USUCAPIÃO VS INDISPONIBILIDADES NA MATRÍCULA
O procedimento de usucapião extrajudicial passou a ser possível após a vigência da lei 13.105/15 que em seu art.1.071, inovou com a inserção do art.216-A na lei dos Registros Públicos 6.015/73, tornando possível processar o pedido diretamente no cartório de registro de imóveis competente pela circunscrição imobiliária e não mais pela via judicial tradicional.
É importante esclarecer que o legislador não excluiu a via judicial para se processar o pedido de usucapião, ele apenas inseriu no ordenamento jurídico, mais um instrumento legal para que de forma consensual se possa regularizar imóveis através da usucapião administrativa diretamente no Registro de Imóveis.
Não obstante a possibilidade de se processar o pedido de reconhecimento da prescrição aquisitiva originária da propriedade através do instituto da USUCAPIÃO ADMINISTRATIVA, ainda desafia o raciocício lógico jurídico dos operadores do direito e por ordem natural também a dos oficiais registradores de imóveis de todo o Brasil, quando se fala em realizar o procedimento quando se verifica que na matrícula a existência de indisponibilidades, como por exemplo, aquelas registradas por determinação judicial, muito comum por débitos de IPTU.
A dúvida é legítima pois tem nascedouro no provimento 65/2017 do Corregedor Nacional de Justiça, que em seu art.21, assim assevera, “Art. 21. O reconhecimento extrajudicial da usucapião de imóvel matriculado não extinguirá eventuais restrições administrativas nem gravames judiciais regularmente inscritos. § 1º A parte requerente deverá formular pedido de cancelamento dos gravames e restrições diretamente à autoridade que emitiu a ordem”.
O primeiro ponto importante a considerar é que a realização do procedimento, não extinguirá eventuais restrições administrativas nem gravames judiciais regularmente inscritos na matrícula alvo da usucapião.
O segundo ponto a considera é o fato de o instituto da usucapião ter natureza jurídica de prescrição aquisitiva originária da propriedade, que em nada se vincula as relações jurídicas eventualmente existentes entres os titulares do direito real na matrícula e suas eventuais restrições impostas no fólio real por terceiros.
De modo que no mesmo provimento 65/2017 do Corregedor Nacional de Justiça podemos encontrar a solução para o impasse que gera a referida dúvida dos operadores do direito, notadamente no seu art.14 no qual temos, "Art.14. A existência de ônus real, ou de gravame na matrícula do imóvel usucapiendo não impedirá o reconhecimento extrajudicial da usucapião".
Não merece prosperar, portanto, tal dicotomia, uma vez que se tal restrição na matrícula de fato impedisse o processamento do pedido de reconhecimento da prescrição aquisitiva por USUCAPIÃO ADMINISTRATIVO, tornaria quase impossível regularizar os imóveis no Brasil, dado que a maioria possui alguma espécie de bloqueio judicial, sendo muito comum os oriundos de débitos fiscais dos titulares na matrícula.
Pode se então depreender que a existência de ônus real ou de gravame na matrícula do móvel usucapiendo não impedirá o reconhecimento extrajudicial da usucapião, pois via de regra abrir-se-á nova matrícula no Cartório de Registro de Imóveis competente.
Em recente e acertada decisão do juízo da 1ª Vara dos Registros Públicos da Comarca de São Paulo, da lavra da r. magistrada TANIA MARA AHUALLI, ao se pronunciar por sentença nos autos da ação sob o nº 1094332-06.2018.8.26.0100, em processo de suscitação de dúvida do 14º Oficial de Registro de Imóveis, pode-se colher os seguintes ensinamentos;
“...Dito isso, entendo que a questão da indisponibilidade diz respeito ao próprio mérito do pedido. É dizer que, havendo indisponibilidade de bens, registrada ou não, a análise de seus efeitos sobre o pedido formulado deve se dar ao fim do procedimento, quando o Oficial julgará se o gravame representa ou não vício que impede o reconhecimento da usucapião.
Em princípio, todavia, a indisponibilidade não impede o processamento do pedido extrajudicial, de modo que sua mera existência não justifica nota devolutiva no início do procedimento. Isso porque, sendo a usucapião modo originário de aquisição de propriedade, não pode o requerente que preencha os requisitos legais ser prejudicado por indisponibilidade que afeta terceiro...”.
(grifo nosso)
Assevera Ribeiro(2006, p. 170), nos ensinamentos de Lafayette, “o modo de adquirir é originário quando o domínio adquirido começa a existir com o ato, que diretamente resulta, sem relação de casualidade com o estado jurídico da coisa anterior”.
E assim podemos seguir compreender o modo, a ocupação, a acessão natural bem como a prescrição aquisitiva originária. Segundo Ribeiro (220, p. 171) insiste em sabiamente ponderar sobre o conceito de aquisição originária da propriedade trazendo o pensamento do respeitável Pontes de Miranda a seguir;
Pontes de Miranda, com sua peculiar argúcia, enquadra o instituto na classe dos modos originários de adquirir, demonstrando o seguinte: “Adquire-se, porém não se adquire de alguém. O novo direito já começou a formar-se antes que o velho se extinguisse. Chega o momento em que esse não mais pode substituir, suplantado por aquele. Dá-se a impossibilidade de coexistência, e não sucessão, não o nascer um do outro. Nenhum ponto entre os dois marca a continuidade. Nenhuma relação, a fortiori, entre o perdente do direito de propriedade e o usucapiente.
Na mesma doutrina, Ribeiro (2006, p.172) afirma-se que a usucapião é forma originária de adquirir, pois o usucapiente não adquire de alguém; ele simplesmente adquire.
Se sobre o bem, objeto da usucapião, existiu um proprietário, é direito que passará a não existir mais. A usucapião é um instituto que auxilia o possuidor a conquistar seu direito à propriedade em detrimento de inércia e do descuido do dono do imóvel.
É um assunto reiterado no âmbito judicial e uma novidade na via extrajudicial. Com a possibilidade da sua realização nos Cartórios, trazida pelo Código de Processo Civil e com algumas alterações ao longo dos dois primeiros anos de vigência, notamamente pelas corregedorias estaduais que regulamentam as serventias extrajudciais.
A utilização da via extrajudicial é importante ferramenta para o judiciário, pois, assim, o foco principal poderia se voltar aos processos classificados como urgentes e as ações de usucapião poderão ter maior resolução e celeridade fora dos tribunais
Ainda na hipótese de haver ônus sobre o imóvel a ser usucapido, compete ao credor se manifestar expressamente sobre o cancelamento do gravame ou sobre a sua manutenção em face do novo titular pois durante o processamento todos os interessados são instados a se manifestar.
ITBI VS USUCAPIÃO
É impostante consignar que já é cediço em todo o ordenamento jurídico, que a usucapião é modo originário de aquisição do domínio sobre a coisa. Isso é inclusive reconhecido expressamente pelo Provimento 65/2017 do CNJ, o qual, em seu art. 24, que determina que o Oficial do R.I. não exigirá pagamento do ITBI para o registro da usucapião. Por ordem natural, vez que, sendo aquisição originária, inexiste transmissão imobiliária, a saber "Art. 24. O oficial de registro de imóveis não exigirá, para o ato de registro da usucapião, o pagamento do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis – ITBI, pois trata-se de aquisição originária de domínio".
Neste sentido, e via de regra não há se falar em impossibilidade de usucapir imóveis que contenham bloqueios e restrições na matrícula, mostra-se perfeitamente possível e legal haver na esfera extrajudicial o reconhecimento da prescrição originária da propriedade de imóveis assim qualificados.