4. O SISTEMA DE FREIOS E CONTRAPESOS
Montesquieu (1996) foi o grande expoente da defesa da divisão dos poderes de Estado para que não ocorresse de todos os poderes se concentrarem numa única pessoa e função. Sua proposta de bipartição, executivo e legislativo – já que para o autor o judiciário não seria um poder, mas apenas uma função – logo se transformou em tripartição, com o judiciário sendo levado ao posto de Poder autônomo frente os demais. Observa-se que os grandes objetivos desse arranjo são a garantia da democracia, impessoalidade governamental e equilíbrio harmonioso no qual um poder limita e modera o outro.
Historicamente, os Estados Unidos da América são o grande exemplo de estabilidade advinda de um bem trabalhado sistema de freios e contrapesos, na qual a tripartição de poderes funciona harmoniosamente para garantir a estabilidade democrática.
Tocqueville (1998), em sua famosa obra A Democracia na América observa, no entanto, que para além da organização estatal a nível da União, existe toda uma cultura de descentralização política que aproximava, na altura de sua obra, o poder do cidadão. Em suma, trata-se do federalismo norte-americano e da autonomia local dos condados.
Fato é que, em países com uma cultura política centralizadora, como é o caso do Brasil, um sistema eficiente de freios e contrapesos precisa ser muito bem pensado afim de corrigir vícios estruturais, advindos de aspectos culturais, que possam desequilibrar a balança dos poderes.
Vale observar que, historicamente, o poder executivo sempre se viu poderoso demais na história nacional, seja por ocasião de um Imperador munido do Poder Moderador, seja nos primeiros anos da República com forte presença da elite militar no governo, o que favoreceu à postura ditatorial da “República da Espada”, seja pelos vergonhosos anos da “República do café com leite” ou pelos traumas iniciados pelo golpe chefiado por Getúlio Vargas e pelo seu posterior governo de orientação fascista que segmentou de vez o Executivo como Poder sempre à frente dos demais.
Terminada a Ditadura Civil/Militar, por intermédio da Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 1988, o Brasil teve a oportunidade de criar um sistema de freios e contrapesos eficiente contra um Executivo da União poderoso demais. Porém, a Assembleia se perdeu ao redigir uma Carta Política que olhava demais para o passado e demais para o Executivo Federal, o resultado disso foi que lhe faltou o equilíbrio necessário e em sua ânsia para tentar afastar um intento golpista na Presidência da República a Assembleia acabou por fortalecer demais o Poder Judiciário, por meio do Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Judiciário e corte constitucional brasileira.
Segundo Carvalho (2017), a Assembleia Nacional Constituinte de 1987 estava majoritariamente preenchida por membros do Centro Democrático, o segundo maior grupo era a Direita e, por fim, a Centro Esquerda era o grupo minoritário. Ocorre que o então membro do PMDB, Fernando Henrique Cardoso, ficou com o cargo mais importante em termos de impacto direto no texto final, relator do Regimento Interno da Constituinte, nessa condição ele tinha o poder de nomear vários cargos e, para um desses, nomeou o então deputado do também PMDB, Mário Covas, para o cargo que apontava os relatores das Comissões.
Fernando Henrique Cardoso e Mário Covas eram dois dos principais expoentes da Social Democracia no Brasil, vertente socialista que contrastava com a maioria conservadora da Assembleia. Covas apontou para as relatorias nomes ligados à esquerda, e no final do processo instaurou-se uma polêmica, uma vez que o documento estava ficando com um aspecto Social Democrata e Progressista, à revelia da ideologia dominante na Assembleia e, por tabela, do eleitorado que havia eleito os constituintes, uma visão mais conservadora de Brasil.
Quando se instaurou a discórdia, a maneira que o presidente da Constituinte, Ulisses Guimarães, e os grandes líderes do PMDB e PFL decidiram evitar a paralisia do processo foi a tentativa de harmonizar desejos díspares com o objetivo de agradar todas as vertentes representadas, daí exemplos como o inciso IV do artigo 1º da Constituição de 1988 (BRASIL, 1988), que trata ideias antagônicas como se fossem complementares. Outro efeito indesejado desse fato, foi a confecção de vários dispositivos constitucionais dúbios em seu sentido e, quando uma Carta Magna tem no seu texto muitos dispositivos que abrem margem para diferentes interpretações, dá-se muito poder ao intérprete dessa Carta. que no caso é o Supremo Tribunal Federal, aqui trata-se de um poder ativo, criador, legislativo.
Outra questão importante para a organização do sistema de freios e contrapesos nacional é o artigo 102, inciso I, alínea b da CF/88 que determina o STF como foro apropriado para julgar as ações penais contra os congressistas e contra o Procurador Geral da República, além, é claro, de possíveis crimes nos quais o acusado é membro da própria instituição. Ocorre que, de acordo com o artigo 54, inciso II da Constituição (BRASIL, 1988) cabe ao Senado processar e julgar os membros do STF por crimes de responsabilidade. Sendo assim, fica claro a intenção do Constituinte em usar o Senado Federal, enquanto câmara alta do parlamento brasileiro, como freio e contrapeso ao poder do Supremo Tribunal Federal. Entretanto, o mesmo constituinte determina que o STF julgue os membros do Senado enquanto detentores de foro privilegiado.
O até aqui descrito, cria uma situação que compromete o papel do Senado Federal na moderação do Supremo Tribunal Federal, já que os Senadores que votarem pelo impeachment de um determinado ministro do STF corre o risco de se indispor com a corte e teme represálias caso, em determinada circunstancia, precise ser julgado pela referida instituição. Ademais, o Senado Federal participa do processo de escolha e nomeação dos ministros do Supremo Tribunal, o que pode comprometer e lisura do relacionamento institucional entre as duas casas. O mesmo ocorre com a figura do Procurador Geral da República, estando certo pela Lei 1079 de 10 de abril de 1950 que qualquer cidadão pode apresentar denúncia por crime de responsabilidade contra ministro do STF, este cidadão dificilmente será o Procurador Geral da República, uma denúncia apresentada pelo mesmo certamente teria um peso diferenciado na aceitação da mesa, mas ao fazer isso, o Procurador também pode se indispor com a corte na qual ele eventualmente poderá ser julgado.
Outra questão envolvendo o Supremo Tribunal Federal no sistema de freios e contrapesos da República Federativa do Brasil é a questão levantada por Hans Kelsen, “ninguém pode ser juiz da própria causa” (KELSEN, 2003, p. 240). Por essa razão, o famoso constitucionalista defendeu que a instituição sobre a qual repousasse a jurisdição constitucional não fizesse parte de um dos poderes de Estado – Executivo, legislativo e Judiciário – e o Supremo Tribunal Federal não é uma corte exclusivamente constitucional, já que além de julgar crimes comuns do Presidente da República e seu vice, dos congressistas, do Procurador Geral da República e de seus próprios ministros, trata em grau de recurso o habeas data, habeas corpus, o mandado de segurança, e o mandado de injunção decididos em única instância pelos Tribunais Superiores, se denegatória a decisão, e, em recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida contrariar dispositivo da Constituição.
Pelo até aqui exposto, sabe-se que o Supremo Tribunal Federal além de seu papel de controle concentrado de constitucionalidade também é o órgão de cúpula do Poder Judiciário. Em outras palavras, o Poder Judiciário controla a constitucionalidade de seus próprios atos e dos outros Poderes, o que além de comprometer a performance da corte em razão da quantidade de processos que lhes é confiado, deixa o Supremo Tribunal e o judiciário como um todo superpoderoso na República, vale destacar que os tribunais no Brasil têm o poder de realizar o controle difuso de constitucionalidade. A tripartição dos poderes de Estado visa evitar a concentração de poderes nas mãos de poucos agentes, um bom sistema de freios e contrapesos garante que a ideia central na tripartição será funcional e não acabará por comprometer o funcionamento harmonioso do Estado, quando um dos poderes se torna poderoso demais frente aos outros, a democracia e a ordem constitucional já se encontram comprometidas.
5. CORTES CONSTITUCIONAIS E SUPREMAS CORTES AO REDOR DO MUNDO
Tribunal Constitucional do Chile: a Constituição do Chile determina que seu Tribunal Constitucional é um órgão distinto de qualquer Poder, incluindo o judiciário cujo órgão de Cúpula é o Supremo Tribunal do Chile. Assim sendo, o país segue o raciocínio de Hans Kelsen de que a jurisdição constitucional precisa feita por uma instituição dedicada exclusivamente a isso e que a mesma não componha nenhum dos Poderes de Estado. A nomeação dos membros do Tribunal Constitucional chileno ocorre de maneira descentralizada, trata-se de 10 membros dos quais 3 indicados pelo Presidente da República, 4 eleitos pelo Congresso Nacional e 3 são eleitos pelo Supremo Tribunal, todos possuem um mandato não renovável de 9 anos que precisa ser confirmado a cada 3 anos. Ademais, existe uma idade limite para ser membro do referido tribunal, a idade de 75 anos. (FRANÇA, 2017, p. 73-86)
Tribunal Constitucional de Portugal: não faz parte do Poder Judiciário, sendo um órgão com autonomia administrativa e orçamentária. Entretanto, além da função de promover a jurisdição constitucional a corte também é responsável por questões de natureza eleitoral. É composta por 13 ministros dos quais 10 são eleitos pelo Congresso, estes 10 organizam-se e elegem os 3 membros restantes. O mandato para ministro da corte é de 9 anos, sem possibilidade de recondução. Ademais, a Constituição de Portugal não é exaustiva nas funções e admite a possibilidade de Lei Ordinária atribuir à corte outras funções, o que no momento não se verifica. (PIRES, 2017, p. 752-758)
Tribunal Supremo de Israel: não se trata de uma corte exclusivamente constitucional, assim como no Brasil o referido tribunal também é o órgão de cúpula do Poder Judiciário e a maior parte dos seus julgados tem natureza cível, criminal ou administrativa. É composto por 15 membros, todos eleitos pelo Comitê de Eleição dos Juízes – este comitê é composto pelo presidente do Tribunal Supremo e dois outros juízes deste, pelo Ministro da Justiça e outro ministro designado pelo governo, por dois membros do parlamento e dois advogados eleitos pela ordem dos advogados de Israel – uma vez empossados, os juízes continuam exercendo suas funções até a renúncia, destituição ou aposentadoria compulsória por idade, não havendo mandato. Os ministros do Tribunal Supremo Israelense não estão sujeitos a autoridade do Parlamento e só podem ser destituídos pelo Comitê de Eleição dos Juízes ou pelo Tribunal Disciplinar dos Juízes. (FILHO, 2017, p. 389-400)
Corte Constitucional da Hungria: é um tribunal dedicado exclusivamente ao controle de constitucionalidade e defesa de direitos individuais. Composto por 15 membros que possuem um mandato de 12 anos não renováveis, seus membros são eleitos no parlamento por um quórum de 2/3. Um fato interessante é que essa corte, ao contrário das demais aqui citadas, não tem autonomia para eleger seu próprio presidente, sendo este também eleito no parlamento. A nomeação de um juiz da referida corte constitucional se dá por meio de uma comissão parlamentar na qual cada partido é representado de acordo com seu tamanho na casa. (NUNES, 2017, p. 699-718)
Suprema Corte dos Estados Unidos: composta por 11 membros escolhidos pelo Presidente da República e confirmados pelo Senado é também o órgão de cúpula do judiciário a nível federal. Sendo assim, além da jurisdição constitucional a corte recebe apelações e recursos, mas o Congresso deu ao tribunal autonomia para receber ou negar casos que lhes sejam apresentados. Por essa razão, a Suprema Corte Americana não se vê legalmente obrigada a aceitar julgar nenhuma lide em especial, mas existe um procedimento para garantir a tutela legal dos casos de maior repercussão e inegável desrespeito aos direitos do cidadão. (FREIRE, 2017, p. 306-328)
Por fim, observa-se que embora feita para ser um tribunal técnico-jurídico a Suprema Corte dos Estados Unidos, em decorrência do caráter bipartidário do sistema eleitoral americano no qual o Partido Republicano encarna o conservadorismo e o Partido Democrata encarna o progressismo, tornou-se comum a identificação dos membros da referida corte por intermédio de seu posicionamento ideológico. Tem-se “justices” progressistas e conservadores e, na cultura política dos E.U.A, isso não se traduz em desrespeito e deslegitimarão por parte da sociedade americana, ao contrário, lá se encara a escolha presidencial favorecer juristas ideologicamente próximos como parte do jogo democrático. Disso depreende-se que o compromisso do ministro é com a ideologia e não com o partido ou o governo, por exemplo, entende-se que o ministro conservador vai votar tendo pressupostos conservadores, mas que isso não significará que o mesmo assumirá uma postura subserviente ao partido ou governo de orientação conservadora.
6. POSSIBILIDADES DE REFORMA NO PAPEL E ORGANIZAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Para falar sobre possibilidades de reforma nessa importante instituição democrática que é o Supremo Tribunal Federal, seja no seu papel ou estrutura, deve-se primeiramente demonstrar o que o STF é, em segundo lugar deve-se estabelecer as consequências do que o Supremo Tribunal é hoje. Por fim, com base nas consequências do que a suprema corte brasileira é hoje, deve-se estabelecer possibilidades que preservem o que o status quo tem de positivo e corrija seus aspetos negativos.
O Supremo Tribunal Federal é a corte constitucional e órgão de cúpula do Poder Judiciário nacional, seus membros são indicados pelo Presidente da República e carecem de aprovação do Senado Federal para poderem assumir seus cargos. Não há mandato para o cargo de ministro do STF, contudo, ao chegarem na idade de 75 anos os membros do Supremo são sumariamente aposentados. Seus membros tem o poder de proferir decisões monocráticas e, por meio do pedido de vistas, prolongar a indecisão a respeito de determinado caso em prazo, praticamente, indeterminado.
Por ser o órgão de cúpula do Poder Judiciário e corte constitucional ao mesmo tempo, há um flagrante desrespeito ao princípio de separação dos Poderes do Estado com o Judiciário tendo além de sua função típica a autoridade para interferir demasiadamente nos demais Poderes, tudo isso somado ao fato de que os membros dos Executivo e Legislativo são eleitos e os membros do judiciário não.
Por concentrar o poder de indicação à ministro do STF nas mãos do Presidente da República, há, primeiramente, a possibilidade de determinadas correntes políticas obterem uma influência periclitante sobre a corte – basta que um partido eleja o chefe do Executivo nacional por 6 eleições seguidas que é praticamente garantido que este partido proceda à indicação da maioria de membros do STF, após a redemocratização já ocorreu de partidos vencerem 4 pleitos seguidos – o que é um convite a um projeto de poder totalitário.
Ademais, a necessidade de aprovação pelo Senado dos nomes indicados pelo Chefe de Estado cria um ambiente politiqueiro e pouco republicano, haja vista o intento constitucional de o STF constituir uma instituição técnico-jurídico. Não se pode esquecer que caso um senador cometa um crime conexo ao mandato será julgado no Supremo e, caso um ministro do Supremo transgrida suas funções, seu impeachment será julgado no Senado.
A falta de um mandato não combina com o princípio democrático, a alternância de poder é um pilar republicano. Ademais, a fixação de mandato é um remédio contra uma característica da cultura política brasileira, o patrimonialismo.
Por fim, o Supremo é um colegiado. Por ser um órgão colegiado é preciso evitar o excessivo poder individual dos seus membros, a abrangência dos poderes monocráticos e o pedido de vistas são uma arma poderosa para que ministros sobreponham a sua vontade ao colegiado, quando o colegiado sempre deveria prevalecer.
Concluindo, as possibilidades de reforma em relação ao Supremo Tribunal Federal devem atacar seus pontos mais controversos. Ou seja, fazer parte do Poder Judiciário, ter seus membros escolhidos de forma tão centralizada, o caráter vitalício do cargo de ministro do STF, os poderes de decisão monocrática e sua problemática relação de freios e contrapesos com o Senado Federal.