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A obrigação propter rem e os equívocos de sua incidência sobre tributos

27/06/2021 às 11:11

Resumo:


  • A obrigações propter rem são híbridas, decorrendo da relação entre o devedor e a coisa.

  • A obrigação propter rem não se aplica aos tributos reais, como IPTU e ITR, que têm como fonte a lei.

  • A confusão entre obrigação propter rem e responsabilidade tributária gera decisões judiciais equivocadas no Brasil.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Os tributos dito reais, como IPTU, ITR, IPVA, não são fontes de obrigação propter rem, e a insistência em assim os qualificar é fonte de distorções sistemáticas, e, consequentemente, de decisões judiciais equivocadas.

As obrigações propter rem são denominadas como obrigações híbridas, ou ambulatórias, por manterem-se entre os direitos patrimoniais e os direitos reais, perseguindo a coisa onde quer que ela esteja, ou seja, têm caráter híbrido por não decorrer da vontade do titular, mas ainda sim decorrer da coisa.

O objetivo deste trabalho é realizar a descrição da obrigação propter rem que, à luz do ordenamento jurídico brasileiro, seja suficiente para responder com coerência a questões fundamentais, como sua natureza jurídica, seus pressupostos de constituição e surgimento, sua formação e sua transmissibilidade.

Para Carlos Roberto Gonçalves, a obrigação propter rem pode ser conceituada da seguinte forma:

“É uma obrigação real, que decorre da relação entre o devedor e a coisa. Difere das obrigações comuns especialmente pelos modos de transmissão”. Propter rem significa “por causa da coisa”.

Assim, se o direito de que se origina é transmitido, a obrigação o segue, seja qual for o título translativo. A transmissão é automática, independente da intenção específica do transmitente, e o adquirente do direito real não pode recusar-se a assumi-la. São exemplos da obrigação, que pode ser identificada em vários dispositivos esparsos do Código Civil, já que não a disciplinou isoladamente: a obrigação imposta ao condômino de concorrer para as despesas de conservação da coisa comum (artigo 1.315); a do condômino, no condomínio em edificações, de não alterar a fachada do prédio (artigo 1.336, III); a obrigação que tem o dono da coisa perdida de recompensar e indenizar o descobridor (artigo 1.234); a dos donos de imóveis confinantes, de concorrerem para as despesas de construção e conservação de tapumes divisórios (artigo 1.297, § 1º) ou de demar­cação entre os prédios (artigo 1.297); a obrigação de dar caução pelo dano iminente (dano infecto) quando o prédio vizinho estiver ameaçado de ruína (artigo 1.280); e a obrigação de indenizar benfeitorias (artigo 1.219).

A obrigação propter rem é categoria jurídica operacional, isto é, presta-se a facilitar a decidibilidade de questões jurídicas concretas. Por esta razão, só há sentido em estudá-la relativamente, vale dizer, enquanto categoria jurídica pertencente a dado ordenamento jurídico.

Porém, a doutrina brasileira, de modo geral, não atenta para essa inerente relatividade da noção de obrigação propter rem e acaba por importar e acolher, de modo não crítico, tantos conceitos como, principalmente, algumas de suas pretensas consequências.

O resultado desse “empréstimo” científico é a existência de proposições doutrinárias e decisões judiciais absolutamente incoerentes com o ordenamento jurídico brasileiro, não apenas quando se está diante de obrigação propter rem apenas por ele apresentar alguma característica que se entende própria dela.

Em outras hipóteses, isso ocorre quando a doutrina discorre ou o judiciário é instado a decidir sobre a transmissibilidade e a extinção da obrigação propter rem, bem como quando, devendo decidir sobre a responsabilidade tributária em certos tributos, a ela apela.

A precisão conceitual, tarefa da dogmática jurídica é fundamental para a resolução segura e racional dos conflitos jurídicos, os quais não se apresentam de modo uniformes em todas as nações, e sim determinados por fatores sociais peculiares.


TRIBUTOS QUE TÊM POR HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA POSIÇÃO JURÍDICA ATIVA DE DIREITO DAS COISAS.

O Superior Tribunal de Justiça tem entendimento pacífico no sentido de que os tributos ditos reais, tais como o IPTU e o ITR, serem geradores de obrigação propter rem, que, portanto, transmitem-se a todos que venham a assumir a posição jurídica ativa descrita na regra-matriz de incidência, ainda que o fato gerador do tributo tenha se concretizado antes desta transmissão.

No entanto, este caráter ambulatório que se pretende dar à obrigação propter rem não é correto do ponto de vista do ordenamento jurídico, mas a questão que se busca analisar aqui é a seguinte: a obrigação de pagar tributos reais é propter rem?

Os tributos ditos reais, bem como qualquer tributo, têm como fonte exclusiva a lei, e a aquisição da titularidade da posição jurídica ativa de direito das coisas após a concreção de seu suporte fático é tão somente critério para determinar o sujeito passivo para sua cobrança, ou seja, claramente se está diante de devedor determinado propter rem e não de obrigação propter rem.

A Corte, no entanto, utiliza a categoria da obrigação propter rem para justificar a cobrança do tributo em face do sucessor no direito subjetivo suporte fático do tributo, quando a justificativa, por coerência dogmática deveria ser buscada no instituto da responsabilidade tributária.

A dissociação relativa entre dívida e responsabilidade que ocorre quando, antes de quitado o débito, o direito subjetivo sobre a coisa é alienado, tem por justificativa a necessidade de conservação da res, enquanto em matéria tributária, a justificativa da responsabilização do sucessor é a conveniência do fisco, isto é facilitar a cobrança e consequentemente o recebimento das receitas tributárias.

Se as normas acerca da responsabilidade tributária impõem a responsabilização do sucessor no direito subjetivo, inegavelmente pode-se falar em reponsabilidade ambulatória, mas não é porque há o caráter ambulatório que se trata de obrigação propter rem.

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Quando fazem tal inferência, as decisões do STJ incidem no vício lógico de extrair a natureza jurídica da obrigação tributária relativa aos tributos ditos reais de certos efeitos próprios da seara da responsabilidade tributária.

Poder-se-ia supor que a diferenciação proposta é fruto de preciosismo sem qualquer relevância prática.

No entanto, esse embaralhar de categorias jurídicas é fonte de controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais, que trazem insegurança jurídica aos jurisdicionados.

Foi o que surgiu por ocasião do julgamento de recurso especial em que se discutiu a legitimidade ativa para a repetição de IPTU, pago indevidamente.

Embora o recurso tenha sido provido por unanimidade para afastar a legitimidade do novo adquirente do imóvel, o relator, Ministro Luiz Fux, ressaltou seu entendimento no sentido de reconhecer a legitimidade ativa do adquirente do imóvel para a ação de repetição de indébito, e o fez, fundamentando-se, entre outros aspectos, no instituto da obrigação propter rem.

Percebe-se que ao recorrer à figura da obrigação propter rem, o Ministro confundiu o regime jurídico que disciplina o pagamento indevido com o regime da sucessão singular em posição jurídica ativa, chegando à conclusão paradoxal de que, ainda que sem efetuar qualquer pagamento ou sofrer qualquer diminuição patrimonial, o novo proprietário do imóvel teria legitimidade ativa para receber a devolução dos valores que, a título de IPTU, o anterior proprietário pagou sem dever.

O apelo indevido à figura da obrigação propter rem fez com que o Ministro relator admitisse que a categoria do pagamento indevido gerasse enriquecimento sem causa para o novo proprietário, quando sua finalidade é justamente a de evitá-lo.

Concluindo, a obrigação propter rem, não obstante, muitas vezes, preste-se a resolver conflitos entre titulares de situações jurídica de direito real, tem por função precípua, a conservação da coisa, objeto de direito subjetivo real ou pessoal, razão pela qual a prestação na obrigação propter rem deve ser encarada como realização em função de adimplemento de uma benfeitoria necessária.

Os tributos ditos reais, como IPTU, ITR, IPVA, não são fontes de obrigação propter rem, e a insistência em assim os qualificar é fonte de distorções sistemáticas, e, consequentemente, de decisões judiciais equivocadas.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil esquematizado, volume I. São Paulo: Saraiva, 2011.

AZEVEDO, Álvaro Villaça. Bem de Família Internacional – necessidade de unificação. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo: EDUSP, 2007.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

BUNAZAR, Mauricio, Obrigação Propter Rem, Aspectos Teóricos e Práticos, 14. ed. Atlas S.A., 2014.

Sobre a autora
Tania Haluli Fakiani

Procuradora do Município de Diadema. Formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Atuação na área civil, em especial sobre creches, pedidos de moradia, medicamentos, cirurgias de urgência e multas de transito.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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