TCU não pode exercer controle difuso de constitucionalidade
Em recente decisão, proferida no julgamento do mandado de segurança MS 35500 / DF, o Supremo Tribunal Federal – STF, em relatoria do Ministro Alexandre Moraes, fixou o entendimento de não poder o Tribunal de Contas da União – TCU declarar a inconstitucionalidade de lei federal de maneira a afastar incidentalmente a aplicação dessa lei, não só para o caso concreto, mas para toda a Administração Pública federal, extrapolando os efeitos concretos e interpartes e tornando-os vinculantes para todos e não somente para as partes em litígio nos seus procedimentos em que for proferida a decisão que vier a declarar a inconstitucionalidade de lei federal.
Restou aclarado que o TCU é órgão técnico de fiscalização contábil, financeira e orçamentária, com competência funcional de natureza administrativa claramente estabelecida pela Constituição Federal, que não integra o Poder Judiciário e, portanto, destituído de qualquer função jurisdicional, não se admitindo o extrapolamento de tais limites que configurariam grave usurpação, no caso, de competência específica do Poder Judiciário.
Não há objetar que lhe seja permitido o controle difuso da constitucionalidade nos seus procedimentos sob o argumento do poder-dever que decorre de sua competência constitucional de zelar, em auxílio ao Congresso Nacional, pelo controle externo da Administração Pública. Compete à Corte de Contas o exercício pleno de sua missão e finalidades previstas no texto maior para as quais concorrem sua definição, organização e fortalecimento institucional, sendo-lhe vedado, no entanto, a função jurisdicional e mais precisamente, para os contornos destes apontamentos, o controle difuso da constitucionalidade do que é sujeitado à sua análise.
Estender tout court essa competência original para conferir ao TCU função jurisdicional significaria violentar o que dispôs o poder constituinte ao reservar esta função privativamente aos juízes e tribunais, bem como ao próprio Supremo Tribunal Federal em sua missão única de guardião da Constituição.
No direito brasileiro, assentado no princípio da separação dos poderes dos quais decorre o sistema de feios e contrapesos, a declaração incidental de inconstitucionalidade é uma exceção permitida privativamente aos órgãos do Poder Judiciário no exercício de suas funções jurisdicionais, e esta excepcionalidade não abarca outras instâncias administrativas porque lhe obsta a Constituição, como bem relatou o ministro Alexandre Morais, no já referido julgamento:
“Exatamente como na presente hipótese, o controle difuso exercido administrativamente pelo Tribunal de Contas traria consigo a transcendência dos efeitos, pois na maioria das vezes, ao declarar a inconstitucionalidade ou, eufemisticamente, afastar incidentalmente a aplicação de uma lei federal, o TCU não só estaria julgando o caso concreto, mas também acabaria determinando aos órgãos de administração que deixassem de aplicar essa mesma lei para todos os demais casos idênticos, extrapolando os efeitos concretos e interpartes e tornando-os erga omnes e vinculantes no âmbito daquele tribunal.
A decisão do TCU configuraria, portanto, além de exercício não permitido de função jurisdicional, clara hipótese de transcendência dos efeitos do controle difuso, com usurpação cumulativa das competências constitucionais exclusivas tanto do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (controle abstrato de constitucionalidade, Constituição Federal, artigo 102, I, ‘a’), quanto do Senado Federal (mecanismo de ampliação dos efeitos da declaração incidental de inconstitucionalidade, Constituição Federal, artigo 52, X)”.
É que, quanto à competência inafastável do Senado Federal, já decidiu a STF, no julgamento da Reclamação 4.335/AC, que a Constituição Federal previu um mecanismo específico de ampliação dos efeitos da declaração incidental de inconstitucionalidade pela Suprema Corte, autorizando o Senado a promulgar resolução para suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional incidentalmente por decisão definitiva do STF.
Por fim, em oposição à corrente que defende a higidez da Súmula n° 347/STF trazemos a lição do Ministro Gilmar Mendes, nos autos do MS 25.888:
“Não me impressiona o teor da Súmula n° 347 desta Corte, segundo o qual “o Tribunal de Contas, o exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público”. A referida regra sumular foi aprovada na Sessão Plenária de 13.12.1963, num contexto constitucional totalmente diferente do atual. Até o advento da Emenda Constitucional n° 16, de 1965, que introduziu em nosso sistema o controle abstrato de normas, admitia-se como legítima a recusa, por parte de órgãos não-jurisdicionais, à aplicação da lei considerada inconstitucional.
(...)
Assim, a própria evolução do sistema de controle de constitucionalidade no Brasil, verificada desde então, está a demonstrar a necessidade de se reavaliar a subsistência da Súmula 347 em face da ordem constitucional instaurada com a Constituição de 1988”.
À evidência, portanto, é inviável que o Tribunal de Contas da União continue a exercer controle difuso de constitucionalidade nos julgamentos de seus processos, alegadamente por lhe permitir o teor Súmula 347/STF, aprovada em 1963, cuja estabilidade restou abalada pela Constituição Federal de 1988.