UMA TEORIA POLÍTICA EM BUSCA DE LEGITIMAÇÃO

NEOCONSTITUCIONALISMO E DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL

Leia nesta página:

O presente artigo versa sobre a problemática da discricionariedade judicial suscitada pelas teorias neoconstitucionalistas que, não tendo superado o paradigma epistemológico da filosofia da consciência, apostam demasiadamente no protagonismo judicial.


1 INTRODUÇÃO

O texto em comento cuida do papel daquilo que o autor chama de “princípio da proporcionalidade” no balanceamento de princípios colidentes, propondo o desenvolvimento de uma teoria substancialista que seja externa ao esquema formalista lógico-aplicativo da ponderação enquanto método. Esta teoria teria como principal escopo auxiliar o juiz na realização de distinções qualitativas entre direitos colidentes, de modo a proporcionar um maior grau de legitimação a restrições de direitos fundamentais.

A proporcionalidade é daquelas categorias que vêm sendo alvo de uma compreensão equivocada, fruto do senso comum teórico jurídico, inclusive por parte da literatura mais especializada. É o que ocorre no texto em análise. Alexy, em sua obra Teoria dos Direitos  Fundamentais, estabelece a proporcionalidade como uma máxima  a ser utilizada como etapa de um método criado para solucionar colisões entre princípios.  Cuida-se, portanto, da máxima da proporcionalidade. A distinção não é meramente semântica. Como a máxima da proporcionalidade é critério de determinação de pesos em hipóteses de colisão entre  princípios, não poderia ser ela mesma um princípio. E mais, o próprio Alexy considera a três máximas parciais da proporcionalidade como regras.  Em Alexy, princípios são mandamentos de otimização que devem ser cumpridos na maior medida possível – devem ser otimizados. Como poderia, então, o próprio critério que julga a otimização dos princípios ser otimizado?

Comella, a seu turno, afirma que o princípio (sic) da proporcionalidade é utilizado como um teste que passa pela observação de três etapas: idoneidade, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Este princípio (sic), prossegue o autor, foi concebido desta forma na Alemanha do segundo pós-guerra, durante a vigência da lei fundamental de Bonn, de 1949. Sucede que a criação dessa máxima remonta àquilo que se convencionou denominar de jurisprudência dos valores, que encontrou eco no Tribunal Constitucional Alemão (Bundesverfassungsgericht) em face da outorga da Lei Fundamental alemã (Grundgesetz) pelos aliados, no ano de 1949. Naquele contexto histórico, esta corrente de pensamento teve por objetivo, através da invocação dos “valores do povo alemão”, tornar operativa uma constituição que fora outorgada sem a participação deste mesmo povo. Criou-se um mecanismo de abertura para uma legalidade demasiadamente cerrada. Denota-se, com isso, que a jurisprudência dos valores busca, de maneira pouco racional e irrefletida, encontrar, para além do direito positivo, uma ordem transitiva de valores compartilhada pela comunidade política. No Brasil e em muitos outros países, a jurisprudência dos valores foi importada de forma acrítica com a popularização da teoria da argumentação jurídica de Robert Alexy, principalmente sob a forma de uma vulgata da ponderação de valores.

Em verdade, a ponderação e suas três submáximas não passam de uma tentativa metodológica de racionalizar a jurisprudência dos valores, contudo, a partir da virada ontológico-linguística, ficou muito claro que o método se consubstancia no sumo momento da subjetividade do intérprete. Não há qualquer garantia de controle da correção dos processos interpretativos internos que se desenvolvem na cerradura da mente do juiz. O próprio Alexy, no posfácio de 2002 de sua Teoria dos Direitos Fundamentais, assume que, ao fim e ao cabo, seu método resvala na discricionariedade do juiz. Pontifica o autor que, diante da impossibilidade da aferição (pelo sujeito juiz) da relação de precedência concreta dos princípios colidentes, há um impasse estrutural no processo de otimização que faz exsurgir para o aplicador uma discricionariedade para agir, também de natureza estrutural.  O autor desenvolve uma sofisticada teoria analítica para, ao final, render-se aos antigos postulados do positivismo normativista do início do Século XX, que põe na discricionariedade do juiz a tônica da resolução de casos ditos difíceis não previstos nas normas postas pelo legislador positivo (interpretação como ato de vontade) .

 

2 DESENVOLVIMENTO

Comella traz à baila que a proporcionalidade é produto normativo da jurisprudência das cortes e de trabalho doutrinal de acadêmicos e espertos, em particular dos filósofos do direito, que a relacionam a noções básicas de razão prática e justiça. Ora, a razão prática, como cediço, é produto da mente, da subjetividade particularista de um sujeito aprisionado no paradigma epistemológico da filosofia da consciência (relação sujeito-objeto). Sempre casuística, a razão prática, locus privilegiado do sujeito da modernidade, é barbárie interior que não se sujeita a constrangimentos externos (quem garante a correção – e a lealdade – do uso da razão pelo intérprete-juiz?). A proporcionalidade, pontua o autor do texto, permitiria introduzir certo grau de disciplina intelectual no raciocínio que as cortes desenvolvem ao analisar os limites dos direitos fundamentais. O que ocorre, contudo, é o oposto. A teoria da argumentação, ao falar em mandamentos de otimização, promove uma abertura interpretativa que apela para a subjetividade do intérprete (metafísica ontoteológica moderna), aumentando, ao invés de diminuir, a discricionariedade do intérprete. Mais, na medida em que a proporcionalidade apenas é invocada para a resolução dos chamados casos difíceis (é mesmo possível falar em diferença estrutural entre casos fáceis e difíceis?), cabe ao intérprete hierarquizar e decidir acerca do princípio que deverá prevalecer. Os direitos, aqui, são tratados como valores negociáveis, o que culmina na erosão da força normativa da Constituição, que é substituída por um discurso adjudicador com pretensão de correção.

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A máxima da proporcionalidade tem como pressuposto latente a assunção de que princípios têm a estrutura de valores , o que o Comella reconhece em sua exposição . Para o autor, a limitação de direitos leva implícita a ideia de que alguns conflitos podem surgir, havendo a necessidade de se interpretar de maneira holística os distintos valores que a constituição considera legítimos. Há um problema nesta premissa. O direito é uma ordem deontológica e não axiológica. Princípios não são valores, princípios são normas, que, como quaisquer outras, são carentes de concretização, em maior ou em menor medida. Princípios não promovem uma abertura interpretativa no sistema, mas um fechamento. Reintroduzem e reabilitam a dimensão prática do mundo da vida no interior do direito. Posturas axiologistas – como a que considera que princípios são valores –, fazem soçobrar a Constituição, dando azo a atitudes incompatíveis com o Estado Democrático de Direito. Quando o juiz diz estar decidindo conforme os valores da comunidade política, está, na verdade, manejando sua compreensão subjetiva (verdade representacional) do que sejam os valores dessa comunidade. Não há acesso direto ao mundo. Não existe valor como um dado objetivamente apreensível pela razão do sujeito cognoscente (gnosiologismo). Resta, assim, a plenipotenciaridade do juiz, a autorização para a promoção de extorsões de sentido.

Após o enfrentamento dos conceitos acima explanados, o mestre espanhol tece longa argumentação no sentido de propor a distinção entre direitos absolutos e relativos, pois apenas os últimos, em sua ótica, estariam sujeitos à ponderação e, evidentemente, à máxima da proporcionalidade. Pede-se vênia para passar ao largo desta discussão, visto que inócua. O próprio autor assume, após longa tergiversação, que é plenamente válido sustentar que não há sentido prático nessa diferenciação e que apenas devemos manejá-la “si somos cuidadosos” . O próprio Alexy, corifeu da teoria da argumentação jurídica, pontifica que “A convicção de que existem direitos que não são relativizados nem mesmo sob circunstâncias mais extremas [...] não pode ser válida a partir da perspectiva do direito constitucional”.  Não há qualquer razão, seja de natureza epistemológica, seja de natureza pragmática, para ressuscitar uma discussão de há muito sepultada na teoria do direito, como esta que busca classificar direitos fundamentais em absolutos e relativos. Prossigamos.

Ao sopesar direitos relativos (sic) colidentes, Comella pontua que os juízes necessitam lançar mão de sua intuição, de seus juízos intuitivos. Isso porque “no hay una máquina que permita calcular el peso de los diversos derechos e interesses”  . Desta sorte, a aplicação da proporcionalidade, no dizer do autor, requerer “una teoria que articule este tipo de juicios intuitivos com los pesos abstractos” . E, assim, duzentos e trinta anos de teoria do direito são jogados pela janela. Esta crença num suposto privilégio cognitivo do juiz, presente no habitus dogmaticus do direito contemporâneo, desloca em direção ao julgador a última palavra na atribuição de sentido ao direito, como se a discricionariedade fosse capaz de preencher as lacunas de racionalidade do direito através do recurso a uma metodologia teleologicamente dependente das estruturas psíquicas do sujeito cognoscente. Surge, assim, uma espécie de subjetivismo assujeitador que repristina o velho paradigma epistemológico da filosofia da consciência em seu auge, outorgando ao juiz uma nietzscheana vontade de poder (Wille Zur Macht), que legitima a kelseniana interpretação como ato de vontade. Soçobra o Estado de Direito e, com ele, os direitos e garantias fundamentais.

 

3 CONCLUSÃO

 Com suporte no breve escorço aqui traçado, não é incoerente sustentar que a proporcionalidade, como entendida pela dogmática jurídica contemporânea, consubstancia-se em argumento de natureza performativa que, através do método – sumo momento da subjetividade do intérprete –, é capaz de outorgar capas de sentido e disfarçar argumentos despistadores sob a forma de discursos racionais de adjudicação com pretensão de correção. No instante em que abre ao intérprete-juiz a faculdade do exercício de juízos discricionários, apostando no privilégio cognitivo do julgador, repristinando o cogito do sujeito solipsista da modernidade e tratando os princípios constitucionais como valores negociáveis, a proporcionalidade promove a erosão da força normativa da Constituição e contribui para a subversão das próprias bases do Estado Democrático de Direito.

Então, o que há de substantivo para além do princípio (sic) da proporcionalidade? Nada.

 

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 1. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2011.

COMELLA, Victor Ferreres. Mais allá del principio de proporcionalidad. Revista Derecho del Estado, v. 1, n. 46, p. 161-188, maio 2020. Trimestral.

KELSEN, HANS. Teoria pura do direito. 8. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.

 

 

Sobre o autor
Eduardo de Figueiredo Andrade Paz

Especialista em Direito Tributário, advogado militante, sócio do Escritório Campelo & Sá Advogados Associados.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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