XII do art. 21[4] e inciso IV do art. 22[5] da Constituição da República.

Em que pese a iterativa jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que a outorga, à União, da responsabilidade pela exploração do serviço público de fornecimento de energia elétrica compreende, igualmente, a competência para legislar sobre a mesma matéria – definindo, assim, o regime jurídico de concessão ou permissão insuscetível de modificação pelo legislador estadual ou municipal[6] –, construiu-se o entendimento paralelo de que a legislação local que dispõe a respeito do vínculo consumerista entre concessionária e consumidor não interfere no próprio regime de exploração ou na estrutura remuneratória da prestação do serviço per se.

Veja-se excerto da ementa do acórdão da ADI 4.908, de relatoria da Ministra Rosa Weber, em que se declarou a constitucionalidade de norma estadual que determinava o cancelamento de multa contratual em caso de perda de emprego pelo usuário consumidor:

“3. Implementada norma de proteção ao consumidor que, rigorosamente contida nos limites do art. 24, V, da Carta Política, em nada interfere no regime de exploração, na estrutura remuneratória da prestação dos serviços ou no equilíbrio dos contratos administrativos, inocorrente usurpação da competência legislativa privativa da União, e, consequentemente, afronta aos arts. 1º, 21, IX, 22, IV, e 175 da Constituição da República. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente” (ADI n. 4.908, Relatora a Ministra Rosa Weber, Plenário, DJe 6.5.2019).

A bem da verdade, o tema tratado na ADI 6.432 não foi algo inédito a ser analisado pela Suprema Corte, visto que, em sessão de julgamento do dia 11/12/2020 ao dia 18/12/2020, o Plenário Virtual decidiu por maioria, em caso similar, pelo indeferimento de medida cautelar que pretendia suspender normas do Paraná, considerando constitucional a proibição de concessionárias de água e energia realizar o corte residencial em dias determinados por falta de pagamento, tendo sido assentado:

“COMPETENCIA NORMATIVA – CONSUMIDOR – PROTEÇAO – LEI ESTADUAL – RAZOABILIDADE. Atendidos os parâmetros alusivos à razoabilidade, surge constitucional norma estadual a versar proibição de as empresas concessionárias de serviços públicos suspenderem, ausente pagamento, fornecimento residencial de água e energia elétrica em dias nela especificados, ante a competência concorrente dos Estados para legislar sobre proteção aos consumidores – artigo 24, inciso V, da Constituição Federal” (ADI n. 5.961, Relator o Ministro Alexandre de Moraes, Redator para o acórdão o Ministro Marco Aurélio, Plenário, 26.6.2019).

Recentemente, o STF julgou, mais uma vez, constitucionais a lei do Estado do Amazonas que proibia concessionárias de água e energia elétrica de efetuar o corte do fornecimento por débitos durante a pandemia[7], tendo os ministros, por maioria, entendido pela ausência de interferência na atividade-fim das pessoas jurídicas abrangidas pela eficácia da lei, de forma a inexistir usurpação de competência da União.

O julgamento da ADI 6.432 denota que, no STF, prevalece o entendimento de que a edição de leis estaduais que tratam da vedação à interrupção do fornecimento de energia elétrica (enquanto persistente o cenário pandêmico),– longe de afetar a relação jurídica contratual estabelecida entre o Poder Público e a concessionária de energia, isto é, o núcleo essencial do contrato de prestação de serviços –, busca unicamente regulamentar a relação entre o usuário do serviço e a empresa concessionária, oferecendo algum tipo de proteção àqueles, diante da situação de calamidade pública gerada pelo cenário pandêmico.

Aliás, este entendimento faz prevalecer justamente a competência legislativa concorrente, como bem delineia a doutrina:

“A Constituição Federal prevê, além de competências privativas, um condomínio legislativo, de que resultarão normas gerais a serem editadas pela União e normas específicas, a serem editadas pelos Estados-membros. O art. 24 da Lei Maior enumera as matérias submetidas a essa competência concorrente, incluindo uma boa variedade de matérias (...). A divisão de tarefas está contemplada nos parágrafos do art. 24, de onde se extrai que cabe à União editar normas gerais – i. é, normas não exaustivas, leis-quadro, princípios amplos, que traçam um plano, sem descer a pormenores. Os Estados-membros e o Distrito Federal podem exercer, com relação às normas gerais, competência suplementar (art. 24, § 2.º), o que significa preencher claros, suprir lacunas”[8]

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Pois bem, conforme consignado no julgamento da ADI 6.432, há um claro objetivo do legislador estadual de proteger o consumidor em situação de extrema gravidade social, considerando que a energia elétrica é essencial à satisfação das necessidades básicas da população, revelando-se que a continuidade do serviço é fundamental para o combate ao coronavírus. E isso, em nada destoa, das normas gerais editadas pela União.

Ainda, considerando que a proteção e defesa da saúde é matéria de competência legislativa concorrente, tal qual dispõe o art. 24, XII, da CRFB/1988, percebe-se que, também por essa ótica, são formalmente constitucionais as normas impugnadas.

De fato, o Supremo Tribunal Federal possui entendimento consolidado no sentido de que a autonomia política dos Estados não lhes permite a edição de normas que possam interferir nas relações contratuais estabelecidas pela União ou Município e empresa concessionária de serviço público.

Por outro lado, como bem consignado no voto do Ministro Alexandre de Moraes na Ação Direta de Inconstitucionalidade em questão, é igualmente importante ressaltar o entendimento, no âmbito daquela Suprema Corte, da inconstitucionalidade de leis estaduais que, de maneira genérica, proíbam o corte no fornecimento de energia elétrica por prazo indeterminado em razão de inadimplemento do consumidor, por considerar que há, nesses casos, ingerência indevida sobre as condições contratualmente estabelecidas pelas concessionárias e Poder concedente, comprometendo o núcleo básico do contrato.

In casu, a lei estadual roraimense afeta unicamente a relação consumerista entre o consumidor usuário e o fornecedor do serviço público, e não a atuação das empresas concessionárias, não tendo o condão de gerar desequilíbrio contratual ou afetar políticas tarifárias.

Por todo o exposto, seguindo-se a linha desenvolvida para a declaração da constitucionalidade da norma em comento, urge mencionar que, apesar de a lei ser dotada de abstração e generalidade, remete a medidas excepcionais e temporárias, limitadas à duração do plano de contingência adotado pela Secretaria de Saúde do Estado em decorrência da pandemia.

Nesse sentido, é salutar o entendimento assentado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal pela sua consequência prática, ante o fato de que a manutenção do fornecimento de serviços essenciais, como energia elétrica e água, é de suma importância para possibilitar a adoção de medidas de mitigação da propagação do novo coronavírus, evitando a exposição de parcelas ainda maiores da população à doença, reafirmando o dever do Estado com o compromisso com o direito à saúde.

 


[1]Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: (...) IV - águas, energia, informática, telecomunicações e radiodifusão;

[2]Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: (...) V - produção e consumo;

[3]Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: (...) XII - previdência social, proteção e defesa da saúde;

[4] Art. 21. Compete à União: (...) XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão: (...) b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos;

[5] Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: (...) IV - águas, energia, informática, telecomunicações e radiodifusão;

[6] ADPF 452, DJe 14.05.2020, ADI 3.905, DJe 10.05.2011, ADI 5.610, DJe 20.11.2019.

[7]ADI 6.588, julgada em 28/05/2021.

[8] MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional . 3. ed. São Paulo: Saraiva: 2008. p. 822

Sobre os autores
Gentil Ferreira de Souza Neto

Procurador de Estado e Advogado. Mestre em Direito Constitucional. Especialista em Direito Público e Direito Constitucional.

Rafael José Farias Souto

Advogado e consultor jurídico. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Atuação nas searas pública e privada. Possui pós-graduação em Direito Público pela Universidade Anhaguera-UNIDERP, em Direito Administrativo pelo Instituto Elpídio Donizetti, e atualmente é pós-graduando em Direito Previdenciário pela Faculdade Legale.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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