1. Introdução
O sistema processual penal brasileiro há muito carece de algumas reformas. Não é segredo que seu ordenamento tem se mostrado deficiente no que diz respeito à solução dos conflitos da sociedade (STRECK, 2009). A evolução histórica e o estado de coisas em que se encontra nosso país parece acabar por gerar um sistema incapaz de proteger tanto o interesse da sociedade quanto o dos indivíduos — sejam vítimas, sejam ofensores. De fato, observa-se um enorme descompasso entre a postura de repressão da criminalidade a todo custo (CARVALHO, 2006) para alguns (e por alguns), alimentada pela absoluta impunidade de outros (e por outros). Isso decorre, parcialmente, de uma certa incompatibilidade entre a conjuntura do sistema inquisitorial, originalmente trazido na redação do Código de Processo Penal — resultado, que é, de seu tempo, a década de 40, na qual o país vivia o período ditatorial da Era Vargas — e um sistema acusativo, que tende a ser mais compatível com a Constituição de 1988 e os valores mais humanistas daquela que recebe a alcunha de Constituição Cidadã. No afã de resolver excessos trazidos pelo primeiro tipo de desenho, e tentando atualizar o processo penal ao espírito da atualidade representado por nossa Carta Magna, é que se introduz o Juiz de Garantias.
O estabelecimento do Juiz de Garantias não é uma proposta nem recente nem exclusivamente brasileira. O Código de Processo Penal proposto pelo Senado em 2009 (BRASIL, 2009) já previa essa figura, que só viria a constar no ordenamento brasileiro uma década depois. Figuras semelhantes subsistem em países como Chile, França, Itália e Panamá. A ideia subjacente à instituição dessa instância é conferir maior imparcialidade ao sistema. O que se defende é que tal figura contribuiria com a separação entre a função de investigação e julgamento, o que tenderia a diminuir o caráter inquisitorial do processo. Nesse sentido, o instituto, se bem utilizado, pode contribuir para evitar ou minimizar excessos, ampliando o direito de defesa.
Os defensores da figura do juiz de garantia afirmam que a atuação de dois julgadores permite o salutar exercício de duas visões distintas: uma atuante no controle da investigação e uma outra independente averiguando as provas e decidindo o mérito. Os críticos à implementação dessa figura defendem que a participação do juiz a produção da prova seria indispensável para que ele possuísse um entendimento diferenciado do caso, que não seria possível ser atingido pela mera documentação processual.
Neste artigo, analisaremos criticamente a instituição do Juiz de Garantias trazida pela Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019 e os possíveis efeitos que terá sobre o processo penal.
2. O Juiz de Garantias
A Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019 é paradigmática em diversos pontos, mas inova especialmente ao inserir os arts. 3º-A, 3º-B, 3º-C ao Código de Processo Penal, Decreto-Lei nº 3689, de 3 de outubro de 1941, introduzindo a figura do Juiz de Garantias. O propósito do Juiz de Garantias é controlar a legalidade da investigação criminal. Ele decidirá sobre prisão provisória, afastamento de sigilos e procedimentos de busca e apreensão. O ponto fundamental é a separação entre a investigação e a condenação: outro juiz será responsável pelo julgamento da ação. Isso, em tese, confere maior imparcialidade ao processo porque o juiz deixa de estar vinculado a toda instrução anteriormente conduzida. Essa lógica de dois juízes atuarem no processo é há muito defendida na doutrina como mecanismo de garantir a independência da justiça (MENDES, 2013).
Dentre os dispositivos elencados pela supracitada lei, destaca-se o art 3º-A, onde se informar que “O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.” (BRASIL, 2019).
Tal dispositivo ostensivamente faz a opção pelo sistema processual acusatório, o que se coaduna à atual ordem constitucional. É em decorrência dessa escolha que faz sentido a introdução do Juiz de Garantias, eis que ele consiste num mecanismo para se apartar a instrução do inquérito do julgamento propriamente dito.
O instituto do Juiz de Garantias propriamente dito é trabalhado no art. 3º-B da lei:
Art. 3º-B. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente:
Nos seus 13 incisos, o art. 3º-B apresenta as funções típicas do momento pré-processual. Assim, ao juiz do processo caberá a apreciação desse corpo probatório obtido a partir da instrução de um agente independente.
Conforme relatório do Conselho Nacional de Justiça (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020):
Consolida-se a condição do acusado como sujeito do processo penal, titular de direitos e garantias que devem ser tutelados pelo Poder Judiciário, bem como firma-se o papel do magistrado, restrito à observância da legalidade da atividade investigatória, o que representa avanço crucial para a consolidação do modelo acusatório.
O mesmo relatório lembra, ainda, que a imparcialidade defendida pela introdução do Juiz de Garantias é confirmada com subsídios empíricos de pesquisa da lavra de Bernd Schünemann (SCHÜNEMANN, 2012). Segundo ele, a Teoria da Dissonância Cognitiva apontaria que as pessoas buscam manter a harmonia entre conhecimento e opinião por meio de atos involuntários. Assim, um juiz que se debruçou sobre a produção de provas involuntariamente se comprometeria com o conjunto probatório produzindo o que, potencialmente, poderia produzir um julgamento enviesado na tentativa involuntária de se confirmar hipóteses pré-concebidas.
3. Impacto sobre o processo penal e situação atual do Juiz de Garantias
Conforme mencionado anteriormente, o Juiz de Garantias trará impactos no processo penal, destacadamente, quando de uma investigação criminal em que se realizem diligências e provas que requeiram autorização prévia. Assim, o Juiz de Garantias atuará em busca e apreensões, prisões (temporária ou preventiva), audiência de custódia e na condução de provas, podendo, finalmente, trancar a investigação ou receber a denúncia, caso em que outro juiz realizará a instrução e julgamento.
O arts. 3º-A a 3º-F detalham as atribuições e competências do Juiz de Garantias, no entanto, foram suspensos em decisão liminar pelo STF através do ministro Luiz Fux em resposta às ADI 6.298, 6.299, 6.300 e 6305 (STF, 2020).
Em sua decisão o ministro entendeu que o Juiz de Garantias altera a divisão e organização dos serviços judiciários, implicando completa reorganização da justiça criminal sobre a qual apenas o Poder Judiciário (e não os demais poderes) deve cuidar, conforme diz a Carta Maior em art. 96, e causa impactos financeiros relevantes sobre o Poder Judiciário, além da ausência de prévia dotação orçamentária para implementação pela União e Estados, em desconformidade com o art. 169 da Constituição. O ministro finaliza então, entendendo que pela complexidade da matéria faz-se necessário melhores subsídios que indiquem, “acima de qualquer dúvida razoável, os reais impactos do juízo das garantias para os diversos interesses tutelados pela Constituição Federal, incluídos o devido processo legal, a duração razoável do processo e a eficiência da justiça criminal”, concedendo dessa forma a cautelar para suspensão dos arts. 3º-A à 3º-F até que a decisão seja referendada pelo Plenário da Corte Suprema.
Não há previsão para decisão da Corte sobre o Juíz das Garantias. No entanto, foi apresentado parecer preliminar ao novo Código de Processo Penal, Câmara no PL 8405/2010, em que, segundo o art. 819 do referido parecer, “Em cinco anos, o Poder Judiciário, segundo os arts. 96, inciso II, e 169 da Constituição, mediante a realização das necessárias alterações legais e previsões orçamentárias, implementará o juiz das garantias.” (SENADO, 2010)
4. Benefícios ou prejuízos?
Lançando mão de uma analogia, a adoção ou não de um sistema dotado do Juiz de Garantias consistiria naquilo que Hart chamaria de hard case. Independente da posição a que alguém se alinhe, é inegável que um cuidadoso sopesamento de valores deve ser efetuado para que se chegue ao equilíbrio ótimo entre os benefícios e os prejuízos de que decorre tal escolha.
Por um lado, o argumento mais forte defendido pelos favoráveis da figura do juiz de garantia se baseia no princípio da imparcialidade do juiz, verdadeiro pressuposto de validade. Com efeito, parece-nos claro que ao não participar da instrução probatória, o juízo do agente público responsável pela condução do processo tende a ser mais isento. Nesse caso, a atuação das partes parece ser dotada de maior efetividade no sentido que a decisão do juiz tende a depender mais de tal atuação. Por outro lado, os contrários à tese do juiz de garantia defenderão, de forma igualmente razoável, que o que interessa é a verdade material e que, ao abrir mão de trabalhar no inquérito, o juiz passa a ter um conhecimento inferior do processo.
Percebe-se, então, que temos aqui um debate teleológico: ambas as frentes defendem que a finalidade do processo é mais perfeitamente atingida ao se percorrer sua vertente. Ou se dá primazia à isenção do juiz e abre-se uma margem uma convicção talvez menos perfeita, ou se dá primazia ao conhecimento dos fatos, prejudicando um pouco a isenção. Parece-nos claro que a primeira vertente aposta mais no sistema enquanto a segunda mais no agente. Isso porque enquanto os defensores do Juiz de Garantias assumem que o processo dialético é que será a principal fonte da criação de convicção, os contrários a esse sistema defendem que o juiz é que deve ter um conhecimento mais perfeito dos fatos para formar uma convicção mais alinhada aos fatos.
Nesse embate, portanto, parece-nos mais seguro apostar no sistema e evitar o personalismo. Isso porque não pode o jurisdicionado ficar tão à mercê do acaso ao se definir um juiz melhor ou pior preparado, melhor ou pior intencionado. O sistema processual existe também para proteger a sociedade e, portanto, apostar nele parece uma opção mais razoável. Ademais, pode ser argumentado que a crítica de que a não participação do juiz julgador na investigação tenderia a prejudicar o entendimento da causa não deve prosperar porque isso dependeria mais do tipo de prova, da postura do juiz e de profundidade de análise do caso do que de quem de fato decide sobre as questões. Uma possível solução seria o acompanhamento de perto do juiz julgador, mas sem decisão. Seria uma solução que, ao mesmo tempo, teria o benefício da maior isenção associado à permanência — ou até incremento — da qualidade da atividade judicante.
É importante, contudo, levantar uma ressalva de cunho eminentemente prático à instituição do juiz de garantias. Trata-se da questão do equilíbrio das contas públicas, da contratação de magistrados e de sua preparação. Naturalmente, a instituição do Juiz de garantias exigirá mais contratações de magistrados, o que onerará os cofres do erário estadual e federal. Num contexto de crise em que temos vivido, esta não é uma questão que pode ser ignorada, sob pena de se incorrer em um possível benefício que acarrete mais prejuízos em termos da impossibilidade de condução de políticas públicas fundamentais de saúde, educação e segurança pública. Deve-se, assim, realizar estudos prévios muito precisos sobre a viabilidade, sob pena de potencialmente arriscar um sistema que, embora em princípio de boa efetividade, torne-se contraproducente.
5. Conclusão
A instituição do Juiz de Garantias no ordenamento processual penal brasileiro vai ao encontro dos preceitos estabelecidos em nossa Constituição. Ela vai no sentido de aumentar o caráter acusatório do processo, em detrimento do inquisitorial que originalmente fora estabelecido em sua gênese dos anos 40. Por força dessa instituição, aposta-se no sistema processual para que um dos juízes atue somente no inquérito e o outro no processo propriamente dito. Em tese, o segundo juiz seria dotado de maior imparcialidade, o que é uma propriedade fundamental no processo. A desvantagem estratégica apontada em tal modelo é que, em tese, o juiz do processo tenderia a conhecer menos os fatos. Essa desvantagem é relativa porque se por um lado a própria ideia do processo é que o convencimento do juiz se dê preponderantemente pela atuação das partes, por outro ela pode ser mitigado pelo mero acompanhamento e estudo silencioso do juiz do processo na instrução. Por fim, a questão do aumento de gastos públicos deve ser cuidadosamente ponderada.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Comissão de Juristas Responsável pela Elaboração de Anteprojeto de Reforma do Código de Processo Penal. Anteprojeto de Reforma do Código de Processo Penal. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2009. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/182956>. Acesso em: 22 abr. 2021.
BRASIL. Lei Federal Nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Aperfeiçoa a legislação penal e processual penal.. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13964.htm>. Acesso em: 22 abr. 2021.
CARVALHO, Salo de. Criminologia e Transdisciplinaridade. In: GAUER, Ruth M. Chittó (org). Sistema Penal e Violência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p.316.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. A Implantação do juiz das garantias no poder judiciário brasileiro. Junho, 2020. Disponível em:
<https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/06/Estudo-GT-Juiz-das-Garantias-1.pdf>. Acesso em 14 de abril de 2021.
MENDES, Paulo de Sousa. Lições de Direito Processual Penal. Coimbra: Almedina, 2013, p. 111.
SENADO. COMISSÃO ESPECIAL. Parecer ao projeto de lei nº 8045, de 2010, do Senado Federal, que trata do "Código de Processo Penal". Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/56a-legislatura/pl-8045-10-codigo-de-processo-penal/outros-documentos/substitutivo-preliminar-13-04.21>. Acesso em: 24 abr. 2021
SCHÜNEMANN, Bernd. O juiz como um terceiro manipulado no processo penal? Uma confirmação empírica dos efeitos perseverança e correspondência comportamental (Tradução por José Danilo Tavares Lobato). Revista Liberdades, São Paulo, n. 11, p. 30-50, set./dez. 2012.
STF. MEDIDA CAUTELAR: Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.299 DF. Relator: Ministro Luiz Fux. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI6298.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2021.
STRECK, Lenio Luiz. Novo código de processo penal: o problema dos sincretismos de sistema (inquisitorial e acusatório). Revista de informação legislativa, v. 46, n. 183, p. 117, 2009.