O FUTURO DAS LIMINARES EM MANDADO DE SEGURANÇA: A DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 7º, § 2º, DA LEI 12.016/2009

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O presente artigo pretende estudar o impacto da decisão do STF na ADI 4.296 no que se refere à declaração de inconstitucionalidade do art. 7º, §2º, da Lei 12.016/2009 – o qual regulamentava restrições à concessão de liminares contra a Fazenda Pública.

No dia 09 de junho de 2021, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento da ADI 4.296/DF, proposta pelo Conselho Federal da OAB, julgando, por maioria, inconstitucional o parágrafo 2º do artigo 7º da Lei n.º 12.016/2009, que vedava a “concessão de liminar com objetivo de compensação de créditos tributários, entrega de bens e mercadorias provenientes do exterior, reclassificação ou equiparação de servidores públicos e a concessão de aumento ou a extensão de vantagens ou pagamento de qualquer natureza.”

Nas razões apresentadas pelo requerente, especificamente no que se refere ao dispositivo supra, assentou-se a impossibilidade de se vedar, mediante lei, o controle judicial de ato administrativo, pretendendo-se conferir maior liberdade ao juiz diante de ações contrárias ao Poder Público. Noutras palavras: visa-se uma amenização das prerrogativas conferidas à Fazenda Pública.

Pode-se dizer que a declaração de inconstitucionalidade em comento representa uma ruptura, não só em consideração à construção, ao longo dos anos, da vedação à concessão de liminares contra o Poder Público pelo ordenamento jurídico brasileiro, mas também em face da própria jurisprudência sedimentada no âmbito do STF. Muito embora a realidade no âmbito das instâncias ordinárias (1º e 2º graus) revele que a declaração de inconstitucionalidade não altera demasiadamente as liminares que já vinham sendo concedidas em favor dos particulares.

De todo modo, há muito se havia legalmente assentado a impossibilidade de deferimento de medidas liminares em face da Fazenda Pública, assim como nos termos preconizados pela Lei do Mandado de Segurança.

A respeito disso, confira-se didática alusão evolutiva acerca das legislações sobre a matéria apresentada por Leonardo Carneiro da Cunha:

“Todas essas vedações são antigas no ordenamento jurídico brasileiro. A vedação à concessão de liminar que vise à liberação de bens e mercadorias de procedência estrangeira já constava da Lei 2.770/1956. Por sua vez, a restrição à concessão de liminares objetivando a reclassificação ou equiparação de servidores públicos ou à concessão de aumento ou extensão de vantagens estava prevista nas Leis 4.348/1964 e 5.021/1966.”[1]

Quanto ao aspecto jurisprudencial, no julgamento da ADI 223, julgada em 05/04/1990, o STF concluiu pela admissibilidade da imposição de condições e limitações ao poder cautelar do juiz, tendo o Ministro Sydney Sanches consignado, em seu voto vista, ser possível que leis ordinárias restringissem a concessão de liminares em obediência ao interesse público, desde que referida restrição não impedisse o controle jurisdicional. Pela pertinência para o presente trabalho, transcreve-se excerto do voto do Ministro Moreira Alves, também apresentado no julgamento da ADI 223, ipsis litteris:

“(...) o proibir-se, em certos casos, por interesse público, a antecipação provisória da satisfação do direito material lesado ou ameaçado não exclui, evidentemente, da apreciação do Poder Judiciário, a lesão ou ameaça ao direito, pois ela se obtém normalmente na satisfação definitiva que é proporcionada pela ação principal, que, esta sim, não pode ser vedada para privar-se o lesado ou ameaçado de socorrer-se do Poder Judiciário.”

Anos depois, por ocasião do julgamento da ADC 4, em 01/10/2008, instado a se manifestar a respeito da constitucionalidade do art. 1º da Lei 9.494/1997, o STF entendeu pela procedência da ação, de forma a preservar a Fazenda Pública contra o deferimento generalizado de tutelas antecipatórias, considerando o caráter não exauriente da cognição sumária e ausência do contraditório e ampla defesa.

Da análise de ambos os julgados em ações de controle concentrado, percebe-se que o Supremo possuía histórico entendimento no sentido da constitucionalidade da imposição de limitações para as liminares contra a Fazenda Pública, superando tal entendimento, por decisão do plenário, com o julgamento da ADI 4.296.

Impende destacar que, muito embora existisse significativa doutrina contrária à constitucionalidade das vedações à concessão da tutela de urgência, “por atentarem contra a garantia da inafastabilidade da tutela jurisdicional”[2], outra corrente doutrinária entendia que as vedações retratariam “hipóteses em que não se fariam presentes os requisitos para a sua concessão, ou porque esta seria irreversível, ou porque ausente o periculum in mora”[3].

Outrossim, é importante atentar que a própria exposição de motivos da Lei 12.016/2009 apresenta a intenção do legislador de dialogar com entendimentos firmados jurisprudencialmente, denotando inclusive a especial intenção assecuratória acerca dos cofres públicos. Confira-se:

“Também inspiraram a Comissão importantes conquistas jurisprudenciais, como, por exemplo, sobre impetração contra decisões disciplinares e por parte de terceiro contra decisões judiciais, bem como a adequada defesa pública, de modo a oferecer ao Poder Judiciário os elementos necessários a um julgamento imparcial, com a preservação dos interesses do Tesouro Nacional.”[4]

Tamanha é a preocupação com a repercussão econômico-financeira das decisões judiciais (considerando-se especialmente seus impactos em momentos de crise, como a que tem vivido o Brasil), que foram positivadas, com a edição da Lei 13.655/2018 (que acrescentou dez novos artigos no Decreto-Lei nº 4.657/1942 (LINDB), disposições sobre segurança e eficiência na criação e aplicação do direito público. Assim, de acordo com a recente introdução do art. 20, tem-se, in verbis:

“Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.

Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.”

É salutar a intenção do legislador positivada no supramencionado art. 20, considerando que, nos últimos anos, o Judiciário tem condenado o Poder Público à implementação de medidas assecuratórias de direitos sociais, as quais, independentemente de sua relevância, têm enorme impacto orçamentário.

Ciente da obrigação legal imposta a todos os operadores do Direito na esfera judicial, veja-se trecho do voto do Ministro Marco Aurélio, proferido na ADI 4.296, a respeito da fundamentação para a declaração de inconstitucionalidade do parágrafo 2º do art. 7º da Lei do Mandado de Segurança:

“Verifica-se, a um só tempo, a mitigação do mandado de segurança, afastando certos objetos, e a colocação em segundo plano do primado do Judiciário, da atuação do Estado-juiz. A este cabe examinar o pedido formulado e, ante o arcabouço normativo, concluir pela adequação, ou não, da tutela de urgência, pouco importando o sentido desta.

O preceito dá a Fazenda Pública tratamento preferencial incompatível com o Estado Democrático de Direito, relegando à inocuidade possível direito líquido e certo a ser examinado pelo julgador daquele que se diga prejudicado por um ato público.”

Da análise do trecho do voto acima mencionado, percebe-se que o eminente Ministro valeu-se de conceitos e valores jurídicos abstratos (“primado do Judiciário, atuação do Estado-juiz, tratamento preferencial incompatível com o Estado Democrático de Direito”) para decidir pela inconstitucionalidade do dispositivo legal em comento, muito embora não tenha – ao menos no que consta de seu voto –, atentado-se para os efeitos práticos da decisão.

A discussão posta é pertinente, porque a decisão pela inconstitucionalidade do parágrafo 2º do art. 7º da Lei nº 12.016/2009 invariavelmente gerará um enorme impacto para os cofres públicos, especialmente no que diz respeito à reclassificação e equiparação de servidores públicos, e concessão de aumento ou extensão de vantagens ou pagamento de qualquer natureza.

In casu, muito embora o art. 100 da Constituição Federal estabeleça o regime de precatórios para os pagamentos devidos pela Fazenda Pública em virtude de sentença transitada em julgado, as condutas de reclassificar e equiparar servidores públicos, conceder aumento ou extensão de vantagens ou pagamento representam, a priori, obrigações de fazer (ainda que com impactos financeiros diretos), não se sujeitando, portanto, à sistemática constitucional mencionada.

Nesse sentido, com a queda da vedação imposta no parágrafo 2º do art. 7º da Lei 12.016/09, torna-se possível que, em sede de decisões liminares de cognição sumária, a Administração Pública seja obrigada a realocar vultosas parcelas do orçamento para dar azo ao cumprimento de ordens judiciais (independente de trânsito em julgado e da sistemática de precatórios, como ressaltado), o que, em análise preliminar, parece se chocar com a proibição constitucional constante do inciso VI do art. 167[5].

É indubitável que o deferimento irrestrito de liminares causará danos às Finanças Públicas, fato que repercutirá sobre todo o quadro econômico e social. Afinal de contas, o limitado orçamento público destina-se a satisfazer, ao menos em tese e no que for possível, todas as necessidades da população.

Pela perspectiva da ausência de cognição exauriente para o deferimento das liminares em questão, há ainda a grave possibilidade de, sem os procedimentos inerentes ao contraditório e ampla defesa, serem cometidos equívocos judiciários que terão repercussão de forma imediata e mediata na atuação da máquina estatal: seja para o seu próprio funcionamento, seja para disponibilidade orçamentária para a continuidade da prestação de serviços e programas em prol da sociedade. Sofrem, portanto, as políticas públicas necessárias para toda a população.

É de salientar ainda que a declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos legais ora tratados é apta a operar, ainda, a famigerada inconstitucionalidade por arrastamento.

Referida técnica é definida, nas palavras de Gilmar Mendes:

“A dependência ou interdependência normativa entre os dispositivos de uma lei pode justificar a extensão da declaração de inconstitucionalidade a dispositivos constitucionais mesmo nos casos em que estes não estejam incluídos no pedido inicial da ação. É o que a doutrina denomina de declaração de inconstitucionalidade consequente ou por arrastamento.”[6]

A propósito, veja-se o que preconiza o art. 1º da Lei 8.437/92, que dispõe sobre a concessão de medidas cautelares contra atos do Poder Público:

“Art. 1° Não será cabível medida liminar contra atos do Poder Público, no procedimento cautelar ou em quaisquer outras ações de natureza cautelar ou preventiva, toda vez que providência semelhante não puder ser concedida em ações de mandado de segurança, em virtude de vedação legal.

§ 1° Não será cabível, no juízo de primeiro grau, medida cautelar inominada ou a sua liminar, quando impugnado ato de autoridade sujeita, na via de mandado de segurança, à competência originária de tribunal.

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§ 2° O disposto no parágrafo anterior não se aplica aos processos de ação popular e de ação civil pública.

§ 3° Não será cabível medida liminar que esgote, no todo ou em qualquer parte, o objeto da ação.

§ 4° Nos casos em que cabível medida liminar, sem prejuízo da comunicação ao dirigente do órgão ou entidade, o respectivo representante judicial dela será imediatamente intimado.       

§ 5o Não será cabível medida liminar que defira compensação de créditos tributários ou previdenciários.”

Da leitura do dispositivo legal, constata-se que o caput do artigo 1º faz referência expressa à Lei que rege o Mandado de Segurança, acerca do recém-declarado inconstitucional parágrafo 2º do art. 7º, para coibir a concessão de liminar em face do Poder Público.

Nas palavras de Leonardo Carneiro da Cunha:

“Esses impedimentos, que seriam próprios para o mandado de segurança, aplicam-se, de igual modo, às providências liminares concedidas em ações cautelares. Com efeito, é vedada, pela Lei 8.437/1992, a concessão de liminares em ações cautelares quando igualmente impedida na via do mandado de segurança.”[7]

Nesse sentido, a declaração de inconstitucionalidade operada na ADI 4.296 tem o condão de afetar todas as ações de natureza cautelar ou preventiva, não se restringindo, portanto, unicamente às ações de mandado de segurança, a menos que o Supremo Tribunal Federal entenda não existir relação de dependência[8] entre o caput do art. 1º da Lei 8.437/92 e o art. 7º, §2º, da Lei 12.016/09, em que pese a referência legal.

Nessa linha, percebe-se que a novel jurisprudência da Suprema Corte rompe com toda uma lógica legal que tratava do tema referente à concessão de liminares em face da Fazenda Pública.

Doravante, portanto, o Judiciário encontra-se livre das amarras legais então vigentes, podendo atuar sem tantas restrições e com mais liberdade.

Apesar disso, imprescindível ressaltar que a Justiça continua vinculada aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, bem como à motivação e adequada fundamentação de todas as suas decisões.

 


[1]CUNHA, Leonardo Carneiro da. A fazenda pública em juízo. 17 ed., Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 329.

[2]BUENO, Cassio Scarpinella. A nova lei do mandado de segurança. São Paulo: Saraiva, 2009. N. 17. P. 45; CERQUEIRA, Luís Otávio Sequeira de. Comentários à nova lei do mandado de segurança (em coautoria com Luiz Manoel Gomes Júnior, Luana Pedrosa de Figueiredo Cruz, Rogério Favreto e Sidney Palharin Júnior). São Paulo: RT, 2009. P. 90-91; FERRARESI, Eurico. Do mandado de segurança. Rio de Janeiro: Forense, 2009. P. 51.; MACHADO, Hugo de Brito. Mandado de segurança em matéria tributária. 8 ed. São Paulo: Dialética, 2009, n. 8.3, p. 142; DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Comentários à nova lei do mandado de segurança. Napoleão Nunes Maia Filho; Caio Cesar Vieira Rocha, Tiago Asfor Rocha Lima (orgs.). São Paulo: RT, 2010. P. 139; ROQUE, André Vasconcelos; DUARTE, Francisco Carlos. Mandado de segurança: comentários à Lei 12.016/09. Curitiba: Juruá, 2011. P. 69-71 e 75-76; MARINS, James. Direito processual tributário brasileiro (administrativo e judicial). 6 ed. São Paulo: Dialética, 2012, p. 623-626.

[3]DECOMAIN, Pedro Roberto. Mandado de segurança (o tradicional, o novo e o polêmico na Lei 12.016/09). São Paulo: Dialética: 2009. N. 109. P. 302-308.

[4] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/exposicao-motivos-le.pdf>. Último acesso em 25/05/2021.

[5]Art. 167. São vedados: (...) VI - a transposição, o remanejamento ou a transferência de recursos de uma categoria de programação para outra ou de um órgão para outro, sem prévia autorização legislativa;

[6]MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 15ª ed., São Paulo, Saraiva Educação, 2020, n.p.

[7]CUNHA, Leonardo Carneiro da. A fazenda pública em juízo. 17 ed., Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 329.

[8] ADI 2.895, Rel. Min. Carlos Velloso, Plenário, DJ 20/05/2005

Sobre os autores
Gentil Ferreira de Souza Neto

Procurador de Estado e Advogado. Mestre em Direito Constitucional. Especialista em Direito Público e Direito Constitucional.

Rafael José Farias Souto

Advogado e consultor jurídico. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Atuação nas searas pública e privada. Possui pós-graduação em Direito Público pela Universidade Anhaguera-UNIDERP, em Direito Administrativo pelo Instituto Elpídio Donizetti, e atualmente é pós-graduando em Direito Previdenciário pela Faculdade Legale.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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