Com o avanço tecnológico para o desenvolvimento de novos fármacos e medicamentos, a reboque, surgem novos casos de responsabilidade civil por danos causados por medicamentos defeituosos, os quais põe em risco à saúde e vida dos consumidores. Dessa forma, é fundamental a compreensão dos vícios ou defeitos que possam incidir sobre esses produtos, pois podem causar danos irreparáveis.
Para se compreender a aplicação da responsabilidade civil no contexto de danos resultantes de medicamentos lançados no mercado consumidor, relevante iniciarmos com a análise do conceito de responsabilidade civil, a qual é qualificada como um dever jurídico sucessivo de reparar os danos do consumidor, em virtude da violação do dever jurídico originário de não violar direito e nem causar prejuízos aos direitos dos consumidores.
Destaca-se, nessa linha a lição de José Aguiar Dias, citado por Patricia Rizzo Tomé (Responsabilidade civil e medicina, 9. ed. Editora Foco, 2020, p. 207):
“A responsabilidade civil foi o caminho encontrado para restabelecer o ‘equilíbrio econômico-jurídico alterado pelo dano’.”
Fármaco e medicamento é a mesma coisa?
O conceito de fármaco não se confunde com o de medicamento.
Medicamento é o “produto farmacêutico com finalidade profilática (prevenir doenças), curativa (remover o agente causal de doenças), paliativa (alternativas para minimizar os sintomas de desconforto – gerenciamento de sintomas) ou para fins de diagnóstico", como é o caso dos contrastes radiológico.
Fármaco é a “substância química que é o princípio ativo do medicamento.
Esses conceitos são extraídos da Portaria n.º 3.916, de 30 de outubro de 1998.
Como saber de quem é a responsabilidade por medicamento defeituoso?
Para identificar o regime da responsabilidade civil aplicável na hipótese de lesão à vida ou à saúde, causadas por medicamentos, é imprescindível distinguir dois momentos, ou seja, antes da colocação do medicamento no mercado de consumo – fase dos ensaios clínicos – e após a sua inserção, segundo Tomé.
Os ensaios clínicos têm a finalidade de investigação dos efeitos, modo de absorção dos componentes químicos em cada ser humano, visando assegurar a tão almejada segurança e eficácia dos medicamentos. Saindo do plano abstrato para o concreto, podemos citar os ensaios clínicos realizados pelo Mundo, envolvendo a vacina contra COVID-19.
O momento seguinte aos ensaios, se denomina “fase zero”, visando a identificação dos componentes químicos que serão testados futuramente em seres humanos.
Quais são as etapas para liberar o remédio para o mercado?
O momento que antecede a circulação dos produtos farmacêuticos no mercado de consumo compreende quatro fases, quais sejam:
FASE I: tem por finalidade realizar os testes em pequenos grupos de pessoas saudáveis;
FASE II: é denominada de ensaios terapêuticos piloto, corresponde aos testes realizados com um grupo seleto de pessoas doentes, com a finalidade de avaliar a eficácia e segurança do novo produto;
FASE III: permite que o medicamento seja utilizado em um número maior de pessoas, visando comparar os resultados com os produtos já existentes; e
FASE IV: é chamada de farmacovigilância e o medicamento já foi aprovado e devidamente registrado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, estando autorizada a sua inserção no mercado consumidor.
Portanto, até a fase III que existe apenas uma atividade de mera pesquisa científica, sem a inserção de qualquer produto no mercado consumidor, o medicamento que apresente vicio ou defeito que seja a causa direta de um dano aos participantes dos ensaios, terá por corolário a incidência do Código Civil de 2002 (Lei 10.406/2002, g.n.), tendo em vista ausência de relação de consumo propriamente dita.
A partir da fase IV, considerando a efetiva disponibilização do medicamento novo para o consumidor, as possíveis lesões resultantes desses medicamentos serão reparadas através da aplicação da responsabilidade civil objetiva, prevista no Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990).
Medicamento com defeito na fase de ensaios, de quem é a responsabilidade?
Adequado para fundamentar esse entendimento a decisão proferida na Apelação nº 70020090346, pela 9ª Câmara Cível do Tribunal do Rio Grande do Sul, afastando a incidência do CDC para a hipótese de responsabilidade civil por danos causados em virtude de medicamentos defeituosos na fase dos ensaios clínicos, tendo em vista a ausência de relação de consumo ante a participação voluntária e consciente do sujeito, que, inclusive, concedeu o seu consentimento livre e esclarecido.
A responsabilidade civil dos fabricantes de medicamentos defeituosos é objetiva, nos termos do artigo 12 do CDC:
“Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos”.
Responder de forma objetiva significa não exigir que o consumidor demonstre a atuação culposa nas relações consumeristas, em vista dessa regra geral legal.
Há possibilidade do médico responder por lesões, ainda que causadas por medicamentos, se o médico for negligente na anamnese, receitando, afoitamente, medicamento com base apenas nas indicações da literatura ou da bula e disso resultar dano ao paciente, a responsabilidade civil será tanto do médico como do laboratório, diz Jurandir Sebastião (Responsabilidade médica: civil, criminal e ética, 3ª ed., Del Rey, 2003, p. 197).
Além disso, se o médico se omitir no dever de suspender o medicamento, concomitante à modificação da terapia, ficará responsável perante o paciente, independentemente da responsabilidade do fabricante do produto.
Como posso ter o direito de reparação?
Dessa forma, para o consumidor ter direito a justa e razoável reparação dos danos patrimoniais – materiais – ou extrapatrimoniais – morais, estéticos etc., todavia, deverá comprovar perante o juízo (Judiciário) conduta, dano lesivo e nexo de causalidade.
A conduta que viola o dever jurídico originário de não causar dano a outrem pode ser verificada nas fases de ensaios clínicos e cometida pelo patrocinador, ou seja, aquele que financia e administra toda a pesquisa científica com a finalidade de exploração futura com exclusividade (Tomé, p. 211); e no momento da comercialização dos medicamentos e praticada pelos fabricantes.
O dano pode surgir ao paciente submetido aos testes do medicamento, como, por exemplo, as reações anafiláticas a vacina contra COVID-19, noticiadas pelas concessionárias de tv. Somente o dano certo e efetivamente produzido poderá gerar o dever jurídico sucessivo – responsabilidade civil – de repara ou indenizar na esfera civil, daí porque mencionamos dano “lesivo”.
Nessa linha, o consumidor poderá pleitear na justiça a reparação de danos morais – reflexos negativos causados pelas consequências nefastas do medicamento defeituoso – e materiais – emergente e lucro cessante. Este corresponde ao direito do lesado (consumidor) em receber o que razoavelmente deixou de lucrar em razão da lesão sofrida pelo o uso do medicamento. Aquele é o prejuízo efetivamente sofrido pela vítima.
O nexo de causalidade é a ligação entre a conduta do fabricante, contrária ao direito e as normas de vigilância sanitária em virtude de medicamentos testes ou colocação de medicamentos defeituoso no mercado consumidor, e os riscos ou lesão a direitos à vida ou à saúde do paciente ou consumidor causados por esses produtos farmacêuticos.
Não basta adotar uma conduta ilícita ou a existência de um resultado danoso para que o dever jurídico de reparar ou indenizar possa ser exigido pela vítima. É necessário que o dano sofrido tenha como causa direta e imediata a conduta ilícita do outro agente, diz Tomé (p.218).
Isso é, deve comprovar que a morte ou outro dano à saúde do paciente ou consumidor tenha sido causado após o uso do medicamento, com relação direta ao vicio ou defeito do produto.
O CDC no art. 18 estabelece a responsabilidade do fabricante por vício ou defeito do produto. Já o art. 12, pelo vício ou defeito pelo fato do produto.
O que é vício de um produto?
Configura vício, um medicamento com quantidade inferior a descrita na embalagem, que não apresentar o princípio ativo indicado na bula ou mesmo incluir substância não descrita. Ou seja, uma inadequação que impeça a utilização do produto ou reduza o seu efetivo valor. Segundo o Ministro Luis Felipe Salomão, o vício “torna o produto inadequado, para os fins a que se destina”, segundo Tomé pág. 212.
De acordo com o art. 18, § 1°, do CDC, não sendo o vício sanado no prazo máximo de trinta dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:
I – A substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso;
II – A restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; e
II – O abatimento proporcional do preço.
O fato do produto, consoante disposição expressa do art. 12 do CDC, é configurado por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre a utilização e riscos do medicamento.
Todo medicamento que me causar dano é defeituoso?
Todavia, como bem observa Tomé, pág. 214, a possibilidade de um medicamento causar dano em virtude do risco que lhe é inerente ou de produzir reações adversas que dele se espera, não o tornam passível de ser considerado defeituoso. Do mesmo modo que uma alergia produzida em paciente específico, não configura defeito.
Arremata a autora, no entanto, corresponde a um defeito no medicamento a produção de reações adversas não previsíveis pelo laboratório fabricante ou pelo profissional da saúde que recomendou o produto.
As Excludentes de responsabilidade civil estão previstas no art. 12, § 3º, incisos I a III, do CDC. Dessa forma, o fabricante de medicamento só não será responsabilizado quando provar:
I – que não colocou o produto no mercado;
II – que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; e, por fim,
III – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
Diante da presença de uma dessas causas de exclusão da responsabilidade há a ruptura do nexo causal e, por conseguinte, o fabricante não responderá pelos danos da vítima. Todavia, compete ao fabricante de medicamento comprovar efetivamente a conduta da vítima/consumidor para a exclusão da sua responsabilidade, aponta Tomé, pág 221,
A responsabilidade exclusiva do consumidor poderá excluir a responsabilidade da indústria farmacêutica, quando decorrer da falha do armazenamento do consumidor ou consumo em quantidade diversa da indicada na bula. A responsabilidade de terceiro pode ser compreendido da venda errônea e consequente consumo inadequado, em virtude da letra ilegível do médico.
Conclusão
No contexto das lesões à integridade à vida ou à saúde resultantes dos medicamentos defeituosos, ressalta o seguinte questionamento exarado das lições de Tomé, pág. 222: Os danos decorrentes do desenvolvimento excluem a responsabilidade do fabricante? Para grande parte da doutrina, não é causa para exclusão da responsabilidade civil do fabricante de medicamento, pois o risco é inerente a sua atividade.
Conclui-se que à responsabilidade civil do fabricante de medicamento incide a teoria objetiva do risco da atividade, ou seja, inerente ao produto.
A responsabilidade pelos danos causados pelo medicamento antes que seja colocado no mercado consumidor terá o regramento do CC/02. Após a comercialização do medicamento, a apuração da responsabilidade objetiva do fabricante é com base nos regramentos do CDC.
O consumidor é obrigado a demonstrar a conduta antijurídica do fabricante, o nexo de causalidade e o dano lesivo. Todavia, o fabricante só não será responsabilizado se demonstrar uma das causas da exclusão da responsabilidade civil, as quais terão por finalidade romper o nexo causal e, por corolário, o dever jurídico sucessivo de reparar os danos do consumidor.