A vitimologia pode ser conceituada como o estudo das pessoas que são atingidas por comportamentos danosos (estrito sensu comportamentos criminosos ou desviantes), e visa compreender como essas pessoas influenciam na etiologia causal desses comportamentos prejudiciais, os processos de vitimização e como atuar para evitar esses comportamentos e para prestar a assistência adequada a essas pessoas que foram prejudicadas (Moraes e Neto, 2019, p. 67).
Há muito foi deixada de lado a visão obsoleta da vítima como a pessoa totalmente imaculada que fora atingida pelo comportamento oriundo de um sujeito cruel e totalmente culpado, passando-se a uma visão mais integrativa e completa do fenômeno criminoso, percebendo que a dinâmica envolvendo a vítima e o autor da conduta desviante, por vezes, demonstra participação importante da parte prejudicada na gênese do fenômeno criminoso.
Não se está aqui, por obvio, tentando se promover uma inversão de valores, colocando a vítima como responsável pelo dano que está suportou, mas pelo contrário, entender essa contribuição da vítima para a sua vitimização se faz importante para, uma vez compreendendo o fenômeno criminoso em sua integralidade, podermos criar estratégias e politicas públicas que visem evitar vitimizações futuras, o que demonstra a importância da criminologia para estudar o papel da vítima penal dentro da dinâmica criminosa.
Ao se promover formas de evitar a vitimização estamos defendendo os direitos das vítimas, e quando falamos em direitos violados por condutas criminosas estamos, por obvio, falando dos direitos mais essenciais de nossa sociedade e que, portanto, merecem a proteção jurídico penal que lhe é atribuída.
Basta uma rápida análise na própria evolução histórica da vitimologia para percebermos que da primeira fase, da vingança privada onde a vítima era a grande protagonista do sistema punitivo, passando pela neutralização que atribuiu ao Estado o poder de resolução dos conflitos de interesse e marginalizou a vítima tornando a mesma em mera fonte probatória, até a o período do redescobrimento (com o nascimento da vitimologia), que ocorreu justamente no pós segunda guerra mundial e foi fruto do grande clamor mundial em decorrência das graves violações de direitos humanos promovidas pelo nazi-fascismo, para percebermos que a vitimologia e a defesa dos direitos humanos estão umbilicalmente ligadas em sua origem histórica e finalística (Viana, 2020, p. 162).
Assim, no estudo da vitimologia a questão da preservação dos direitos humanos das vítimas penais acaba sendo uma questão central, e não há como pensarmos em direitos da vítima penal enquanto permanecermos na ideia clássica que torna a vítima dos delitos uma mera fonte de informação (Burke, 2019 p. p. 110 a 113), pois devemos entender que o sujeito passivo de um delito é uma pessoa que merece ser acolhida e ter reafirmada seus direitos de pessoa humana que foram gravemente violados por uma conduta grave do ponto de vista jurídico, pois de regra fatos só são definidos como crimes por constituírem violações graves de direitos ditos fundamentais para o convívio social.
Nesse diapasão, a vitimologia ao lançar luzes acerca dos processos de vitimização, tentando entender, por meio de pesquisas empíricas, como a vítima se encaixa na dinâmica delitiva, e analisando os perfis vulneráveis à condutas criminosas, acaba auxiliando na identificação de meios eficazes para evitar essa vitimização (Peluso, p. 81).
Mas não se limita apenas a isso, um dos grandes avanços que a matéria ora em comento tem trazido foi promover uma modificação no olhar da própria justiça criminal em face da vítima, com vistas a fomentar intervenções assistenciais para a pessoa prejudicada pela conduta criminosa e seus familiares (vítimas indiretas), bem como defender que no bojo do processo criminal os desejos legítimos da vítima, que é de fato quem foi diretamente prejudicado pelo comportamento criminoso, sejam levados em consideração no momento de aplicação da justiça criminal (Maia, 2003).
Outro grande motivo para se dispensar maior atenção às necessidades e desejos da pessoa prejudicada pela conduta criminosa, está em fazer com que as instancias de controle social formal ao levarem em consideração os interesses de quem foi mais prejudicado pelo comportamento desviante acaba por influenciar na diminuição dos índices de subnotificação de crimes (cifra oculta), pois muitas vezes a pouca importância dispensada pelo Estado para os interesses da vítima se mostra determinante para que esta não procure o sistema de justiça criminal, baseado na percepção da vítima de que no processo criminal seus interesses são completamente ignorados, o que se mostra um obstáculo a que a vítima venha a provocar a persecução criminal.
Outro fator negativo e que contribui para os altos índices de subnotificação é o fenômeno da revitimicação, pois além de marginalizar a vítima o sistema de justiça criminal, por vezes, acaba expondo a vítima a outros traumas decorrente da própria burocracia estatal, o que ocorre, por exemplo, com a necessidade de que a vítima relate diversas vezes o crime sofrido, revivendo todo o horror que passou, bem como o fato desses relatos muitas vezes serem tomados sem um cuidado adequado a evitar uma nova vitimização dessa vítima.
Dispensar à vítima de um delito um tratamento com dignidade e que respeite as peculiaridades e interesses da mesma, é uma questão de direitos humanos, onde essa pessoa faz jus a receber do sistema de justiça criminal tratamento adequado e respeitoso, devendo ser dispensada à mesma, dentre outros, o direito a ver sua intimidade preservada, direito a informação quanto ao andamento do processo e de decisões que restrinjam ou não a liberdade do agressor, bem como o direito a ver o dano sofrido reparado, e ter em seu beneficio toda a assistência de que necessitar, seja está de natureza médica, legal ou psicológica (Burke, 2019, p. p. 163 e 164).
Dessa forma, a vitimologia (e a criminologia no geral) se mostra como um forte instrumento de defesa dos direitos humanos das vitimas de crimes, pois ao fornecer ao sistema legal conhecimento assertivo acerca dos fatores que influenciam na gênese do delito e dos efeitos dessa conduta sobre as pessoas atingidas, acaba contribuindo para que o sistema legal atue de maneira a preservar os direitos fundamentais da pessoa prejudicada pelo comportamento criminoso, seja quando evita que uma pessoa seja vitimizada (garantindo o direito fundamental à segurança pública), seja quando cria politicas publicas de assistência à vítima (garantindo o direito à saúde, física ou psicológica, por exemplo, da vítima de um delito).
Não sem razão a matéria ora debatida já tem demonstrado um grande avanço na realidade do sistema de justiça criminal, ao promover ferramentas que evitem a revitimização da vítima (ex: do depoimento especial de vítimas de abuso sexual – Burke, 2019, p. p. 159 a 162), bem como um olhar mais atento para os interesses da vítima que mais do que ver a punição do agressor deseja ver o seu dano reparado, o que ocorre, por exemplo, na necessidade do juiz, no momento da condenação, definir um valor mínimo indenizatório em favor da vítima do crime.
Diante o exposto, podemos concluir que esse olhar mais atento sobre a vítima é uma forma interessante de promover os direitos humanos da mesma, dando a esta mais relevância dentro do processo criminal, pois se ela é a parte prejudicada pela conduta criminosa, cabe a ela a posição de protagonismo para a resolução adequada desse conflito, posto que só assim poderemos superar a ideia já ultrapassada de que a vítima seria uma mera fonte probatória, como se o Estado fosse o grande ofendido pela conduta delituosa, o que na realidade está longe de ser verdade.
REFERÊNCIAS:
1. BURKE, Q. Vitimologia: manual da vítima penal. Salvador: Juspodivm, 2019.
2. GONZAGA, C. Manual de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2018.
LINO, D. Criminal profiling/ Perfil criminal: Análise do comportamento na investigação criminal. Curitiba: Juruá, 2021.
3. MAIA, L. M. Vitimologia e direitos humanos. 2003. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/lucianomaia/lmmaia_vitimologia_dh.pdf. Acesso em 19 de jun. 2021.
4. MORAES, A. R. A.; e NETO, R. F. Criminologia. Salvador: Juspodivm, 2019.
5. PELUSO, V. T. P. Introdução às ciências criminais. Salvador: Juspodivm, 2020.
6. PAULINO, M. et al. Profiling, vitimologia e ciência forenses. Lisboa: Pactor, 2013.
7. VIANA, E. Criminologia. Salvador: Juspodivm, 2020.