ASPECTOS MULTICAUSAIS QUE INFLUENCIAM A CRIMINALIDADE.

20/07/2021 às 18:56

Resumo:


  • A criminologia moderna considera o crime como um fenômeno multicausal, onde fatores biológicos, sociais e ambientais interagem para explicar comportamentos desviantes, em vez de se concentrar apenas em causas biológicas como fatores determinantes.

  • Os fatores sociais e ambientais são frequentemente vistos como mais influentes na determinação de condutas criminais do que os fatores biológicos, embora estes últimos possam ser determinantes em casos específicos, como em crimes cometidos por pessoas com transtornos mentais severos.

  • Intervenções do Estado por meio de políticas públicas, identificando e neutralizando fatores de risco, são essenciais para prevenir comportamentos desviantes, e a criminologia desempenha um papel fundamental ao fornecer informações baseadas em pesquisas para fundamentar essas políticas preventivas.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Artigo acerca das várias determinantes que influenciam o comportamento desviante.

Se em um momento inicial a criminologia se debruçou na busca por fatores biológicos (endógenos) para explicar os comportamentos desviantes, no afã de satisfazer a necessidade humana de justificar que atos bárbaros de extrema violência só podem ser fruto de uma mente distorcida ou de uma subespécie humana doentia, na modernidade as causas biológicas da criminalidade, embora influentes e até determinantes em alguns casos, são vistas em conjunto com outros fatores, como os  sociais e ambientais, onde podemos perceber que o crime é um fenômeno multicausal (biopsicossocial).

Nesse diapasão, os fatores sociais, a nosso ver, são superiores na determinação das condutas criminais, sendo, na grande maioria das vezes, o fator biológico o menos influente (embora existente) na determinação das condutas desviantes.

Não por outra razão durante todo o século passado estudos de criminológicos de natureza sociológica foram predominantes trazendo como fatores explicativos da delinquência tanto a desorganização social em dadas zonas de uma cidade(ecologia criminal da escola  de Chicago), a influencia de grupos específicos de pessoas que influenciam a prática criminosa (a teoria da associação diferencial e da subcultura delinquente), a anomia que pode resultar de um conflitos entre os fins sociais e os meios instituicionais de obter esse mesmo fim (teoria da anomia), ou fatores referentes à própria estrutura social que fomenta desigualdades e contribuem para a gênese delitiva (teoria interacionista ou criminologia crítica).

Não obstante as afirmações dantes feitas, existem, por obvio, casos específicos em que os fatores biofisiológicos acabam sendo determinantes para a conduta criminal, passemos agora, a alguns exemplos de tais casos.

Em primeiro lugar, delitos cometidos por pessoas que detenham transtornos mentais severos que, durante um surto sintomático dessa doença, acabam cometendo um crime, nos moldes do artigo 26 do Código Penal.

No dito artigo consta que se o autor do delito no momento da ação (ou omissão) criminosa em decorrência de um transtorno mental (a lei diz doença mental) era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito de sua conduta ou de se determinar de acordo com tal entendimento o mesmo seria inimputável, não sendo, pois, penalmente responsável pela sua conduta.

Notamos que nessa hipótese nos temos um fator biológico (doença mental) e um comportamento que seria uma manifestação da própria doença, guardando uma ligação causal entre a doença e o comportamento criminoso, onde podemos considerar o crime, nessa circunstância, um mero sintoma da doença mental, apto a eliminar a culpabilidade do agente causador dessa conduta delitiva (Barros et al, 2015, p. p 69 a 83).

Note-se que, no caso em questão, muito embora o fato acabe não se constituindo conduta delitiva, pois a inimputabilidade exclui a culpabilidade, o que justifica uma absolvição do autor do delito, questões de políticas criminais fazem com que, nesse caso, especificamente, baseados na periculosidade do autor e da defesa da sociedade, faz-se necessário a internação do mesmo em estabelecimento psiquiátrico de custodia e tratamento psiquiátrico, até cessada a periculosidade de tal indivíduo (Gonzaga, 2019, p. 196).

Um caso famoso de uma circunstancia desse tipo foi o crime praticado por Mateus da Costa Meira (que ficou conhecido como atirador do cinema), ex-estudante de medicina, que em 1999 fazendo uso de uma metralhadora desferiu diversos disparos contra uma sala de cinema lotada em São Paulo, matando três pessoas e ferindo outras quatro. Mateus seria esquizofrênico e tinha delírios persecutórios e alucinações auditivas (Malva, 2020).

Outro fator que pode ter origem endógena (há divergência), mais que tem uma grande correlação com comportamentos desviantes é a psicopatia.

Em primeiro lugar cabe a nós fazer uma distinção entre psicose e psicopatia. Na primeira existe uma quebra da realidade da pessoa que é acometida com essa mau, onde a mesma possui defeitos em sua percepção, onde esta pode ouvir vozes, vê pessoas ou coisas, ou até sente aromas que não existem na realidade, ou a mesma possui falhas em seu pensamento o que consiste em possuir delírios que não encontram fundamento na realidade, sendo o caso do atirador do cinema acima comentado um claro exemplo de psicose (a esquizofrenia é uma das espécies mais comuns de psicose).

Por outro lado, o psicopata tem perfeita noção dos atos que pratica, não podendo ser considerado inimputável como ocorre com o psicótico. Contudo, o psicopata não é de todo normal, posto que a psicopatia é um transtorno mental que, embora não exclua a imputabilidade penal, traz ao detentor desse transtorno serias limitações de cunho comportamental e emocional. Pessoas que são acometidas com esse transtorno tem evidentes déficits emocionais (falta de empatia e remorso, e incapacidade de manter relacionamentos afetivos profundos) e do comportamento social (ligado à necessidade de busca por sensações e falta de aptidão para manter comportamentos sociais que respeitem os direitos e necessidades alheias).

Feita está distinção é necessário deixar claro, por óbvio, que a existência do citado transtorno não significa que todo psicopata seja criminoso, existindo apenas uma forte correlação entre a psicopatia e comportamentos desviantes.

Também vale salientar que não existe unanimidade entre os especialistas acerca da gênese desse transtorno, posto que existem especialistas que acreditam que a psicopatia é oriunda de diferenças biológicas dos detentores desse transtorno (Raine, 2015), argumentando que os psicopatas possuem diferenças anatômico-cerebrais consideráveis a justificar os déficits emocionais e comportamentais dos mesmos.

De outro lado existem os especialistas que acreditam que os psicopatas se tornam assim em decorrência de fatores ambientais/sociais, não descartando, nesse caso, os fatores biológicos, contudo os fatores psicossociais seriam determinantes para o desencadeamento do citado transtorno (Hare, 2013), posição está com a qual concordamos, posto que, embora possam efetivamente existir diferenças anatômicas e funcionais no cérebro dos psicopatas não há como determinar se essas diferenças são fruto da própria fisiologia do individuo ou resultado de fatores ambientais/ sociais que promoveram uma diminuição anatômica-funcional do cérebro, o que é possível devido a plasticidade cerebral, onde fatores exógenos são capazes de promover esse tipo e  mudança no encéfalo.

Exemplo de um criminoso dito por especialistas como psicopata no Brasil seria a pessoa de Francisco de Assis Pereira, conhecido como o maníaco do parque, que em 1998 matou ao menos sete mulheres e estuprou outras nove. O modus operandi do mesmo era abordar jovens afirmando que era fotografo, e após manipular as mesmas (outras características dos psicopatas é o charme superficial, mentiras patológicas e perícia em manipular as pessoas), as levava para o parque do Estado de São Paulo, onde o mesmo estuprava e/ ou matava as vítimas (Pereira, 2020).

Diferentemente, dos imputáveis, como os psicopatas tem capacidade cognitiva e de determinação de suas ações, os mesmos podem ser condenados, pois são imputáveis, existindo casos em que os mesmos são considerados semi-imputáveis fazendo jus a uma diminuição de sua reprimenda penal.

Por fim, gostaríamos de comentar acerca da má formação cromossômica que seria fator influente no comportamento criminal, onde alguns teóricos afirmaram, baseados em uma pesquisa realizada em 1968 onde fora encontrado um numero maior da trissomia cromossômica XYY na população carcerária que na população em geral, que essa anomalia cromossômica seria um indicativo de comportamentos perigosos (e até criminosos). Não obstante tais resultados, até a presente data, essa correlação que indicaria um fator genético predeterminante de comportamentos criminosos não fora cientificamente comprovada (Moraes e Neto, 2019, p. 226).

Um caso que envolveu essa anomalia cromossômica ocorreu em 1968, quando o francês Daniel Hugon foi condenado por homicídio não premeditado, mas o tribunal que o julgou diminuiu sua pena em decorrência do mesmo possuir a trissomia XYY (Castro, 2009).

Apesar dos exemplos por nós acima expostos, vale salientar, em primeiro lugar que a preponderância de fatores biológicos como determinantes de crimes são exceção, sendo pouquíssimos os casos na prática em que delitos são praticados por pessoas com transtornos mentais severos, por exemplo.

Nem mesmos as pessoas acometidas de psicopatia são maioria entre as pessoas que praticam delitos, sendo de fato as pessoas “normais” as que mais infringem as normas penais.

Outro circunstância que merece a devida atenção é que, embora existam fatores endógenos a influenciar  a pratica de crimes, é evidente que a existência destes não exclui a influencia de outros fatores na conduta desviante, notadamente os fatores ambientais/sociais que a muito tem sido apontado pelos criminólogos como mais preponderantes na determinação do fenômeno criminoso.

Como informamos acima, mesmo os fatores biológicos por vezes não são o suficiente para a prática de condutas desviantes, sendo necessário que fatores de cunho social desencadeiem os comportamentos socialmente danosos.

Assim, fica evidente que para a ocorrência do fenômeno criminal existe uma seria de fatores complexos, de origem biopsicossocial, que acabam influenciando o comportamento desviante, inclusive fatores oriundos da própria dinâmica politica, social e econômica (como defendida por teóricos da criminologia crítica) a determinar as condutas criminosas.

Mesmo nos casos de doenças mentais graves (no caso de esquizofrenia, por exemplo) em que o seu autor venha a cometer um delito, não é possível se estabelecer a gênese dessa condição psicopatológica, posto que, nada exclui que essa doença seja decorrência de fatores ambientais ou sociais que venham a desencadear o transtorno mental.

Por fim, cabe relembrarmos que embora existam fatores de risco que podem contribuir para que o individuo cometa uma ação antissocial, é possível ao Estado identificar esses fatores de risco para agir com políticas públicas com o fito de neutralizar esses fatores ou construir fatores protetivos a evitar que determinadas circunstâncias tenha influencia para que as pessoas venha a cometer condutas de cunho desviante.

É evidente que para a implementação desse tipo de política, com vistas a obter a maior eficiência das medidas tomadas, se faz necessário a realização e o fomento de pesquisas que vissem identificar quais seriam os fatores de risco capazes de levar os indivíduos a comportamentos desviantes, e com base em tais informações desenvolver os programas necessários para intervir precocemente na gênese da criminalidade.

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Imaginemos, a título de exemplo, um jovem de periferia que tenha em sua casa uma realidade de violência (ele testemunha seu pai agredir sua mãe), que não possui educação de qualidade, e ao crescer tem dificuldades em encontrar um meio de subsistência. Nesse contexto, parece provável que esse indivíduo possa vir a cometer atos desviantes, seja porque desde criança o mesmo internalizou que a violência é uma forma adequada de interação interpessoal (como ocorria entre seus pais), o que em conjunto com a falta de oportunidades acaba impulsionando o mesmo a seguir o caminho desviante para sobreviver, onde o roubo, nesse cenário hipotético,  seria um caminho para o mesmo se manter.

Nesse caso particular politicas sociais, como atuação da secretária municipal da mulher para averiguar e proteger essa mulher e seus filhos da violência doméstica serão importantes. Junte-se a isso o investimento em educação de qualidade e políticas de empregabilidade que são aptas a ajudar esse jovem a ingressar no mercado de trabalho, e notamos como seria possível construir verdadeiras politicas de combate à criminalidade, e com isso fomentar uma sociedade mais justa, igualitária e segura.

É claro que como o delito é fator multicausal, as políticas sociais que visam minorar os fatores de risco aptos a levar uma pessoa a cometer uma conduta desviante têm que ter uma pluralidade de frentes de enfrentamento, que podem ocorrer acerca de fatores fisiológicos/biológicos (como programas de alimentação e rede de tratamento para pessoas com psicopatologia), mas que necessariamente deve ter maior foco nos fatores de risco de natureza ambiental e social, posto que os delitos praticados com pessoas detentoras de psicopatologias são exceção, sendo a grande maioria dos delitos cometidos por pessoas “normais”, e em um país como o Brasil em que as desigualdades sociais e a pobreza extrema ainda são uma realidade marcante, a questão social, sobretudo em relação à criminalidade, deve ser um tema relevante a ser levado em conta em toda política pública, incluindo as políticas de segurança pública.

E nesse contexto que pesquisas criminológicas serão de grande valia para fundamentar essa políticas preventivas, posto que essa é a finalidade dessa ciência, fornecer informações corretas baseadas em pesquisas empíricas e multidisciplinares para entender como se dá a gênese criminosa e buscas meios de fazer frente à criminalidade.


REFERÊNCIAS:

1. BACILA, C. R. Introdução ao direito penal e à criminologia. São Paulo: Intersaberes, 2016.

2. BARROS, D. M. et al. Manual de Perícias Psiquiátricas.  Porto Alegre: Artmed, 2015.

3. DE CASTRO, M. Síndrome do duplo Y (47-XYY). 2009. Disponível em: duploy.blogspot.com.br. Acesso em: 21 de mai. 2021.

4. GONZAGA, C. Manual de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2018.

5. HARE, R. D. Sem consciência: o mundo perturbador dos psicopatas que vivem entre nós. Tradução: Denise Regina Sales. Posto Alegre: Artmed, 2013.

6. MALVA, P. Filme de terror na vida real: o terrível caso do assassino do cinema. 08 de Abr. 2020. Disponível em: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/filme-de-terror-na-vida-real-o-terrivel-caso-do-assassino-do-cinema.phtml. Acesso em 22 de Mai. 2021.

7. MORAES,  A. R. A.; e NETO, R. F. Criminologia. Salvador: Juspodivm, 2019.

8. PELUSO, V. T. P. Introdução às ciências criminais. Salvador: Juspodivm, 2020.

9. PEREIRA, J. Maníaco do parque: o sanguinário serial killer  brasileiro. 16 de Jan. 2020. Disponível em: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/maniaco-do-parque-o-sanguinario-serial-killer-brasileiro.phtml. Acesso em 22 de Mai. 2021.

10. RAINE, A. A anatomia da Violência: as raízes biológicas da criminalidade. Tradução: Maiza Ritomy Ite. Porto Alegre: Artmed, 2015.

11. SCHECHTER, H. Serial killers: a anatomia do mal. Tradução: Lucas Magdel. Rio de Janeiro: Darksiders Book, 2013.

Sobre o autor
Jonathan Dantas Pessoa

Policial civil do Estado de Pernambuco, formado em direito pela Universidade Osman da Costa Lins - UNIFACOL/ Vitória de Santo Antão. Pós - graduado em direito civil e processo civil pela Escola Superior de Advocacia Professor Ruy Antunes - ESA/OAB/PE - Recife/PE. Mestre em Psicologia Criminal com Especialização em Psicologia Forense pela Universidad Europea del Atlántico - Santander/ES. Pós graduado em Criminologia pela Faculdade Unyleya. Pós graduado em Psicologia Criminal Forense pelo Instituto Facuminas. Membro do Centre for Criminology Research - University of South Walles. Membro do Laboratório de estudos de Cognição e Justiça - Cogjus.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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