1. INTRODUÇÃO
O estado de constante mutação e remodelação é condição imanente à existência do corpo social. A incessante transformação não só dos ideais políticos e econômicos, mas da própria cultura e do comportamento dos indivíduos, impõe ao direito o encargo de adequar-se a estas mudanças e inovações no comportamento do conjunto social, de modo a regular-lhe, eficazmente, suas condutas e ações. É imposto ao direito, portanto, adaptar-se às especificidades do código civilizacional e cultural da sociedade a que se destina, para que possa alcançar a máxima efetividade de seus regramentos e disposições.
O esforço do direito em acompanhar as mudanças sociais pode ser nitidamente visualizado no histórico das codificações penais brasileiras. Em exemplo mais recente, na redação original do Código Penal de 1940 se podia visualizar o crime de Sedução que, revogado apenas em 2005 pela Lei 11.106, tipificava a conduta de “seduzir mulher virgem, menor de 18 (dezoito) anos e maior de 14 (quatorze), e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança”. A presença deste dispositivo até o ano de 2005 no ordenamento jurídico brasileiro, ilustra bem o amoldamento das disposições legais às demandas e concepções do espírito social.
Em observância a este imperativo, em 2009, com a entrada em vigor da Lei 12.015, o Código Penal de 1940 foi contemplado com uma cadeia de alterações acerca da tipificação dos crimes sexuais. Dentre as principais alterações introduzidas pela nova ordem normativa, destaca-se aquela atinente à norma insculpida no art. 218 do CP, cuja existência ainda hoje desperta profundas controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais, até mesmo quanto à sua nomenclatura. Definida por Nucci (2019) como “mediação de vulnerável para satisfazer a lascívia de outrem”, e por Bittencourt (2021) como “corrupção de menores”, a tipificação do artigo 218 do CP tem sido alvo de intensos debates no âmbito doutrinário e jurisprudencial.
Ciente disso, este artigo abordará as principais discussões e controvérsias que circundam o assunto, para trazer um pouco de subsídio técnico-jurídico à questão, levantando os aspectos centrais das correntes doutrinárias antagônicas que compõe a celeuma ainda hoje presente no entendimento da matéria.
2. ANÁLISE CRÍTICA E LITERAL ACERCA DO ART. 218, CP
A Lei 12.015, de 7 de agosto de 2009, alterando a tipificação dos crimes sexuais, deu nova redação ao art. 218 do Código Penal, tipificando a conduta de: “induzir alguém menor de 14 (quatorze) anos a satisfazer a lascívia de outrem”, cominando, para tanto, pena de 2 (dois) a 5 (cinco) anos de reclusão.
O legislador buscou, com a inovação introduzida pelo dispositivo em comento, dedicar à proteção da dignidade sexual do menor de 14 (quatorze) anos especial tutela. Conforme colhe-se das lições do ilustre professor Cezar Roberto Bittencourt (2021), a criminalização da conduta descrita no art. 218 teria por intuito proteger não a liberdade sexual do menor, ainda inexistente nesta faixa etária, mas o saudável desenvolvimento e evolução de sua personalidade, de forma a garantir-lhe na fase adulta a decisão, livre e isenta de traumas, quanto ao seu comportamento sexual.
Assim, a partir da nova redação legal introduzida pela Lei 12.015/09, podemos apontar dois elementos centrais na construção da figura típica do art. 218: a) a conduta de induzir alguém; e b) a imprescindível finalidade de satisfazer a lascívia de outrem.
Dessa forma, compete-nos, em primeiro momento, examinar o núcleo do tipo, isto é, a conduta de induzir alguém. Induzir significa suscitar a ideia, tomar a iniciativa intelectual, fazer surgir no pensamento do induzido uma ideia até então inexistente. Embora de significado muito próximo, a expressão induzir não se confunde ao ato de instigar, por sua vez relacionado à conduta de estimular ou reforçar uma ideia já existente. Referida distinção semântica entre as expressões é utilizada como fundamento, por parte da doutrina mais apegada à preciosidade técnica, para afirmar a impossibilidade de admissão do instigador como autor da infração penal em comento. A corrente doutrinária em questão, devidamente representada nas lições de Cezar Roberto Bittencourt (2021), sustenta que, em respeito à função taxativa do princípio da legalidade, poder-se-ia considerar aquele que instiga o menor de quatorze anos a satisfazer a lascívia de outrem, não como autor, mas somente, em algumas hipóteses, como partícipe da infração insculpida no texto do art. 218 do CP. Entendimento refutado pela doutrina majoritária, conformada aos brilhantes ensinamentos do professor Rogério Sanches Cunha (2018), ao afirmar que tanto a conduta de induzir, quanto de instigar, como diversos formatos de participação, devem ser compreendidas no núcleo do tipo, como formas de mediação para satisfazer a lascívia de outrem.
Contudo, quanto ao segundo e mais controvertido elemento da figura típica do dispositivo em análise, a saber: a finalidade de satisfazer a lascívia de outrem, não se consegue visualizar semelhante consenso doutrinário, especialmente no que toca à própria noção de lascívia. O dissenso doutrinário e jurisprudencial estabelecido entorno da interpretação normativa do dispositivo legal, se externaliza em duas ramificações principais: representada de um lado por aqueles que, filiados aos ensinamentos de Guilherme de Souza Nucci (2019), compreendem a lascívia como “o desejo sexual; o desafogo do prazer de cunho erótico; a vazão à luxúria”; e de outro, por aqueles que, consentâneos às lições de Cezar Roberto Bittencourt (2021), afirmam a satisfação da lascivía como o emprego de práticas sexuais meramente contemplativas para satisfação da luxúria de alguém.
Para delimitar melhor o campo de discussão acerca do real conteúdo da “satisfação da lascívia”, objeto da controvérsia em análise, é imprescindível recorrer, de antemão, ao valor linguístico da expressão. Segundo o Dicionário Aurélio, a palavra lascívia, em sua acepção mais ampla, abarcaria tanto a ideia de sensualidade e luxúria, quanto a ideia de libidinagem, acolhendo as especificidades de ambas acepções doutrinárias. Resta-nos, portanto, analisar as particularidades da base argumentativa de cada uma das correntes antagônicas que protagonizam a celeuma doutrinária e jurisprudencial ainda presente no tratamento da questão.
3. AGENTE INDUTOR: AUTOR OU PARTÍCIPE?
O crime previsto no art. 218 do Código Penal, conforme dispõe a brilhante doutrina de Rogério Greco (2017), constitui, na verdade, modalidade especial de lenocínio, na qual o agente presta assistência à libidinagem de outrem, mediante a indução de vítima menor de quatorze anos.
No entanto, há que se destacar, parte notável da doutrina, filiada aos ensinamentos de Cezar Roberto Bittencourt (2021), é contundente ao afirmar que, apesar das similaridades, quando comparada à tipificação do crime de lenocínio típico (alcovitaria), contemplado no art. 227 do CP, a nova previsão do art. 218 se distinguiria não só pela condição de menoridade da vítima (menor de quatorze anos), mas principalmente pela dispensa da necessidade de contato físico desta com o terceiro, “destinatário” da atividade criminosa do agente. Alinhado a esta percepção, Rogério Sanches Cunha (2018) em suas preciosas lições nos apresenta que, diferente do lenocidio comum, no art 218, o ato que o menor vulnerável é induzido a praticar, não pode consistir em conjunção carnal ou outros atos libidinosos, sob pena de restar configurado o crime de estupro de vulnerável (art. 217-A), tanto para quem induz (agente indutor), quanto para quem deles participa diretamente, em virtude da regra constante do art. 29 do Código Penal, responsável pela adoção da teoria unitária ou monista em nosso ordenamento jurídico-penal.
Idêntica conclusão extrai-se das ilustres manifestações de Cezar Roberto Bittencourt (2021), no sentido de que, se no lenocínio comum (art. 227) não importa a espécie de lascívia que a vítima é induzida a satisfazer, no art. 218, por tratar-se de vítima menor de quatorze anos, incapaz de consentir em conjunção carnal ou outros atos libidinosos diversos da cópula vagínica, verificados tais atos, estar-se-ia diante do crime de estupro de vulnerável (art. 217-A), e não do delito de corrupção de menores (art. 218).
A corrente doutrinária diligentemente representada nas exposições de Rogério Greco (2017), no intento de evitar o conflito aparente de normas penais, sustenta que, por satisfação da lascívia deveríamos compreender apenas aqueles contatos superficiais, como os simples toques ou mesmo a diversidade de práticas sexuais meramente contemplativas, alcançando mesmo a simples contemplação lúdica da vítima, capaz de excitar a lascívia de alguém.
Noutro giro, indo de encontro ao entendimento delineado nas lições dos mencionados autores, corrente doutrinária consentânea aos ensinamentos de Guilherme Nucci (2019), proclama com altivez a percepção de que, com a criação da figura do art. 218, o legislador teria impedido a punição do indutor como partícipe do crime de estupro de vulnerável, concedendo-lhe pena mais branda, de dois a cinco anos de reclusão, cominada em tipo penal específico. Para o autor, o atual art. 218 do CP teria criado “uma modalidade de exceção pluralistica à teoria monista, impedindo a punição do partícipe de estupro de vulnerável, pela pena prevista no art. 217-A, quando (...) na modalidade de induzimento”
Observa Nucci (2019), acertadamente, que a opção legislativa, de criar um tipo de lenocínio especial para a vítima vulnerável, foi das mais infelizes, pois que arranca do âmbito de incidência do art. 217-A, aquele que indiretamente contribui para a execução do delito, induzindo ou instigando a vítima menor de quatorze anos a realizar junto ao terceiro conduta tendente à satisfação da lascívia deste.
Há que se destacar que, embora pretensamente baseada na evocação do argumento da ausência dos vocábulos “praticar ato sexual”, “ter conjunção carnal”, ou qualquer outra referência aos atos de libidinagem, na tentativa de expressar a intenção do legislador em excluir do âmbito de incidência da norma tal classe de atos, falece aos filiados à percepção de Bittencourt (2021), qualquer argumento capaz de justificar a proporcional ausência de exclusão expressa desses atos na aplicação da expressão mais ampla “satisfação da lascívia” no tipo penal. Nos parece, portanto, mais acertada a posição manifesta por Guilherme Nucci (2019), no sentido de que, com a inovação introduzida pela Lei 12.015/09, com a nova redação do art. 218 do CP, a conduta daquele que induz menor de quatorze anos a satisfazer a lascívia de terceiro, constitui delito de natureza autônoma, ainda que a execução de tais atos configure a figura descrita no art. 217-A. Neste caso, incide o terceiro, autor do estupro de vulnerável, na pena de 8 (oito) a 15 (quinze) anos de reclusão (art. 217-A, CP), e aquele que apenas induziu a vítima menor (agente indutor), na pena mais branda do art. 218.
Portanto, como hipótese de aplicação da exceção pluralística à teoria monista ou unitária e em respeito à autonomia do tipo penal em questão, o agente indutor, que conduza vulnerável à satisfação da lascívia de terceiro, se enquadra não mais como partícipe do crime de estupro de vulnerável (art. 217-A), mas como autor no delito de corrupção de menores insculpido no texto do art. 218 do CP.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora cediço no ordenamento jurídico-penal pátrio, a adoção, dentre as Teorias do Concurso de Pessoas, da Teoria monista ou unitária, há de se convir que, com a introdução da Lei 12.015/09, passou-se a prever nova hipótese de exceção pluralística, materializada na nova redação conferida ao art. 218 do Código Penal.
Não se pode negar a infelicidade da opção do legislador em tipificar em dispositivo autônomo a conduta daquele que induz o menor à satisfação da lascívia de terceiro, cominando, para tanto, pena substancialmente mais branda que aquela prevista no art. 217-A, CP. No entanto, sob nenhuma hipótese deve-se admitir a estrambólica tentativa de deformar o texto legal para atender ao clamor, tolamente repetido no seio popular, por uma maior rigidez do ordenamento jurídico-penal.
Assim, na ausência de previsão expressa de exclusão dos atos libidinosos da classe de atos aptos à satisfação da lascívia tipificada no art. 218, deve-se concluir por sua acepção mais ampla, capaz de abarcar a integralidade das condutas daquele que induz menor de quatorze anos a satisfazer, por quaisquer atos, libidinosos ou não, a lascívia de outrem.
REFERÊNCIAS
BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte especial: crimes contra a dignidade sexual até crimes contra a fé pública - arts. 213 a 311-A - v. 4. 15. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021.
BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro: 1940.
GRECO, Rogerio. Curso de Direito Penal: parte especial, volume III. 14. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2017.
NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal: parte especial: arts. 213 a 361 do codigo penal. 3. ed. Rio de Janeiro: 2019.
CUNHA, Rogerio Sanches. Manual de Direito Penal: parte especial (arts. 121 ao 361. 10. ed. Salvador: JusPODIVM, 2018.