Criminologia crítica e sua contribuição para a melhoria da nossa realidade criminal.

20/07/2021 às 18:53
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Nesse artigo tecemos algumas considerações acerca das possíveis contribuições da criminologia crítica para se entender o fenômeno criminal.

Para falarmos da criminologia crítica é importante, inicialmente, relembrarmos o que a criminologia tradicional (ou liberal), tem pregado em suas diversas vertentes acerca do fenômeno criminal, o que pode ser definido em três perspectivas bastante claras (Viana, 2020, p. 333).

A primeira delas é que o criminoso seria um ser distinto das pessoas ditas como “normais”, assim o individuo desviante faria parte de uma minoria que seria claramente distinta da pessoa que segue as normais sociais.

O segundo grande pilar, e podemos dizer bastante interligado ao primeiro, é ver no crime um caráter patológico, quase de uma anormalidade de cunho pessoal (biológica ou psicológica) ou social.

Por fim, as teorias do consenso (e isso é o grande diferencial dessa perspectiva integrativa para a perspectiva conflitual, onde se insere a criminologia crítica) busca uma explicação etiológica acerca da criminalidade, tentando estabelecer as causas do fenômeno criminal, seja a nível individual, ambiental ou social.

Essa visão do fenômeno criminoso se modificou consideravelmente com a teoria do etiquetamento, quando foi  possível perceber o crime não como oriundo de fatores causais de natureza biológico, psicológico ou social, mas como efeito da própria reação social ao comportamento desviante, analisando como o controle social (principalmente formal) é essencial para a explicação do fenômeno criminal, e até para sua perpetuação.

A teoria ora analisada é baseada na própria realidade social, política e econômica que marcava o fim da década de 1960 e inicio da década de 1970 em alguns países ocidentais, como os Estados Unidos que vivia uma realidade conflitiva em decorrência da luta por direitos civis, igualdade feminina e contra a guerra do Vietnã, fazendo com que o controle social fosse objeto de maior atenção por parte dos criminólogos, com vistas a explicar como esse controle ao atuar é essencial para o entendimento do comportamento criminoso (o filme da Netflix “os 7 de chicago” demonstra de maneira clara a realidade americana no final da década de 1960).

Assim, a criminologia crítica é baseada em alguns conceitos comuns, não obstante a mesma tenha variáveis teóricas, posto que existe a criminologia crítica de cunho marxista, com uma visão bastante prevalente na estrutura econômica social como fator explicativo da realidade criminosa, ou das vertentes não marxistas mais ligadas a fatores de cunho social, cultural e políticos. Passemos então a discorrer acerca desses pontos dessa nova teoria crimonológica (Viana, 2020).

A primeira característica desse grupo de teorias que chama a atenção é sua oposição aos modelos tradicionais da criminologia, bem como no seu método de estudo. O método da criminologia crítica (sobretudo da vertente marxista) não seria o empirismo típico da criminologia liberal, mas sim uma analise de cunho histórico-analítico, onde se pesquisa a criminalização sob seus aspectos histórico, social e econômico. Como é possível vislumbrar o objeto de estudo aqui é muito mais dirigido ao controle social, no que concerne à reação social das condutas desviantes como forma de explicar o fenômeno criminal.

Essa vertente teórica busca um ataque à ordem legal constituída e ao próprio direito penal, entendendo o fenômeno criminal como oriundo de condições econômicas e marginalização social, sendo o direito penal um instrumento de controle, dentro de uma sociedade conflitiva onde a elite social domina as classes inferiores, subjugando esta última, sendo essencial o punitivismo estatal para garantir a manutenção do status quo, o que explica porque a criminalização é aplicada com maior proporção nas classes sociais (economicamente) mais desfavorecidas.

Outro ponto é que os criminológos críticos comumente possuem uma certa empatia pelo delinquente, pois este deixa de ser visto como um ser anormal, e passa a ser alguém que é vítima de um controle estatal seletivo e discriminatório que visa garantir o controle de uma classe por outra.

No que concerne especificamente à criminologia crítica de corte marxista, o estado capitalista é o principal fator crimenógeno existente, onde o foco da luta contra o crime deveria se dar por meio de reformas sociais que visem a enfrentar os problemas da pobreza e da desigualdade social, notadamente na passagem para um estado socialista que seria menos exploratório e egoísta, e mais igualitário, o que evitaria as tensões sociais que causam o crime. Dessa forma, aqui se defende um intervencionismo econômico como forma de enfrentar esse fator de risco de praticas criminosas, negando a necessidade de ressocialização do delinquente, pregando, no lugar disso, uma transformação dessa sociedade punitiva.

Essa vertente criminológica fora bastante forte nos Estados Unidos e Grã-Bretanha, mas no Brasil a criminologia crítica italiana teve influência preponderante, notadamente em decorrência da influência de Alessandro Baratta, onde o citado autor, baseado na teoria ora em comento, defendeu uma intervenção penal mínima como forma de controlar a violência institucional que não é legitima, pois visa apenas atender a interesses de grupos minoritários e socialmente privilegiados (Viana, 2020, p. p. 344 e 345).

Como podemos perceber até aqui a sociedade, formada pela dominação de uma classe (desfavorecida) por outra (privilegiada) seria perpetuada por meio de varias estruturas de cunho político e jurídico, entre elas o direito penal, onde a classe dominante em um primeiro momento seleciona comportamentos ou valores que apenas a esta interessa (crimes de cunho patrimonial, por exemplo), e, nesse contexto, as restrições impostas pelas instituições penais serviriam de óbice a qualquer intento das classes “inferiores” de alcançar o topo da cadeia social.

Em um segundo momento as instituições de controle social formal exercem, na prática, o controle dos grupos que são social e economicamente marginalizados, garantindo a perpetuação do controle político, social e econômico nas mãos da classe dominante (Moraes e Neto, 2019, p. p. 350 e 351).

Como é possível intuir a criminalidade, nesse contexto teórico, é um “bem negativo”, atribuído de maneira desigual entre os vários integrantes da sociedade, posto que todos praticam condutas previstas como crimes, mas o sistema de controle formal criminaliza em sua grande maioria pessoas de um status social baixo (marginalizados), o que evidencia o quanto o direito penal é seletivo e discriminatório, sendo esse ramo da ciência do direito apenas um instrumento que fomenta as desigualdades sociais (Gonzaga, 2019, p. p.121 e 122).

Assim, o crime não é uma característica ontológica da conduta humana, mas sim fruto de uma escolha politica que visa apenas garantir o controle social por meio da coação de quem detém o poder social, político e econômico (ou os meios de produção segundo a vertente marxista) em desfavor das classes marginalizadas.

O que fora até aqui afirmado tem sido confirmada em nossa experiência profissional na área de segurança pública, posto que no cotidiano da vida investigativa criminal é muito comum percebermos que os “alvos” do sistema criminal são: pessoas de cor negra ou parda, ou seja, descendentes de negros, que foram escravizados durante séculos no Brasil, e uma vez abolida a escravatura, não tiveram meios adequados para se integrar à sociedade como homens livres; de baixa renda e sem escolaridade com claras dificuldades para manter o essencial para sobrevivência, e sem qualquer meio para evoluir socialmente, posto que o desemprego e o subemprego são realidades marcantes do nosso país, e a educação pública de base possui qualidade questionável, enquanto a superior acaba ficando em sua maioria na mão das elites econômicas e sociais.

Dentro dessa realidade, é possível que destaquemos, especificamente, dois delitos comuns na realidade criminal em um órgão de segurança pública para enxergarmos, na prática, como essa seletividade e discriminação ocorrem.

O primeiro delito que comentaremos é o de posse de droga para consumo pessoal (Art. 28 da lei 11.343/06), onde a totalidade das pessoas conduzidas para a delegacia por esse delito são usuários de maconha e crack, drogas proibidas cujo uso normalmente é feito por pessoas de classe  baixa, pois os usuários de classe alta fazem uso de drogas mais elitizadas (e mais caras), como cocaína ou êxtase.

O ponto desta observação é: primeiro os órgãos de controle social buscam usuários que fazem uso de substâncias que apenas são destinadas a classe baixa (devido ao custo de mercado baixo das mesmas). Em seguida, esse controle é exercido em locais onde a “clientela” do sistema penal são do mesmo perfil demográfico já por nós exposto, ou seja, são locais pobres (marginalizados). E, por fim, esse perfil demográfico especifico (pobre, de cor parda ou negra, baixa escolaridade) são preferencialmente escolhidos para serem alvo desse controle, sendo muito mais fácil que órgãos de controle social (a polícia militar, por exemplo) procedam a abordagem/ revista de um jovem de cor parda, com roupas simples, talvez com tatuagens, em uma periferia de grande cidade, ao invés de abordar um individuo de cor branca e bem vestido, em um bairro de classe alta, o que demonstra na prática como o sistema de controle social formal é seletivo e discriminatório.

Outro delito (ou tipos de delitos) muito comuns na realidade brasileira são os casos de violência doméstica e familiar contra as mulheres (fatos onde é aplicado a lei nº 11.340/06, popularmente conhecida como lei Maria da Penha), posto que pesquisas realizadas no Brasil já demonstraram o quão (infelizmente) é democrático a prática de violência contra  nossas mulheres, contudo, mais uma vez aqui, na realidade investigativa criminal brasileira, nós temos o mesmo perfil demográfico das pessoas envolvidas nesse tipo de violência que batem as portas das delegacias de polícia civil Brasil afora, pessoas negras ou pardas, de baixa renda e escolaridade (aqui tanto vítimas como autores).

Dessa forma, fica claro que, não obstante alguns exageros da teoria criminológica crítica, a mesma acaba tendo forte embasamento empírico, e os conhecimentos produzidos por pesquisas baseadas nessa perspectiva teórica podem contribuir para um avanço das políticas criminais e do direito penal.

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Notem, defendemos um avanço do sistema existente, tornando-o mais justo, igualitário e efetivo, mas sem chegar ao absurdo e utopia da vertente abolicionista de criminologia crítica que é pregado por alguns de seus defensores (o próprio Baratta se diz abolicionista).

Defendemos, dessa forma, uma visão mais moderada das políticas criminais que devem ser tomadas com base nos conhecimentos oriundos dessa vertente teórica, notadamente a política de direito penal mínimo, vertente esta que se baseia em princípios penais já consagrados em vários sistemas jurídicos mundo afora e no Brasil, sendo eles: o principio da intervenção mínima (ultima ratio) que prega que o direito penal deve ser destinado à defesa dos bens jurídicos mais essenciais ao convívio social; da fragmentariedade, que estabelece que o direito penal deve se limitar a regular as ações que configurem ofensas graves a valores socialmente importantes; e da subsidiariedade, posto que o direito penal deve se limitar a intervir quando outros ramos do direito, a exemplo do direito civil e o administrativo, não sejam capazes de promover a defesa dos bens jurídicos que foram violados (Gonzaga, 2019, p. 129).

Com base nos princípios retro citados cabe ao controle social formal (leia-se os órgãos do sistema de justiça criminal, policia, Ministério Público, Poder Judiciário, e sistema Penitenciário) devem intervir apenas naqueles casos de violações graves a bens jurídicos fundamentais de nossa sociedade.

Dessa forma, a nosso ver, delitos como a posse de drogas para consumo próprio (pois é um caso muito mais afeto a saúde pública do que matéria penalmente relevante), bem como diversas contravenções penais (como perturbação de sossego ou posse de arma branca) e crimes contra a honra deveriam ser abolidos da legislação penal, posto que embora tais crimes comumente não se traduzam em encarceramento de seus autores, esses indivíduos flagrados cometendo esses atos de menor danosidade social por vezes são capturados por policiais militares e conduzidos para delegacias de polícia (o que já constitui uma restrição à liberdade dos mesmos), fato este que, igualmente, gera uma estigmatização da pessoa alvo desse controle social frente aos controles sociais formais que podem passar a ser mais incisivos na perseguição desses indivíduos identificado nesse pequeno desvio, bem como pelo controle social informal que passa a marginalizar e excluir esse individuo em decorrência de sua “prisão” por essas infrações ínfimas, quando, na verdade, todos esses ilícitos poderiam ser adequadamente reprimidos por outros ramos do direito, como o direito civil e o administrativo, sem o risco da estigmatização típica dos órgãos de justiça criminal.

E vamos além, crimes patrimoniais cometidos sem violência ou grave ameaça deveriam ser crimes de ação pública condicionada à representação da vítima com possibilidade de transação penal no caso do autor ressarcir a vítima, posto que na prática as vítimas desse tipo de delito desejam apenas ver os prejuízos sofridos pelas mesmas ressarcidos e não o encarceramento do autor, o que de um lado evita que o autor de um delito sem grande danosidade social seja encarcerado (pois, infelizmente, o sistema prisional brasileiro é desumano e muito criminógeno, não se prestando a socializar o recluso, mas, pelo contrario, acaba por dessocializar e desumanizar o mesmo), e de outro valoriza os interesses da vítima que a muito vem sendo abandonada pelo sistema de justiça criminal.

Essas pontuais mudanças de paradigma também trarão maior eficiência dos órgãos de controle formal, notadamente os policiais, que, ao invés de perder horas se debruçando sobre violações socialmente irrelevantes, poderão buscar a repressão e defesa de valores socialmente mais elevados, como a vida, a liberdade e a integridade física das pessoas.

 

REFERÊNCIAS:

 

1. BACILA, C. R. Introdução ao direito penal e à criminologia. São Paulo: Intersaberes, 2016.

2. BERGALLI, R.; e RAMÍREZ, J. B. Pensamento criminológico I: uma abordagem crítica. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

3. Brasil vive “epidemia de violência doméstica”, aponta Humans Rights Watch. 2019. Disponível em: https://claudia.abril.com.br/sua-vida/brasil-vive-epidemia-de-violencia-domestica-aponta-human-rights-watch/. Acesso em: 19 de mai.  2020.

4. GONZAGA, C. Manual de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2018.

5. MORAES,  A. R. A.; e NETO, R. F. Criminologia. Salvador: Juspodivm, 2019.

6. Os 7 de Chicago. Direção: Aaron Sorkin. Produção: Stuart M. Besser, Matt Jackson, Marc Platt, e Tyler Thompson. Estados Unidos: Netflix, 2020. 1 vídeo (130 min.). Disponível em: https://www.netflix.com/watch/81043755?trackId=13752289&tctx=0%2C0%2C75d821df71cf29f5c9b9c612c7baca370b5893ce%3A6c908b6c46be1247406bfc0bea4ad06f231b8905%2C75d821df71cf29f5c9b9c612c7baca370b5893ce%3A6c908b6c46be1247406bfc0bea4ad06f231b8905%2C%2C. Acesso em: 19 mai. 2021.

7. PELUSO, V. T. P. Introdução às ciências criminais. Salvador: Juspodivm, 2020.

8. VIANA, E. Criminologia. Salvador: Juspodivm, 2020.

Sobre o autor
Jonathan Dantas Pessoa

Policial civil do Estado de Pernambuco, formado em direito pela Universidade Osman da Costa Lins - UNIFACOL/ Vitória de Santo Antão. Pós - graduado em direito civil e processo civil pela Escola Superior de Advocacia Professor Ruy Antunes - ESA/OAB/PE - Recife/PE. Mestre em Psicologia Criminal com Especialização em Psicologia Forense pela Universidad Europea del Atlántico - Santander/ES. Pós graduado em Criminologia pela Faculdade Unyleya. Pós graduado em Psicologia Criminal Forense pelo Instituto Facuminas. Membro do Centre for Criminology Research - University of South Walles. Membro do Laboratório de estudos de Cognição e Justiça - Cogjus.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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