O PAPEL DA VÍTIMA NA GÊNESE DO FENÔMENO CRIMINAL.

27/06/2021 às 14:40
Leia nesta página:

Texto acerca do papel da vítima na etiologia dos delitos.

A vitimologia pode ser definida como o estudo da vítima em todos os seus aspectos, considerando as características de natureza biopsicossocial desse personagem do fenômeno criminoso, com vistas a entender a contribuição da vítima para o fato delituoso, os processos de vitimização, os prejuízos sofridos pelo sujeito passivo do crime, buscando desenvolver e promover políticas públicas para evitar a vitimização e para garantir a proteção e compensação das pessoas vitimadas.

Como visto, diante da citada definição, um dos focos do citado ramo da criminologia é estudar a influência da vítima no fato criminoso, com vistas a entender o complexo processo que leva à vitimização.

Desses estudos foi que se extraiu o conceito de perigosidade vitimal, que pode ser conceituado como um estado de natureza psicológica, biológica, social e/ou comportamental em que a vítima se coloca em uma circunstância que favorece ou estimula a sua vitimização. Nesse contexto, a vítima acaba enviando estímulos agressivos que projetam, objetiva e/ou subjetivamente sobre si mesma ou sobre outra pessoa a potencialidade de ser vítima de um delito, acabando por favorecer, facilitar ou estimular condutas violentas, impulsivas ou agressivas capazes de causar danos e sofrimentos para si própria (Ribeiro, ????).

A título de exemplo imaginemos uma pessoa cuja personalidade é extremamente irritante, de modo que a mesma sempre proporciona conflitos no seu dia-a-dia, ou um indivíduo que comumente se embriaga em locais públicos enquanto se encontra sozinha, facilitando ser vítima de crimes contra o patrimônio ou contra a liberdade social.

Foi diante dessa influencia da vítima no fenômeno criminal que se desenvolveram diversas tipologias das vítimas, classificando as mesmas com base na contribuição destas na etiologia do fato criminoso.

Assim Lino (2021, p.p. 133 e 134) afirma que Hans Von Heting desenvolveu uma classificação em que indicava 13 perfis de pessoas que tem características que favorecem as suas vitimizações, sendo eles:

  1. Jovens: adolescentes e crianças seriam mais predispostas a serem vítimas em decorrência de sua pouca maturidade e falta de robustez física;
  2. Mulheres: pois o gênero feminino também não goza de grande força física se comparada à média masculina, e no caso das mulheres existe uma agravante decorrente da nossa cultura patriarcal que sempre põe a mulher em condição inferior frente aos homens;
  3. Idosos: que também são fisicamente frágeis e por vezes necessitam de outras pessoas para realizar ações comuns do dia-a-dia;
  4. Doentes mentais e viciados em substâncias psicoativas: pois esse grupo pode não compreender que estão sendo vitimados ou podem perder a capacidade de se defender da agressão sofrida;
  5. Imigrantes: posto que esse grupo por não estar familiarizado com a cultura e regras sociais do local onde se encontram podem ser alvo fácil de criminosos;
  6. Minorias: notadamente no que concerne a questões raciais e étnicas, onde esse tipo de pessoa pode ser alvo de preconceitos em decorrência de pertencerem a dado grupo étnico ou racial;
  7. Simplistas: são pessoas que estão no limite de apresentar um transtorno mental, e podem apresentar dificuldade em entender que estão sendo vitimizados;
  8. Depressivos: pessoas que podem intencionalmente ou não se expor a situações de risco. Esse grupo comumente se isola socialmente, o que favorece a vitimização pela falta de grupos de apoio ao mesmo;
  9. Gananciosos: pessoas que desejam obter lucro financeiro de maneira fácil e rápida, o que os expõe a serem vitimas de crimes, como no caso dos estelionatários, por exemplo, que usam o excesso de cobiça para ludibriar a vítima;
  10. Promíscuos: pessoas que se envolvem com diversos parceiros sexuais, muitas vezes se relacionando com pessoas que não conhecem o suficiente, favorecendo a possibilidade de vitimização.
  11. Solitários: nesse grupo estão as pessoas que perderam um ente querido e estão em processo de luto, e acabam ficando vulneráveis a vitimização, principalmente quando fazem uso abusivo de álcool ou outras drogas.
  12. Atormentadores: nessa categoria encontram-se os familiares abusivos, como pais, cuidadores e esposos, onde os abusos por estes perpetrados podem acarretar uma reação de suas vítimas ou de terceiros que tomam conhecimento do abuso, causando a vitimização destes.
  13. Bloqueados: aqui temos as pessoas vitimas de chantagem, que não enxergam a possibilidade de obter ajuda e acabam cometendo crimes em decorrência da chantagem sofrida.

Essa classificação é muito importante para termos em mente possíveis perfis que favorecem a vitimização, contudo, além da perspectiva estática ora apresentada, se faz importante analisarmos as condições situacionais de cada caso concreto, posto que pode ocorrer de uma vítima do sexo masculino ter sido vitimizada em decorrência de possuir pouca força física, por exemplo, ou pode haver o caso de uma criança ter maturidade para entender e até se proteger de dada vitimização, devendo sempre ser analisado cada caso concreto (Lino, 2021, p. 134).

Outra classificação bastante conhecida acerca da contribuição das vítimas para o fato criminoso é desenvolvida por Mendelshon (Lino, 2021, p.p. 136 4 137), onde o mesmo classificou as vítimas em:

  1. Vítima completamente inocente: pessoas que não manifestaram nenhum comportamento que tenha contribuído para a ocorrência da vitimização;
  2. Vítima menos culpada que o ofensor: que seriam as pessoas que, por ignorância ou sem ter consciência disso, se colocam em situações de vulnerabilidade para sofrerem um crime;
  3. Vítima voluntaria: são pessoas que deliberada ou voluntariamente se põem em situações de vulnerabilidade, como, por exemplo, pessoas que abusam do uso de substancias ou que possuem ideações suicidas;
  4. Vítima mais culpada que o ofensor: pessoas que provocam o comportamento criminoso, como o caso de um individuo que provoca uma briga em um bar e acaba sendo agredido:
  5. Vítima unicamente culpada: pessoas que na realidade são agressoras e por circunstancias alheias a sua vontade acabam se tornando vítimas, o que ocorre no caso da legitima defesa, onde o agressor acaba morto pela vítima;
  6. Vitima imaginária: aqui temos as pessoas que imaginam que foram vitimas, como no caso de paranoias, ou pessoas que fazem denuncias falsas.

Burke (2019, p. p. 87 a 90) também traz uma interessante classificação das vítimas, esta baseada nos estudos de Edmundo Oliveira, onde o citado autor classifica as vítimas em inocentes (quando a vítima não tem qualquer culpa no fenômeno criminoso, como no caso do feto no crime de aborto), vítima consciente (quando a vítima sabe que está sendo ofendida e decide concorrer para a o crime), vítima inconsciente (quando a vítima permite irracionalmente ter os seus direitos violados, como no caso de a vítima se submeter a procedimentos estéticos invasivos por meio de profissionais que violam as normas técnicas para esse tipo de procedimento), e vítimas subconscientes (quando a vítima inicialmente atua de modo não intencional para a ocorrência do crime e posteriormente perde a condição de oferecer resistência à prática delitiva, como no caso em que a vítima voluntariamente faz uso de uma substância alucinógena e acaba sendo vítima de crime de estupro, onde embora a vítima entenda que está sendo vitimizada o comportamento anterior da mesma a impede de ter condições de oferecer resistência ao crime sofrido).

Jimenez de Asua (Moraes e Neto, 2019, p. 70) classificou as vítimas em: indiferentes, que não estão definidas pelo delinquente que vai cometer o crime, como no caso do assaltante de semáforo que assalta o primeiro carro que parar no local do crime, sendo a vítima desse crime indiferente para o autor do crime; indefinidas ou indeterminadas, que são aquelas vítimas que sofrem como vítimas de maneira genérica em alguns tipos de agressões comuns na sociedade moderna, como no caso de ataques terroristas ou crimes cibernéticos; e vítimas determinadas, que são aquelas que o criminoso visava praticar o crime apenas contra essa vítima, não sendo possível ser praticado contra outra pessoa, como no caso do homicídio cometido por meio de paga ou promessa de recompensa.

Para Guglielmo Gulota (Moraes e Neto, 2019, p.p. 70 e 71), as vítimas podem ser classificadas da seguinte maneira: vítima falsa, que se subdivide em vítima simulada (é aquela que conscientemente atua para movimentar a maquina de persecução penal, seja para causar um erro judicial ou para se livrar de uma ação delituosa que cometeu) e vítima imaginária (aquela que em decorrência de alguma psicopatologia ou imaturidade psíquica crê erroneamente que fora vítima de um crime); vítimas reais, que se subdividem em fungíveis (cuja ação criminal não se desencadeia com base em qualquer intervenção desse tipo de vítima, sendo a mesma inteiramente inocente) e não fungíveis (são aquelas que desempenham certo papel na gênese do delito, podem ser imprudentes, alternativas ou voluntárias).

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O professor Neuman (Moraes e Neto, 2019, p. 71) classifica as vítimas em: individuais (são as vítimas clássicas, ou seja, aquelas pessoas físicas que sofrem diretamente a ação criminosa), vítimas familiares (são as vítimas de violência doméstica e familiar), vítimas coletivas (quando os crimes tem como vítimas a coletividade ou entes jurídicos), e vítimas da sociedade ou do sistema social (como as pessoas que morrem em corredores de hospitais públicos por exemplo).

Existem, como apresentado, diversas classificações das vítimas, e como é possível se intuir o conhecimento dessas classificações, bem como o estudo das características das vítimas acaba sendo importante para o entendimento do crime, e do papel da vítima penal na etiologia do fenômeno criminoso.

Assim, conhecer a vítima é importante tanto em um caráter cientifico, para melhor entender o fenômeno criminal, como em um sentido prático, pois muitas vezes estudar e compreender a vítima torna-se importante para entender o delito estudado e soluciona-lo, o que comumente ocorre nos crimes de homicídio onde investigar a vítima é importante para entender o crime analisado e descobrir a autoria e demais circunstancias delitivas, tendo em vista que no citado delito, na grande maioria das vezes, existe uma relação anterior ao crime que liga a vítima ao seu agressor.

Em um contexto prático conhecer a vítima também é importante para a realização de uma análise criminal em sentido amplo, com vistas a entender dado fenômeno delitivo e com base no conhecimento produzido elaborar politicas públicas com o objetivo de diminuir os índices de criminalidade e, portanto, evitar a vitimização.

Por fim, o estudo da vítima, bem como as classificações trazidas a baila no presente trabalho, demonstram a superação do antigo paradigma de que as vítimas são sempre inocentes em oposição a um agressor sempre culpado, trazendo um contributo importante para entender o papel da vítima na gênese do fenômeno criminoso, mostrando como a mesma, por vezes, contribui com sua vitimização, o que possibilita a elaboração de preceitos para a legislação penal que podem trazer mais justiça nos julgamentos criminais, o que acontece em diversos artigos da legislação penal pátria, como o artigo 59 do código penal que prevê que o juiz deve considerar o comportamento da vítima no momento de fixar a pena base na condenação do autor do delito, ou quando a injusta provocação da vítima antes do crime acaba diminuindo a reprovabilidade (e a pena) do autor do crime (conforme previsão contida no artigo 121, § 1º do Código Penal).

Diante de todo o exposto, fica evidente que o estudo da vitimologia é importante para a compreensão do crime como fato social e fenômeno jurídico, sendo imprescindível para a compreensão mais exata desse fenômeno, posto que através dos dados coletados será possível promover de maneira mais assertiva o enfrentamento à criminalidade e a prevenção da vitimização.

REFERÊNCIAS:

1. BRASIL. Decreto - lei 2848, de 07 de dezembro de 1940. Código penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 11 de jun. 2021.

2. BURKE, Q. Vitimologia: manual da vítima penal. Salvador: Juspodivm, 2019.

3. GONZAGA, C. Manual de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2018.

LINO, D. Criminal profiling/ Perfil criminal: Análise do comportamento na investigação criminal. Curitiba: Juruá, 2021.

4. MORAES, A. R. A.; e NETO, R. F. Criminologia. Salvador: Juspodivm, 2019.

5. PELUSO, V. T. P. Introdução às ciências criminais. Salvador: Juspodivm, 2020.

6. PAULINO, M. et al. Profiling, vitimologia e ciência forenses. Lisboa: Pactor, 2013.

7. RIBEIRO, L. R. P. Vitimologia. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/RDP_07_30.pdf. Acesso em 12 de jun. 2021.

8. VIANA, E. Criminologia. Salvador: Juspodivm, 2020.

Sobre o autor
Jonathan Dantas Pessoa

Policial civil do Estado de Pernambuco, formado em direito pela Universidade Osman da Costa Lins - UNIFACOL/ Vitória de Santo Antão. Pós - graduado em direito civil e processo civil pela Escola Superior de Advocacia Professor Ruy Antunes - ESA/OAB/PE - Recife/PE. Mestre em Psicologia Criminal com Especialização em Psicologia Forense pela Universidad Europea del Atlántico - Santander/ES. Pós graduado em Criminologia pela Faculdade Unyleya. Pós graduado em Psicologia Criminal Forense pelo Instituto Facuminas. Membro do Centre for Criminology Research - University of South Walles. Membro do Laboratório de estudos de Cognição e Justiça - Cogjus.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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