O Leviatã em perspectiva: O paradigma do Estado social e as visões de alguns intérpretes do Brasil

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Um breve ensaio acerca do paradigma do Estado Social no Brasil.

O paradigma do Estado Social, que tem seu início atrelado ao fim da 1ª Grande Guerra, é marcado pela tentativa por parte do Estado de assegurar a garantia material dos direitos que no paradigma do Estado Liberal estavam previstos apenas formalmente.

Em virtude da supervalorização do âmbito privado em detrimento do âmbito público, fora registrada uma exploração do homem pelo homem como nunca antes vista. A riqueza aumentada sem precedentes atrelada ao antagonismo entre empregados (explorados) e ricos burgueses (exploradores), além da disputa por mercados consumidores, geraram tensões entre as grandes potências que eclodiram com este grande conflito armado e propiciaram o fortalecimento dos clamores de movimentos sociais – anarquistas, sindicais, trabalhistas – em virtude da insatisfação da população com o descumprimento das promessas do liberais, tais como a Igualdade e a Liberdade. Neste paradigma – que tem como Constituições simbólicas a do México (1917) e a da República de Weimar (1919), além da promessa de garantia material dos direitos, estão assegurados os direitos prestacionais – serviços – onde o Estado passa a ter responsabilidade para a concretização de um ideal de vida digno na sociedade. A relação entre o público e o privado neste momento histórico é também ressignificada. O ideário liberal é posto fora de cena e ocorre a inversão da valoração destes dois âmbitos, se no paradigma anterior havia a predominância da valorização da esfera privada em detrimento da esfera pública, no Estado Social a esfera pública é que obtêm maior valor. Deste modo, o Estado atuará com maior protagonismo em busca da garantia de materialidade dos direitos e terá papel preponderante nos destinos da sociedade, promovendo grandes reformas de cunho social e político. Este paradigma também é marcado pelo fim da distinção entre sociedade civil e sociedade política, fortemente marcado no paradigma do Estado Liberal, ressignificando a democracia. Com isto ocorre a expansão dos direitos políticos: direito ao voto, à candidatura em cargos públicos etc. Desta maneira, com maior participação popular na concepção das Constituições, ocorre a previsão dos direitos de 2ª dimensão (saúde, educação, assistência social, direito do trabalho etc.), as Constituições tendem a ser promulgadas (feitas pelos representantes do povo) e não mais outorgadas (impostas ao povo pelos governantes)

Silvio Romero, um polímata formado na Escola do Recife, foi um ferrenho defensor das ideias de Albert Spencer. Recepcionou no ideário nacional as concepções filosóficas, jurídicas e políticas deste autor. Entre elas estava o Darwinismo Social. Em sua Magnum Opus – “História da literatura brasileira” – apresenta uma concepção da literatura como manifestação cultural, social e política de um povo, não só estético ou artístico, uma espécie de síntese da produção cultural. Faz uso das teorias de Spencer para explicar o nosso país – do ponto de vista sociológico e de modo contraditório, critica a importação de ideias estrangeiras – que a seu ver estariam desgarradas de nossa realidade - ao passo que usufrui delas em suas análises. O uso das teorias de Spencer o faz partir de pontos de vista raciais e biológicos (o meio, a raça e as influências estrangeiras) para explicar o maior desenvolvimento econômico das potências capitalistas de sua época – caindo muitas vezes em uma espécie de racismo biológico. Como muitos darwinistas, criticava os negros, embora fosse abolicionista - sustentado em imperativos evolucionistas da sociedade, que levariam de modo inequívoco ao desenvolvimento econômico e social. O abolicionismo seria um presente da “cultura evoluída” aos negros. Efetua críticas à miscigenação tão frequente em nossas terras, a seu ver, levariam a um atraso biológico e cultural – desta maneira advogava em prol do “branqueamento” da população. Na visão do autor, as análises no Brasil se restringiam ao elemento do estrangeiro, da conformidade ou desconformidade do Brasil às escolas cientificas sociológicas e literárias estrangeiras, desprezando os demais fatores (raça e meio).

A visão extremamente preconceituosa de Silvio Romero pode parecer tenebrosa e obscurantista ao leitor hodierno, todavia no século XIX era considerada rebuscada e científica. Afastando o ideário determinista e darwinista, pouco sobra de autenticidade ao autor, a não ser sua crítica à importação descabida de ideias e a defesa – legítima, mas mal fundamentada (a meu ver) – do abolicionismo. Afastando a perspectiva axiológica a respeito deste autor, resta a importância histórica que obteve, como iremos ver mais a frente, impactando as ideias de outros intelectuais, como Oliveira Viana.

Outro autor que antecede o Estado Social e realiza críticas ao paradigma liberal é Alberto Torres. Contemporâneo de Romero, foi um político e jurista que se dedicou aos escritos políticos e sociológicos. A sua própria trajetória na política o fez um ferrenho crítico do liberalismo, um antiliberal.

Dentre as críticas que este fez ao liberalismo estão: a ausência de sintonia com as instituições tomadas de empréstimo dos modelos constitucionais estrangeiros – visto que não eram aplicadas adequadamente de modo sedimentado em nossa práxis jurídica e social; a diferença entre o Brasil real e o país dividido pelo federalismo de Ruy Barbosa; um duplo erro desta ideologia, que o livre mercado não teve condições de promover a integração social pretendida e alijou o Estado do processo de formação da cidadania (união do país em torno de um projeto nacional comum).

Em seu livro: “A organização nacional”, o autor defende em certa medida o autoritarismo estatal, de forma que o Estado seria um agente de união nacional. Advoga o modelo presidencialista como melhor que o regime parlamentarista, que a seu ver seria sectário, através do interesse de uma elite muito mais preocupada com os próprios interesses do que com um projeto de nação. Defende também um Estado em que o Poder Executivo coordenaria o projeto de nação (formação de uma identidade nacional de cima para baixo). Como já citado, é crítico do federalismo imposto pela Constituição de 1891, apontando que as rixas oligárquicas foram aprofundadas e nada contribuíam para a nação, mas primavam por esfacelá-la com interesses meramente individualistas. Também defende o desenvolvimento agrário como fonte do de desenvolvimento econômico, todavia focando em um projeto de integração da nação, para que o país não continuasse um como um simples exportador de commodities.

Interpreto as posições e proposituras deste autor com um olhar muito mais benéfico do que esbocei sobre Silvio Romero, sua análise sociológica a respeito dos impactos negativos que o ideário liberal (com o federalismo e a importação descabida de instituições) promoveu no país, a meu ver, são completamente condizentes com o que a realidade demonstrava, fato é que tanto Alberto Torres, quanto Silvio Romero contribuíram para a formação do autor que será abordado: Oliveira Viana.

Adentrando aos autores do paradigma do Estado Social, temos Oliveira Viana, um autor que fora reconhecido principalmente por suas obras no campo do Direito do Trabalho (CLT), Direito Sindical. De Silvio Romero, se valeu do culturalismo sociológico, ao passo que se debruça sobre a realidade sociológica brasileira buscando compreendê-la a partir de suas nuances geográficas, étnicas, influências culturais e morais sobre este “caldo cultural”, ele reconhece isto em sua produção, que Romero fora quem o fez se preocupar com os aspectos nacionais. De Alberto Torres, importou a crítica ao liberalismo, importado de maneira desconectada da realidade brasileira, sendo o artefato político liberal vigente no Brasil completamente desconectado da realidade de nossa sociedade, sendo a Constituição (1891) um idealismo (crítica a Ruy Barbosa que, ao ver de Viana, via o Brasil como se fosse a Inglaterra) – algo descolado da identidade nacional.

Em sua Magnum Opus, “Instituições políticas brasileiras” (1949), aborda o conceito de “autoritarismo instrumental”, reconstruindo a história política brasileira e demonstrando que a contrario sensu do que se poderia supor com a retórica liberal, que desde a Independência advogou pela adoção de instituições estrangeiras, esta não foi a história que aconteceu desde nossa colonização. Em sua obra, traz o desenvolvimento do Brasil em dupla perspectiva: sendo centrado em latifúndios e em função de clãs (em torno de oligarquias políticas centradas em si e nos seus próximos), tendo sido este espírito de clã a tônica de nossa história política desde a colonização. Deste modo causa estranheza que se aplique a retórica liberal no Brasil de instituições políticas que não encontrariam raízes na nossa história política. Para Viana, o remédio para isto seria a luta contra tal espírito, que representaria nosso atraso político e impossibilidade de impor o liberalismo. O autor divide o Brasil em real e ideal, o 1º erigido entrono de clãs e o 2º seria provindo da ideologia liberal, que clamava por igualdade, liberdade e propriedade, algo inexistente na realidade.

Compreende que o liberalismo até seria desejável, mas enquanto a sociedade brasileira não fosse liberal, não poderíamos pretendê-lo. Para que a sociedade se tornasse liberal, necessariamente o Estado teria de empreender neste sentido, de maneira forte, centralizada e autoritária. Um dos modos de recuperação da práxis política neste período foram: a lei de alistamento militar obrigatório (Era Vargas), a organização do trabalho e a lei dos acidentes, de modo que a atuação legiferante alterasse a cultura de clãs no Brasil, materializando o Direitos Sociais. Também destaca a importância de coadunação entre as leis e os costumes do país.

É tecida a este autor a crítica de que teria inspirado a Escola Superior de Guerra e consequentemente influenciado não só os projetos de poder da Ditadura Varguista, mas do regime militar a partir de 1964. De fato, suas exposições fundamentam a atuação autoritária do Estado com intuito de atingir supostos fins benéficos, todavia autoritarismo não deixa de sê-lo independentemente da virtude que se busca, deste modo, vejo como descabida a posição do autor, mas concebo-a como de enorme valia histórica e análise sociológica muito assertiva ao abordar a questão dos clãs.

Sérgio Buarque de Holanda foi um grande humanista da história do Brasil. Sua Magnum Opus, “Raízes do Brasil” é um dos clássicos da historiografia nacional. Nesta obra o autor tece sua contribuição a respeito do que constitui o povo brasileiro. Faz uso de um conceito pelo qual ficaria bastante marcado – “homem cordial” – e contrapõe a visão de que o Estado seria uma continuação do espaço familiar, na realidade haveria uma oposição, explicando desde a gênese do Estado no período clássico até as transformações que modificaram a família na sociedade moderna – fatores de produção levaram a tais alterações, seria flagrante que onde a instituição da família é consolidada, a estruturação das instituições tornar-se-iam difíceis. O Brasil seria exemplo disso, os funcionários públicos teriam dificuldade para compreender a separação entre o público e o privado, o funcionário patrimonial se opõe ao funcionário burocrata, sobrepondo as suas vontades sobre o interesse público.

O “homem cordial” é o homem que orienta suas relações com base em fundo emotivo extremamente rico e transbordante, segundo o próprio autor. Todas a suas virtudes adviriam desta predominância do emotivo e através dessa cordialidade o indivíduo mantêm superioridade da sua vida pessoal sobre a vida social, que seria a superação de um medo de solidão. Bom exemplo disso é a pouca importância dada aos sobrenomes comparada a outros países, a religião católica seria de forma mais emotiva e menos ritualista por aqui também. O autor aponta alguns aspectos sobre a atividade estatal e a burocracia, enxerga um grande bacharelismo, consequência do êxito dos positivistas na formação do Estado brasileiro, enxerga a sociedade pautada na domesticalização do público e a sociabilidade apenas aparente, não se tratando de relações orientadas – por exemplo, os indivíduos seriam contra o respeito das leis que eram contrárias às suas vontades. A atividade intelectual seria meramente retórica, como um fim em si mesmo sem alcançar uma finalidade concreta, um conhecimento próprio. Aponta um enorme culto à própria personalidade, o que favoreceu terreno ao positivismo, uma vez que valorizava as ideias ainda que não as refletisse, permitindo seu acolhimento ainda que não fossem viáveis, sendo o caso do liberalismo, que seria de fachada, sem espírito de democracia, para o autor a democracia no Brasil foi “um mal-entendido” uma vez que ao contrário do ocorrido na Europa, no Brasil, uma aristocracia rural semifeudal é que foi utilizada para a perpetuação destas práticas, por aqui também os movimentos reformistas eram apenas aparentes, sendo impostos de cima para baixo. Sergio defende que a simples alfabetização em massa não representaria uma emancipação para o país por si só, tendo que ser acompanhada por outas formas de inclusão, e compreende que a Proclamação da República trouxe para o parlamento uma função pública a ser realizada.

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A análise sociológica deste autor é fascinante, seu conceito “homem cordial” explica muito bem certas facetas o comportamento do brasileiro, de um modo geral, sua crítica de que a democracia foi um mal-entendido, no Brasil, também é muito adequada e diagnostica problemas desde o âmago desta ideia em terras tupiniquins.

Outro autor importante foi Vitor Nunes Leal, em sua obra principal: “Coronelismo, enxada e voto”, inaugura a moderna Ciência Política no Brasil. Sua obra compreende cinco aspectos, sendo eles: o pensar o Coronelismo como um sistema, distinto de um simples mandonismo; a tentativa de superação das dualidades da análise social do Brasil, esboçando uma dialética com diversos pontos de análise; a superação dos determinismos (estipulados por autores já mencionados); restrição metodológica (enfoque da análise é a República Velha) e o uso da pesquisa empírica, valendo-se de estatísticas do censo de 1940. Ocorria uma relação dúbia entre o coronel e seus dependentes: por um lado autoritarismo para a formação dos seus currais eleitorais e nomeação de forças policiais, mas representavam o único ponto de esperança para conseguir empregos e subsistência, para obtenção de serviços essenciais aos municípios. O Coronelismo não seria força do municipalismo, não podendo ser comparados com os líderes de capitanias hereditárias, mas de fato se envolvem nesse sistema por estarem endividados e enfraquecidos.

Muito importante a análise efetuada por este autor acerca do coronelismo, estipulando relação entre o Coronelismo e a política no Brasil da República Velha, demonstrando os impactos causados pela prática do cabresto e como o sistema se materializou sem escapatórias aos políticos da época, impactando e moldando a democracia em nosso país.

Outro grande autor foi Raymundo Faoro. Sua principal obra, “Os donos do poder”, realiza uma análise até o fim da era Vargas. A grande tese da obra é que História brasileira seria mais bem interpretada através da chave da formação e da permanência de um estamento burocrático de natureza patrimonialista, um estamento transportado e herdado dos caracteres de nossa colonização pelos portugueses e este estamento se apoderou do Estado, das suas instituições e dos seus recursos e passou a geri-los de forma patrimonialistas como negócios privados. Critica tanto os liberais quanto os marxistas, que em certo grau aceitariam o patrimonialismo. O patrimonialismo seria herança portuguesa, que não distinguia o erário do fisco e persistiu ao longo de toda a história do Brasil até então. O autor indica que a Proclamação da República veio de cima pra baixo, causada pelo exército e não os populares, semelhante ao golpe de 1930, mudanças não em virtude de movimentos democráticos, mas no próprio estamento burocrático, através da busca por poder de oligarquias que se viam alijadas do cenário político. Indica também que o patrimonialismo pressupõe autoritarismo, não totalitarismo e só poderia se manter em vigor nas Constituições semânticas e nominais, sendo mitigado em Constituições normativas.

A sua chave de leitura da história nacional através do patrimonialismo é muito valiosa. Conforme outros autores já haviam indicado a presença desta característica na realidade social do Brasil, ele especifica e perfaz o caminho histórico desta prática essencialmente constitutiva em nosso país. Complementa, a meu ver, os discursos de Sergio Buarque de Holanda e Vitor Nunes Leal.

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