Resumo: O presente artigo científico visa discutir o uso da Ação de Reclamação como método de controle das decisões proferidas pelos órgãos de segunda instância dos Juizados Especiais, se debatendo o percurso e as razões históricas que motivaram essa designação do instrumento jurisdicional reclamatório, apresentando reflexões sobre as Resoluções editadas pelo Superior Tribunal de Justiça que, ao buscar uma solução para a referida problemática da lacuna recursal criada pela Lei 9.099/95, acabou por gerar outros embaraços com o ordenamento jurídico brasileiro. Partindo-se, assim, de uma pesquisa pautada no uso da metodologia bibliográfica, além da análise jurisprudencial e apontamentos acerca da legislação nacional vinculada ao tema proposto. Tudo isso com a finalidade de averiguar se a atual e vigente Resolução STJ/GP nº 3/2016 encontra fundamento legal e constitucional para sua vigência, assim como, se busca evidenciar qual a solução mais adequada, aplicável ao caso, que atenda acertadamente os interesses dos cidadãos e que respeite o ordenamento jurídico assegurando a adequada prestação jurisdicional no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis.
Palavras-chave: Reclamação. Juizado Especial Cível. Competência.
Sumário: Introdução. 1. Procedimento dos Juizados Especiais Cíveis. 1.1 Fundamento Legal e Organização. 1.2 A Súmula nº 203 do Superior Tribunal de Justiça 2. A Ação de Reclamação. 2.1 Origem histórica e fundamento legal. 2.2 A Reclamação no Superior Tribunal de Justiça. 3. A Reclamação como método revisional de acórdãos proferidos por Turmas Recursais. 3.1 A Resolução nº 12/2009 do Superior Tribunal de Justiça. 3.2 A Resolução STJ/GP nº 3/2016 do Superior Tribunal de Justiça. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O presente artigo busca discutir a competência dos órgãos jurisdicionais para o julgamento da Ação de Reclamação, observada a lacuna existente na lei regulamentadora dos Juizados Especiais Estaduais acerca do controle de suas decisões proferidas nas Turmas Recursais.
O tema foi escolhido a partir de reflexões sobre a tão criticada Resolução nº 03/2016 editada pelo Superior Tribunal de Justiça, que, buscando solucionar problemáticas criadas pela Resolução anterior de 2009, acabou por criar verdadeiro imbróglio na organização judiciária dos Tribunais Estaduais.
Em um primeiro momento se analisa o procedimento dos Juizados Especiais Estaduais, perpassando por seu fundamento legal, forma de organização e natureza jurídica, para melhor se compreender como tal órgão contribui para a coletividade na prestação jurisdicional. Após, são tecidas algumas reflexões sobre o enunciado de súmula nº 203 do Superior Tribunal de Justiça que veda o acesso a tal tribunal, via Recurso Especial, das decisões proferidas pelos órgãos de segundo grau dos juizados, as denominadas Turmas Recursais.
Após, é abordado a Ação de Reclamação, destacando-se a sua origem histórica, idealizada a partir de uma criação jurisprudencial no Supremo Tribunal Federal, e sua posterior previsão no texto Constitucional. Em seguida, são enunciado dados colhidos no Superior Tribunal de Justiça sobre os julgamentos de Ações de Reclamação pela Corte.
Ato contínuo, o estudo une os conceitos trazidos nos dois capítulos anteriores para se tecer reflexões sobre a Reclamação como método de impugnação de decisões proferidas pelas Turmas Recursais Estaduais. Para tanto, analisa-se o contexto histórico de elaboração das Resoluções nº 12/2009 e 03/2016 pelo Superior Tribunal de Justiça na tentativa de solucionar a problemática da lacuna prevista na Lei 9.99/95.
E ao final, conclui-se o presente estudo sopesando todas as informações enunciadas, assim como opiniões divergentes sobre a temática a fim de se extrair qual seria a melhor solução para se dirimir a ausência de previsão de mecanismos de controle das decisões das Turmas Recursais Estaduais à luz de se obter a melhor e mais efetiva prestação jurisdicional pelos órgãos dos Juizados Especiais.
1 PROCEDIMENTO DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS
1.1 Fundamento Legal e Organização
Os Juizados especiais, em que pese já existirem à tempos nos sistema normativo brasileiro, fora inseridos na Constituição apenas em 1988, que em seu art. 98, I, dispõe que deve os entes (União, Estados e Distrito Federal) criar os Juizados Especiais para se viabilizar a conciliação ou julgamento de casos de menor complexidade, mediante rito próprio, mais célere e dinâmico.
O referido artigo constitucional definiu ainda ser possível, nas hipóteses previstas em lei específica, a transação, e ainda, o julgamento de recursos provenientes das decisões de mérito exaradas pelos Juizados por Turmas, que serão compostas por juízes de primeiro grau. Nesse sentido, a segunda instância recursal dos juizados não adentraria na competência dos tribunais, mas sim fruto se sua própria organização em juizados e turmas formados por Juízes.
Assim, em observância a determinação que a Constituição impunha, editou-se a Lei nº 9.099/95, que regulamentava o funcionamento dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais da Justiça Estadual. A referida Lei define em seu Art. 3º que os Juizados Especiais Cíveis tem competência para conciliação, processo e julgamento das causas cíveis de menor complexidade, sobretudo, as causas cujo valor não exceda a quarenta vezes o salário mínimo.
Importante tecer algumas reflexões sobre a natureza jurídica dos Juizados Especiais Cíveis, eis que em que pese tais órgãos possuírem estrutura muitos próximas das varas da justiça comum, esses não se confundem, não se tratando aqui dos juizados de “varas cíveis especializadas”, mas sim de um sistema próprio, segundo o legislador dispôs.
O autor Felippe Borring Rocha (2019, p. 43-45) destaca a natureza distinta dos Juizados, eis que os Juizados Especiais, latu sensu, representam um conjunto estruturado e integrado de órgãos que realizam o primeiro grau (Juizado Especial stricto sensu) e o segundo grau (Turmas Recursais) de jurisdição das causas submissas à Lei 9.099/95. Assim, conclui que os dois graus de jurisdição, em conjunto, fazem parte de uma mesma estrutura judicial.
Destaca também que, em que pese a organização administrativa se assemelhe muito aos órgãos fracionários dos Tribunal de Justiça Estaduais, as Turmas Recursais não os integram. Conforme visto, tanto na Constituição quanto na Lei 9.099/95 definiu que o órgão recursal dos Juizados será formado por juízes de direito, compondo, portanto, as Turmas Recursais uma espécie de varas cíveis especializadas, destinadas apenas para análise em segundo grau das decisões proferida pelos Juizados stricto sensu.
Assim, esse é o panorama geral do fundamento legal e organização judiciária dos Juizados Especiais Cíveis, que se fazem como meios mais acessíveis e céleres de se obter a prestação jurisdicional, principalmente quando se trata de casos mais simples e de pequeno valor econômico.
1.2 A Súmula nº 203 do Superior Tribunal de Justiça
O Superior Tribunal de Justiça, órgão jurisdicional que fora criado com a Constituição de 1988 com o objetivo de salvaguardar matérias de Legislação Federal, para auxiliar no julgamento de suas demandas passou a editar enunciados de súmulas, que são nada além do entendimento jurisprudencial já fixado pelo Tribunal sobre um determinado assunto de cunho repetitivo que assim permita os julgadores se utilizarem da verbete para fundamentar mais facilmente suas decisões, assim como evitar o número exacerbado de recursos que advém dos Tribunais Estaduais e Federais.
Desta feita, na utilização de suas competências de criação de enunciados sumulares, previstas no Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça no Art. 122 e seguintes, a Corte editou em 16/02/1998 a Súmula de nº 203, se utilizando da interpretação do Art. 105, III da Constituição Federal, assim como das Leis nº 7.244/84 e 9.099/95. À época, a redação consignada no verbete era a seguinte: “Não cabe recurso especial contra decisão proferida, nos limites de sua competência, por órgão de segundo grau dos Juizados Especiais”.
Sua edição se deu pela interpretação, pelo Superior Tribunal de Justiça, sobre a literalidade dos artigos previstos da Constituição da República acerca das competências dos Tribunais Superiores, quais sejam o Supremo Tribunal Federal e o próprio STJ. Segundo observaram os ministros, a Carta Federal Brasileira prevê dois recursos extraordinários lato sensu, o Recurso Especial para o Superior Tribunal de Justiça e o Recurso Extraordinário, propriamente dito, para o Supremo Tribunal Federal.
As previsões constitucionais sobre tais recursos possuem disposições diversas, uma vez que, no caso do Recurso Extraordinário ao STF, previsto no Art. 102, III dispõe da seguinte forma: “julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: [...]”. Nesse caso se verifica que as únicas condicionantes à interposição do recurso elencado são meramente: (1) Se tratar de causas decididas em única ou última instância; (2) A decisão recorrida dispor de uma das três hipóteses elencadas nas alíneas do inciso in comento, quais sejam a contrariedade de dispositivo da Constituição; declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição ou; julgar válida lei local contestada em face de lei federal.
De outro lado, no caso do Recurso Especial ao Superior Tribunal de justiça, previsto no Art. 105, III, dispõe a Constituição da seguinte maneira: “julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida: [...]”. Entenderam os Ministros haver aqui taxativamente uma hipótese de restrição ao Recurso, eis que as condicionantes são distintas a do supracitado Recurso Extraordinário.
Como se pode observar acima, as os requisitos dispostos no Art. 105, III para o julgamento de Recurso Especial pelo Superior Tribunal de Justiça são: (1) Se tratar de causas decididas em única ou última instância – aqui a parte que interessa – pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios e; (2) A decisão recorrida dispor de uma das três hipóteses elencadas nas alíneas do inciso in comento, quais sejam a contrariedade tratado ou lei federal, ou sua negativa de vigência; julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face de lei federal; ou que der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.
É possível se extrair do texto contido na norma constitucional que, diferentemente do disposto no Recurso Extraordinário, o Recurso Especial encontra-se explicitamente restringido no que tange o alcance recursal de decisões que seriam aptas a motivar sua interposição. Logo, não basta genericamente se tratar de causas decididas em única ou última instância, tal como ocorre no Art. 102, III da CF, mas também cumpre-se observar que a decisão recorrida deva ter se originado de um Tribunal Regional Federal ou por um Tribunal Estadual (aqui incluído o Tribunal do Distrito Federal e Territórios).
A consequência imediata dessa interpretação é a vedação de acesso ao Superior Tribunal de Justiça via Recurso Especial de decisões que tenham sido originadas por órgãos jurisdicionais, mas que não componentes da estrutura organizacional dos Tribunais Regionais Federais ou Tribunais Estaduais. O exemplo máximo disso são as decisões proferidas por Turmas Recursais, que, como já visto são órgãos revisores das decisões dos Juizados Especiais, formados por juízes, e não desembargadores, logo, não pertencentes à estrutura dos supramencionados Tribunais, mas sim da “primeira instância”.
Desta feita, segundo entendeu o Superior Tribunal de Justiça, com base em tais interpretações, não seria cabível a interposição de Recurso Especial contra decisão proferida por órgão de segundo grau dos Juizados Especiais, eis que, em que pese ser uma decisão colegiada em âmbito recursal (segundo grau), a estrutura dos Juizados Especiais é componente da “primeira instância”, assim estando fora das delimitações impostas pela norma constitucional em seu Art. 105, III.
Na linha dessa mesma interpretação, o Supremo Tribunal Federal editou o Enunciado Sumular nº 640 que possui a seguinte redação: “É cabível recurso extraordinário contra decisão proferida por juiz de primeiro grau nas causas de alçada, ou por turma recursal de juizado especial cível e criminal”. Observa-se que a Constituição, diferentemente do que consignara em Recurso Especial, não restringiu a origem das decisões aptas a se ensejarem o Recurso Extraordinário, sendo possível, portanto, o acesso a jurisdição do Supremo Tribunal Federal quando decisão oriunda de Turma Recursal incidir em qualquer das alíneas do Art. 102, III.
Assim, esse é o cenário de criação do Enunciado de Súmula nº 203 do Superior Tribunal de Justiça, a interpretação dos magistrados sobre o disposto na Constituição Federal resultou na limitação da possibilidade de interposição do Recurso Especial nos casos de jurisdição dos Juizados Especiais. Ressalta-se que essa súmula, conforme já fora acima delineado, foi editada em 16/02/1998, mas teve sua redação alterada em meados de 2002, em um julgamento realizado pela Corte Especial, órgão fracionário do Superior Tribunal de Justiça.
Trata-se do julgamento do AgRg no Ag nº 400.076/BA, ocorrido na sessão de 23/05/02, que deliberou pela alteração da redação anterior, suprimindo a expressão “nos limites de sua competência”, que antes compunha o texto do Enunciado Sumular. Tal revisão se deu levando em consideração que o enunciado anterior, com a expressão “nos limites de sua competência”, abria margem a outra interpretação, distinta da inicialmente pretendida, sobre caber Recurso Especial da decisão de Juizado Especial, se este exorbitar de seu competência.
Assim, a fim de se evitar possível má exegese do enunciado sumular, abrindo-se margem a interpretações diversas, propuseram a referida revisão. E por maioria de votos, foi alterada a verbete sumular nº 203 para suprimir de seu enunciado a expressão “nos limites de sua competência”, consolidando o seguinte texto, que se mantém até os dias atuais: “Não cabe recurso especial contra decisão proferida por órgão de segundo grau dos Juizados Especiais”.
A questão que persiste é, uma vez que a Lei nº 9.099/1995 não estabelece mecanismos de controle externo das decisões dos Juizados Especiais, assim como, a interpretação da Constituição pelo Superior Tribunal de Justiça inviabilizou o acesso via Recurso Especial das decisões oriundas de Juizados, gerou-se uma verdadeira “lacuna” no sistema recursal brasileiro, vez que não existia, portanto, métodos de se garantir a observância da jurisprudência e das sumulas do Superior Tribunal de Justiça, sendo passível, assim, de se gerar decisões que ofendam gravemente o sistema normativo, mas que não sejam impugnáveis.
Assim, visando solucionar essa problemática da lacuna recursal gerada no âmbito das decisões proferidas por órgão jurisdicional de segundo grau dos Juizados Especiais Estaduais, o Superior Tribunal de Justiça editou uma resolução em 2009 que, enquanto não se idealizara as Turmas de Uniformização de Jurisprudência no âmbito dos juizados estaduais, eis que a Lei no 10.259/2001 idealizou para os Juizados Especiais Federais, seria competência do STJ julgar as ações de Reclamação propostas em face das decisões proferidas pelas Turmas Recursais dos Juizados Especiais Cíveis, quando elas violassem a jurisprudência consolidada sobre a interpretação da lei federal ou enunciados sumulares existentes naquela corte.
2 A AÇÃO DE RECLAMAÇÃO
2.1 Origem histórica e fundamento legal
A ação de reclamação, originariamente, é uma criação jurisprudencial pelo Supremo Tribunal Federal resultante de discussões ocorridas por volta dos anos de 1950 pelos magistrados da referida corte constitucional acerca da possibilidade de criação de mecanismos para efetivação de suas decisões, mesmo que não houvesse qualquer previsão legal que os fundamentasse.
O julgamento da Reclamação nº 141 pelo Supremo Tribunal Federal, em 25 de janeiro de 1952, teve papel fundamental na cristalização do instituto como método viável para se garantir a execução e defesa da jurisprudência da Corte. Os ministros, destacadamente o relator Min. Rocha Lagoa e o Min. Orozimbo Nonato teceram relevantes contribuições sobre o cabimento da Reclamação num período que a evasão evidente[1] parece ameaçar a competência da Corte Suprema, sendo esse um potencial “remédio de direito para vindicar o cumprimento fiel das suas sentenças”.
Assim, fora introduzida uma Emenda ao Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal no ano de 1957 acrescentando os artigos 156 a 162 à norma regimental, que disciplinava o instituto da Reclamação no tribunal. Para tanto, os Ministros se utilizaram da chamada teoria dos poderes implícitos, uma vez que a Constituição vigente à época outorgara ao Supremo Tribunal a guarda dos ditames da própria Carta Magna, assim como a competência de editar seu próprio regimento interno[2], e assim, implicitamente, segundo interpretaram os magistrados, lhes permitiriam a idealização de meios para garantir a efetivação das decisões por si proferidas.
A referida Teoria dos Poderes Implícitos, tal qual enuncia Canotilho e Mendes (2013, p. 1730) em sua obra, foi haurida no ensinamento do magistrado norte-americano Marshall, de acordo com a qual, entende que a Constituição, sempre que atribui um poder expresso para determinado fim, confere, de maneira implícita, os meios para alcançá-lo. Nesse sentido, em decorrência de disposição implícita, poder-se-ia o Supremo Tribunal Federal, defensor e intérprete da legislação constitucional, utilizar de seus mecanismos para a efetivação de um mecanismo que garantisse a efetivação de suas decisões, e, por consequência, a guarda dos preceitos Magnos.
Tal disposição foi mantida quando do advento da Constituição de 1967, e a posterior emenda de 1969, que endossaram a competência do Supremo Tribunal Federal de redigir seu próprio regimento. E com a superveniência da Constituição de 1988 as normas de processo passaram a depender de lei, mas os preceitos regimentais dessa natureza foram recepcionados e passaram a ostentar força e eficácia de norma legal.
No mais, a Constituição de 1988 também previu expressamente o instituto da reclamação como meio hábil a se salvaguardar a jurisprudência das Cortes de jurisdição extraordinária, dispondo em seus Artigos 102, I, “l” e 105, I, “f”, a competência, respectivamente, do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça na apreciação da Ação Reclamatória. Ainda, a Lei 8.038/90, que instituía a normas procedimentais para os processos perante o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, também regulamentou o instituto em tais Cortes.
Por fim, o Código de Processo Civil, Lei 13.105/15, dispõe expressamente sobre a Reclamação em seus artigos 988 a 993, definindo o cabimento do instituto para: a) preservar a competência do tribunal; b) garantir a autoridade das decisões do tribunal; c) garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; e d) garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência.
Sobre o tema, durante muitos anos, coexistiram duas inquietações sobre o instituto da Reclamação que foram devidamente solucionados com a edição do novo Código de Processo Civil em 2015, são essas: a) Qual a natureza jurídica da Reclamação?; e b) Quais tribunais detém competência para análise das Reclamações? Tais respostas serão a seguir delineadas.
As discussões sobre a natureza jurídica da reclamação remontam novamente os idos de 1950, em que não se sabia definir ao certo qual natureza se tratava o referido instituto, eis que o mesmo não encontra paralelo em outros países, sendo um mecanismo totalmente distinto e novo, à época, no ordenamento jurídico como um todo. Dessa feira, no seio da jurisprudência, houve oscilações de diversos entendimentos sobre o tema.
Uma das vertentes seria que a Reclamação possuiria natureza administrativa eis que, sua previsão regimental no Supremo Tribunal Federal buscava ordenar e garantir a fidedigna execução de seus próprios julgados, visando, tal como enuncia Rodrigues (2017, p. 419 - 420) “coibir inversões ou tumultos na marcha processual, bem como omissões injustificadas”. No entanto, a ação é instaurada em um tribunal, potencialmente tendo condão de afetar decisões tomadas em outros processos, assim como forma coisa julgada, não restando dúvidas de seu caráter jurisdicional, e não administrativo.
Outra vertente também já verificada na jurisprudência é que a Reclamação possuiria natureza de incidente processual eis que, segundo os defensores da corrente, é um incidente provocado pela parte ou pelo Procurador-Geral, visando que o Supremo Tribunal Federal imponha a sua competência quando usurpada, explícita ou implicitamente, por qualquer tribunal ou juiz. No entanto, tal vertente também não assiste à razão, vez que a Reclamação não se trata necessariamente de procedimento paralelo ou dependente, sendo, inclusive cabível frente a decisões já proferidas. Logo, é autônoma, não incidental.
Uma terceira linha sustenta que a Reclamação possui natureza recursal, sendo esse posicionamento, inclusive, já adotado algumas vezes pelo Superior Tribunal de Justiça no passado, uma vez que a decisão proferida na Reclamação poderia afetar conteúdo jurídico já fixado em decisão proferida. No entanto, não se trata de uma afetação interna, dos mesmos autos e relação jurídica, mas de afetação externa, inaugurando nova relação processual. Assim como não objetiva, em si, a reforma de uma decisão judicial, mas sim a observância da jurisprudência anteriormente existente ou a preservação de sua competência. Não se trata, portanto, de um recurso.
Dessa feita, unindo as conclusões verificadas em cada umas das vertentes, somado ao entendimento entabulado pelo Código de Processo Civil de 2015, a Reclamação possui caráter jurisdicional e não administrativo; é autônoma e não incidental; inaugura nova relação processual, não sendo um recurso. Portanto, conclui-se que a Reclamação tem natureza jurídica de Ação autônoma.
Assim é o entendimento dos autores Alvim (2019, p. 1071 - 1073), Bueno (2019, p. 1260 - 1267), Theodoro Júnior (2015, p. 946 - 950), Marinoni e Mitidiero (2015, p. 919 - 921) e Rodrigues (2017, p. 418 - 422).
Ultrapassado a problemática da natureza jurídica da ação de Reclamação, passa-se, então, a análise do segundo ponto antes controvertido pela doutrina e jurisprudência: Quais tribunais detém competência para análise das Reclamações? Essa pergunta se origina das previsões normativas históricas da Reclamação, eis que durante muitos anos não possuía embasamento legal, apenas jurisprudencial e regimental.
Levando em consideração que até o ano de 1988, quando celebrada a nova Constituição Federal, a Reclamação possuía apenas previsão no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, ou seja, entendia-se que apenas na Corte Suprema que se poderia questionar eventual não observância da autoridade das suas próprias decisões proferidas. Com o advento da Carta Magna de 1988, houve a previsão expressa do cabimento de Reclamação no Supremo Tribunal Federal assim como no Superior Tribunal de Justiça para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões.
Assim, estendendo a competência ao Superior Tribunal de Justiça para também ser possível, por meio do instrumento reclamatório, meio adequado a se viabilizar a efetiva observância da jurisprudência fixada pelo tribunal em suas decisões, quando tratar-se de matéria de legislação federal.
Ocorre que ainda pendia o questionamento: e qual seria o instrumento hábil para se garantir da mesma forma a preservação da competência e garantia da autoridade das decisões dos Tribunais Federais e Estaduais, eis que era plenamente possível ocorrer a observância de decisões que iam de encontro a jurisprudência local. Seria possível se utilizar do mesmo método federal e incluir nas Constituições Estaduais a previsão da Ação de Reclamação nos Estados?
A resposta para essa questão se deu no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2212/CE[3], de relatoria da Min. Ellen Gracie, que ao analisar disposição da Constituição Estadual do Ceará que previa o instituto da Reclamação para se preservar as decisões do tribunal local, definiu não ser essa hipótese de invasão de competência privativa da União para legislar sobre direito processual, eis que a adoção desse instrumento pelos estados está em sintonia com o princípio da simetria, assim como também, encontra-se em consonância com o princípio da efetividade das decisões judiciais, assim, sendo possível os Estados-membros disporem em suas Constituições o instituto.
No entanto, a problemática remanescia quanto aos Tribunais Federais, eis que não se encontram no âmbito de competência dos Estados-membros de modo que não são aptos a serem atingidos por disposições de Constituições Estaduais, assim como, na Constituição Federal não havia disposição da utilização de tal instrumento pelos Tribunais Federais, apenas, como já disposto, pelo Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça.
E novamente o Código de Processo Civil de 2015 buscou solucionar tal problemática, dispondo expressamente em seu art. 988, §1º que “A reclamação pode ser proposta perante qualquer tribunal, e seu julgamento compete ao órgão jurisdicional cuja competência se busca preservar ou cuja autoridade se pretenda garantir”. Assim, abrindo a competência do julgamento de Reclamação a qualquer tribunal, desde que observados seu interesse em preservar a competência do tribunal; ou garantir a autoridade das decisões do tribunal; ou garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; ou garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência.
Esse é o panorama da Ação de Reclamação, um instrumento que desde sua idealização a aproximadamente setenta anos atrás busca preservar os tribunais e suas decisões e entendimentos jurisprudenciais a fim de se garantir a melhor prestação jurisdicional, assim como garantir a correta aplicação do direito a que à justiça recorre.
2.2 A Reclamação no Superior Tribunal de Justiça
Conforme já delineado no subtítulo acima, a Reclamação é uma ação que já se encontra em utilização no Superior Tribunal de Justiça desde 1988, com a previsão constitucional em seu art. 105, I, “f” sobre competir à Corte Superior processar e julgar originariamente a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões.
No mais, o Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça também prevê a regulamentação da Reclamação nos Artigos 187 a 192. Nas disposições ali constantes, trata-se do processamento da Ação do tribunal, que deverá ser dirigida ao Presidente do Tribunal instruída com prova documental, requisito esse taxativo, conforme Art. 988, §2º do Código de Processo Civil, devendo ser autuada e distribuída ao relator, sempre que possível, ou seja, uma vez ultrapassada as primeiras barreiras de verificação dos preenchimentos dos requisitos mínimos de sua proposição.
Ato contínuo o relator deverá requisitar informações da autoridade a quem for imputada a prática do ato impugnado, assim como também determinará a citação o beneficiário da decisão impugnada para ofertar contestação no prazo legal. Poderá ainda, o relator, se necessário, para evitar dano irreparável, determinar a suspensão do processo ou do ato impugnado.
E uma vez julgado procedente a reclamação, o Tribunal que proferiu a decisão impugnada deverá cassar a decisão in comento que lhe afrontou a autoridade de sua jurisprudência ou u determinará medida adequada à preservação de sua competência, como por exemplo, remessa dos autos de uma autoridade jurisdicional para outra.
Apesar de parecer a reclamação um instrumento bastante acessível e atrativo como via de se “modificar” decisões proferidas nos tribunais que aparentemente podem infringir entendimento fixado pelo Superior Tribunal de Justiça em Jurisprudência, a realidade é que a parcela de Reclamações providas é extremamente baixo, haja vista que muitos se utilizam do instrumento como via recursal de decisões que não lhes foram favoráveis nas instâncias de origem e até no STJ.
Segundo dados extraídos do Portal do Superior Tribunal de Justiça a Ação de Reclamação era um instrumento pouco utilizado até o ano de 2009, no entanto a partir de 2010 houve um crescimento exponencial no número de ajuizamentos e julgamento de reclamações por essa Corte, denotando o interesse das partes de impugnar decisões que suspostamente afrontem os ditames jurisprudenciais sagrados pelo Tribunal Superior.
Segundo o relatório estatístico[4] do ano de 2009, ao total foram julgadas 456 Reclamações pelo Superior Tribunal de Justiça, e no ano seguinte esse número quase triplicou, atingindo em 2010 a marca de 1.247 Reclamações julgadas pela Corte. E assim os números foram se multiplicando ano após ano.
No ano de 2011 foram julgadas 2.441 ações reclamatórias, em 2012 subiu para 3.329, em 2013 julgaram-se 4.750, em 2014 alcançou a impressionante marca de 6.947 julgamentos de ações dessa natureza. Se mantendo ainda o elevado número no ano de 2015, ao finalizarem o ano julgando 6.359 Reclamações.
Assim, conclui-se ao analisar os números do Superior Tribunal de Justiça que o instrumento reclamatório era pouco utilizado até o final da década dos anos 2000, no entanto, a partir do ano subsequente a 2009 o número de ajuizamento de ações dessa natureza passou por um imenso incremento, que, como se pôde observar, em cinco anos aumentou aproximadamente em 1.523% (mil quinhentos e vinte e três por cento).
Não obstante a possibilidade de existirem múltiplos fatores para esse incremento massivo no número de ajuizamento de reclamações no Superior Tribunal de Justiça, observa-se que algum fato ocorrido nos anos de 2009/2010 certamente foi uma das causas que motivaram esse gigantesco salto, como por exemplo a edição da Resolução nº 12/2009 pelo STJ, norma que será abordada no capítulo seguinte do presente trabalho.
Em continuidade à análise numérica da Reclamação no Superior Tribunal de Justiça, observou-se que o grande número observado nos anos de 2014/2015 não se repetiu nos anos seguintes, pelo contrário, a partir de 2016 iniciou-se uma queda no ajuizamento e julgamento de tais ações, decaimento considerável, inclusive, a se observar o patamar alcançado nos anos anteriores.
No ano de 2016 a Corte Superior julgou 4.641 reclamações, no ano seguinte, em 2017, o número decaiu para 2.623, em 2018 foram analisadas 2.073 ações dessa natureza. E o número se manteve próximo nos anos seguintes, no patamar de 2.742 reclamações em 2019, e por fim, em 2020, foram analisadas 2.030 ações reclamatórias.
Da mesma maneira que acima delineado, observa-se um movimento no sentido oposto que se havia verificado até os idos da última década, eis que os números de ajuizamentos de Reclamações estavam em um crescente exponencial, mas, a partir de 2016 os números, à contramão dos últimos anos, registraram considerável redução do número de demandas dessa natureza, decaindo aproximadamente 2000 (duas mil) ações.
Nesse sentido, em que pese o Código de Processo Civil de 2015, que efetivamente entrou em vigor em março de 2016, ter ampliado o alcance da Ação Reclamatória, permitindo, como já visto, seu ajuizamento perante qualquer tribunal, observadas as hipóteses delineadas em seu Art. 988, os números de julgamentos reduziram consideravelmente a partir do ano de 2016, denotando que nesse ano possa ter ocorrido algum fato que tenha resultado nesse decaimento, como por exemplo a edição da Resolução STJ/GP nº 3/2016, norma que será também abordada no capítulo seguinte do presente trabalho.
Outro ponto interessante a ser ressaltado é que os últimos dois anos de exercício do Superior Tribunal de Justiça os dados de análise dos processos julgados estão mais detalhados, sendo possível se observar também, além do número de processos distribuídos e julgados, o teor das decisões nas diversas classes processuais. Segundo se extrair dos dados, em 2019, se verifica que, das 2.742 ações de Reclamação julgadas pela Corte Superior, uma parcela diminuta de 10% (dez por cento), totalizando 264 ações, foram procedentes, e, de outro lado, se observa que somatiza 68% (sessenta e oito por cento) o número de ações que foram não conhecidas ou julgadas improcedentes, quantitativo consideravelmente elevado.
A diferença entre o número de Reclamações procedentes e improcedentes torna-se ainda maior quando se analisa os dados do exercício do ano de 2020, que, das 2.030 reclamações julgadas pelo Superior Tribunal de Justiça apenas quarenta e nove foram concedidas, correspondendo ao valor ínfimo de 2% (dois por cento) do total de ações reclamatórias ajuizadas. De outro lado, 70% (setenta por cento) foram julgadas improcedentes ou não conhecidas.
Assim, esse é o cenário da Ação de Reclamação no Superior Tribunal de Justiça, ação que durante a década passada encontrou momentos de imensa popularização, crescendo exponencialmente o número de ajuizamentos até 2015, e, então, a partir daí enfrentando uma queda gradativa de sua utilização. Acredita-se que os eventos ocorridos na normatização interna do STJ ocorrida em 2009 e posteriormente em 2016 tiveram papel fundamental nos números apresentados, normas essa que serão trabalhadas no capítulo seguinte.
3 A RECLAMAÇÃO COMO MÉTODO REVISIONAL DE ACÓRDÃOS PROFERIDOS POR TURMAS RECURSAIS
Após desenvolvidos nos dois capítulos anteriores o Procedimento dos Juizados Especiais Estaduais, assim como o rito da ação de Reclamação, passa-se a trabalhar no presente título a problemática, já enunciada, da lacuna recursal gerada no âmbito das decisões proferidas por órgão jurisdicional de segundo grau dos Juizados Especiais Estaduais.
Como visto, a Lei nº 9.099/1995 não estabelece mecanismos de controle externo das decisões dos Juizados Especiais, assim como, a interpretação da Constituição pelo Superior Tribunal de Justiça inviabilizou o acesso via Recurso Especial com a edição do Enunciado Sumular nº 203. Assim, decisões proferidas pelas Turmas Recursais, que violem qualquer preceito de Lei Federal ou que desautorizem decisões emanadas pelo STJ em entendimentos lá pacificados não seriam atacáveis, tornando-as hígidas, em que pese a grande incorreção da prestação jurisdicional.
No âmbito Federal, os legisladores tiveram o cuidado de prever na Lei nº 10.259/2001, que dispõe sobre a instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, a criação de uma Turma de Uniformização de Jurisprudência, que, tal como enuncia o Art. 14 da referida Lei, caberá “pedido de uniformização de interpretação de lei federal quando houver divergência entre decisões sobre questões de direito material proferidas por Turmas Recursais na interpretação da lei”. Assim, dispondo de instrumento hábil a se impugnar decisão que porventura contrarie decisão do Superior Tribunal de Justiça.
Da mesma maneira, semelhante sistemática foi adotada quando da instituição do Juizado Especial da Fazenda Pública, por meio da Lei nº 12.153/2009, que também previu expressamente a criação de Turma de Uniformização em seu art. 18 para “uniformização de interpretação de lei quando houver divergência entre decisões proferidas por Turmas Recursais sobre questões de direito material”.
Previu ainda a referida Lei método de acesso ao Superior Tribunal de Justiça, quando, por exemplo, nas hipóteses que o julgamento do pedido fundado em divergência de Turma do mesmo estado contrarie enunciado de Súmula da Corte Superior, a parte interessada poderá provoca-lo a se manifestar. Assim como também, quando Turmas de diferentes Estados derem a lei federal interpretações divergentes, ou quando a decisão proferida estiver em contrariedade com súmula do Superior Tribunal de Justiça, o pedido será por este julgado.
Nessa toada, verifica-se que em 2009 os Juizados Especiais Federais e da Fazenda Pública já ostentavam da competência conferida em lei sobre a criação de Turmas de Uniformização para dirimir eventuais violações a norma de Lei federal ou contrariedades a entendimentos firmados pelo Superior Tribunal de Justiça. No entanto, no caso dos Juizados Especiais Estaduais ainda não existia qualquer mecanismo de defesa das decisões teratológicas que porventura eram proferidas por Turmas Recursais.
Era evidente que se necessitava da regulamentação de um instrumento pelo qual se pudesse contestar eventual decisão que violasse os preceitos do Superior Tribunal de Justiça, haja vista que acaso não existente nenhum método de impugnação, se estaria endossando a manutenção de decisões contrárias a Jurisprudência do STJ, tribunal que constitucionalmente lhe fora designado o dever de guarda e uniformização da legislação federal.
E assim, o Superior Tribunal de Justiça regulou pela Resolução nº 12/2009 o cabimento de Reclamação à própria Corte, das decisões proferidas por Turmas Recursais Estaduais que violem a jurisprudência consolidada sobre a interpretação da lei federal existente naquela corte, enquanto não fosse criada a Turma de Uniformização para os Juizados Especiais Estaduais. Ocorre que a referida resolução fora durante anos duramente criticada, inclusive pelos próprios ministros do Superior Tribunal de Justiça, tal tema será abordado em minúcias no subtítulo a seguir.
3.1 A Resolução nº 12/2009 do Superior Tribunal de Justiça
O Supremo Tribunal Federal ao analisar em 26/08/2009 os Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário nº 571.572 / BA, de relatoria da Min. Ellen Gracie, processo esse submetido ao Rito da Repercussão Geral, ponderou que, conforme orientado pela Carta Magna de 1988, o Superior Tribunal de Justiça teria a missão de uniformizar a interpretação da legislação infraconstitucional, no entanto, conforme se observara à época, era inadmissível a interposição de recurso especial contra as decisões proferidas pelas turmas recursais dos juizados especiais estaduais.
Assim, segundo enuncia a relatora do referido Recurso, a inexistência de órgão uniformizador no âmbito dos juizados estaduais inviabilizaria a aplicação da jurisprudência do STJ em tais órgãos jurisdicionais. Desta feita, essa lacuna recursal existente no âmbito dos juizados estaduais gerava riscos de se tolerar a fixação de decisões divergentes quanto à interpretação da legislação federal, gerando insegurança jurídica e uma prestação jurisdicional incompleta, em decorrência da inexistência de qualquer outro meio eficaz para resolvê-la.
Para tanto, o tribunal, por maioria, acompanhou o voto da relatora Min. Ellen Gracie para acolher os Embargos de Declaração para admitir o cabimento, em caráter excepcional, do instrumento reclamatório para dirimir eventuais violações às Lei Federal ou à jurisprudência perante o Superior Tribunal de Justiça das decisões provenientes das Turma Recursais estaduais, enquanto não idealizada em Lei a criação das Turmas de Uniformização de tais órgãos estaduais.
A decisão claramente causou espanto na comunidade jurídica, sobretudo aos Ministros do Superior Tribunal de Justiça, que agora passariam a analisar um conjunto de ações de Reclamação oriundas das Turmas Recursais estaduais. Então, visando regular o recebimento das referidas ações a Corte Superior editou a Resolução nº 12 de 14 de dezembro de 2009 que dispunha sobre o processamento das reclamações destinadas a dirimir divergência entre acórdão prolatado por turma recursal estadual e a jurisprudência do STJ.
Segundo enuncia Rodrigues (2017, p 426 - 427) a doutrina à época tecia grandes críticas a referida resolução editada pelo Tribunal, uma vez que, segundo entendiam, a norma regimental em seu Art. 1º fixava prazo de quinze dias, contados da ciência pela parte, da decisão impugnada oriunda da Turma Recursal, para se ajuizar a ação de Reclamação. O que tornava o referido instrumento consideravelmente próximo de um sucedâneo recursal, o que seria inadmissível segundo a própria natureza jurídica da reclamação, conforme já fora delineado nos capítulos acima. No entanto, segundo o próprio entendimento jurisprudencial do STJ[5], inexiste qualquer irregularidade a Resolução nesse aspecto, eis tratam-se de institutos distintos a Reclamação constitucional prevista no Regimento Interno e a Reclamação idealizada na referida Resolução nº12/2009, não devendo essa segunda se subsumir aos preceitos da primeira, razão pela qual seria possível essa estipular prazo para seu ajuizamento, enquanto aquela não possua tal previsão de prazo.
Outra crítica apontada seria que o Art. 6º que previa a irrecorribilidade das decisões proferidas pelo relator da demanda, que da mesma forma que a argumentação anterior, a Corte superior defendia que tal instrumento reclamatório tratava-se de um procedimento próprio, não submetido ao crivo do Agravo Interno ou Regimental previsto no Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça.
Há de comentar brevemente o posicionamento exposto pelo autor Marco Antônio Rodrigues em sua obra, que entende que para solucionar tal problemática da primeira crítica apontada pelos doutrinadores sobre o suposto caráter recursal da reclamação prevista na Resolução nº 12/2009, dever-se-ia admitir a interposição de Recurso Especial ao Superior Tribunal de Justiça, por meio de interpretação ampliativa do Art. 105, III, da Constituição Federal, nos casos das decisões proferidas por Turma Recursais Estaduais.
Ocorre que tal medida é inviável, eis que, para tanto, conforme já enunciado no capítulo que comenta a criação da Súmula nº 203 pelo Superior Tribunal de Justiça, não basta interpretação ampliativa da norma que regula o Recurso Especial, eis que essa restringe taxativamente quais são os tribunais os quais as decisões seriam impugnáveis, sendo esses os Tribunais Regionais Federais ou Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios. As Turmas Recursais são órgãos componentes do primeiro grau de jurisdição, e não à toa, são compostas por Juízes, e não Desembargadores. Logo, não se trata de ausência de interpretação extensiva, e sim, da própria dinâmica da organização judiciária do Brasil que inviabiliza tal interposição com base apenas na Constituição. O melhor método, como será comentado ao final na conclusão do presente trabalho, seria a previsão legal, idealizada por legislador federal, de instrumentos internos de impugnação das decisões proferidas pelas Turmas Recursais Estaduais, tais como Turmas de Uniformização, e das decisões proferidas por esses órgãos, quando violadas normais federais ou preceitos sumulares ou jurisprudenciais do Superior Tribunal de Justiça, ser cabível a interposição de Recurso Especial, tal como ocorre nos Juizados Especiais da Fazenda Pública, regulados pela Lei nº 12.153/2009.
Ultrapassado as críticas observadas pela doutrina, denota-se, portanto, que o regulamento da Ação de reclamação pelo Superior Tribunal de Justiça, da maneira como foi definida pela Resolução nº 12/2009, claramente não coadunava com importantes preceitos do próprio regimento interno, assim como também, como o advento do Código de Processo Civil de 2015, permanecendo até lá como um verdadeiro instrumento jurídico exótico, mas, solucionava – provisoriamente – a questão da impugnação dos julgados provenientes de Turmas recursais que iam de encontram com os preceitos federais e a jurisprudência da Corte Superior.
Assim, uma vez regulamentado na Resolução nº 12/2009, a possibilidade de se alcançar, via Ação de Reclamação, o Superior Tribunal de Justiça, as partes que haviam observado a afronta à autoridade da jurisprudência ou violação de normas federais nas decisões de seus processos oriundos de Turmas Recursais, certamente se poderia observar que o número de interposições, e consequentemente julgamentos, pela Corte Superior aumentaria consideravelmente.
E conforme fora demonstrado no capítulo anterior, no ano de 2009 o Superior Tribunal de Justiça havia julgado um total de 456 Reclamações, e nos anos seguintes, esse número se multiplicou exponencialmente, atingindo em 2015 um total de 6.359 julgamentos pela Corte. Houve um incremento, no período de cinco anos, de aproximadamente em 1.523% (mil quinhentos e vinte e três por cento) no número de demandas analisadas.
Resta claro que, dentre outros fatores, a Resolução nº 12/2009 teve papel fundamental na popularização do instrumento da Reclamação, assim como no grande incremento do número de ajuizamentos e julgamentos da classe processual pelo Superior Tribunal de Justiça, crescimento esse que fora barrado pelo advento do Código de Processo Civil de 2015, assim como pela Resolução STJ/GP nº 3/2016, que revogou a resolução de 2009, e modificou a competência do julgamento das reclamações. Tal norma será detalhadamente delineada no próximo tópico.
3.2 A Resolução STJ/GP nº 3/2016 do Superior Tribunal de Justiça
Na esteira do advento do Código de Processo Civil de 2015 e as claras incongruências que a superada Resolução nº 12/2009 tinha com seu texto legal, o Superior Tribunal de Justiça em 07 de abril de 2016 editou a também contestada Resolução STJ/GP nº 3, que dispõe sobre a competência para processar e julgar as Reclamações destinadas a dirimir divergência entre acórdão prolatado por turma recursal estadual ou do Distrito Federal e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
Tal resolução originou-se das discussões trazidas pela Corte Especial na Questão de Ordem proferida nos autos do Agravo Regimental na Reclamação nº 18.506/SP, na qual o Min. Luis Felipe Salomão[6] teceu reflexões sobre a Resolução 12/2009, e sobre o caráter supostamente temporário que essa teria, eis que a competência do STJ duraria apenas enquanto não criadas as Turmas de Uniformização no âmbito dos Juizados Especiais Estaduais.
O Ministro destacou em seu voto que as Reclamações poderiam ser ajuizadas, segundo tal Resolução, por qualquer pessoa, mesmo que não tenha composto incialmente a relação jurídica que ensejou a decisão contestada. Tal construto, foi idealizado para se evitar a lesão de qualquer pessoa que tenha sido afetada por decisão proferida, no entanto, atingira objetivo diverso do pretendido, eis que 70% (setenta por cento) dos ajuizamentos de reclamações, à época, foram feitas por pessoas jurídicas, e não pelo cidadão comum a quem se objetivara proteger no âmbito do juizado especial estadual.
Logo, por tais apontamentos, não se haveria razão de subsistir tal norma que há muito afrontava os ditames legais e inundava o Superior Tribunal de Justiça com grandes quantitativos de ajuizamentos de Reclamações. Assim, consideraram que a Emenda Regimental nº 22-STJ de 16/03/2016, que adequara o Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça ao Código de Processo Civil de 2015, revogara a Resolução nº 12/2009.
Ocorre que, com tal revogação, se retornaria ao status quo ante no qual as decisões proferidas por Turmas Recursais dos Juizados Estaduais não estariam submetidas a qualquer controle de observância das normas federais e jurisprudência do STJ. Dessa feita, como já enunciado acima, a Corte Superior editou a Resolução STJ/GP nº 3 em 07 de abril de 2016, regulamentando novamente a questão das reclamações contra acórdãos prolatados por Turmas Recursais Estaduais, mas, em observância à égide do Código de Processo Civil de 2015.
A referida Lei em seu Art. 1º define que caberá às Câmaras Reunidas ou à Seção Especializada dos Tribunais de Justiça a competência para processar e julgar as Reclamações destinadas a dirimir divergência entre acórdão prolatado por Turma Recursal Estadual e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, consolidada em incidente de assunção de competência e de resolução de demandas repetitivas, em julgamento de recurso especial repetitivo e em enunciados das Súmulas do STJ, bem como para garantir a observância de precedentes.
Ou seja, a nova resolução define que a competência para se julgar as Reclamações, antes analisadas pelo Superior Tribunal de Justiça, será das Câmaras Reunidas ou à Seção Especializada dos Tribunais de Justiça dos estados. Trata-se de um nítido deslocamento de competência da Corte Superior para os Tribunais locais.
A resolução encontrou embasamento em tal deslocamento na disposição explícita que o Código de Processo Civil de 2015 permite o ajuizamento de Reclamação perante qualquer tribunal, conforme Art. 988, §1º, encerrando, conforme enunciado nos capítulos acima, qualquer discussão que havia sobre a competência de os julgamentos de reclamações serem restritos apenas ao Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal.
Analisando-se então a linha do tempo traçada no capítulo anterior sobre o número de reclamações ajuizadas e julgadas pelo Superior Tribunal de Justiça, o referido deslocamento de competência determinado pela Resolução STJ/GP nº 3/2016 parece ter influenciado diretamente no decaimento considerável de reclamações no STJ. Uma vez que, de 2016 em diante, quando já publicada a resolução, os números reduziram de 6.359 ações julgadas para 2.030, no ano anterior, em 2020.
Dessa forma, observando o hiato que o legislador federal insiste em manter quando da solução da problemática do controle das decisões proferidas pelas Turmas Recursais dos Juizados Especiais Estaduais, a Resolução STJ/GP nº 3/2016 parece ser a mais próxima realidade de se alcançar a prestação jurisdicional pelas partes que se sentem lesadas por decisões das Turmas Recursais que não observam as normas federais e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em que pese a referida norma ser alvo também de diversas críticas e inconsistências com o ordenamento jurídico pátrio, as quais merecem ser delineadas.
Os autores Chini e Rocha (2018) em sua obra destacam a antinomia existente entre a referida Resolução STJ/GP nº 3/2016 e o ordenamento jurídico, uma vez que, em primeiro lugar, observam que a norma vai de encontro ao disposto no Art. 988, §1º do Código de Processo Civil de 2015, eis que esse prevê que a reclamação pode ser proposta perante qualquer tribunal, e seu julgamento compete ao órgão jurisdicional cuja competência se busca preservar ou cuja autoridade se pretenda garantir.
A norma disposta na Lei Processual fixa como órgão competente para julgar a reclamação aquele cuja competência se busca preservar. Ora, o objetivo das reclamações ajuizadas com base em afrontas à legislação federal, assim como as que violem disposto de enunciados sumulares, jurisprudência consolidada em incidente de assunção de competência, resolução de demandas repetitivas, em julgamento de recurso especial repetitivo, bem como para garantir a observância de precedentes, buscam preservar justamente os entendimentos do próprio Superior Tribunal de Justiça.
Assim, verifica-se que as reclamações que visem impugnar entendimento fixado pelo próprio Tribunal Estadual devem ali ser ajuizadas, pois assim o Art. 988, §1º do CPC dispôs. No entanto, quando o objetivo da reclamação alcança a garantia e observância de jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, assim como se busque impugnar decisão que não observara Lei Federal, no âmbito dos Juizados Especiais Estaduais, parece inaugurar a competência da Corte Superior para dirimir tais questões e assim se pronunciar em última palavra.
Além do mais, enunciam ainda os autores Chini e Rocha (2018), a delegação, com o consequente deslocamento de competência do Superior Tribunal de Justiça para as Câmaras Reunidas ou à Seção Especializada dos Tribunais de Justiça careceria também de fundamento constitucional, por violação de competência de matéria privativa de Lei Federal.
Segundo entendem os autores, o Superior Tribunal de Justiça ao definir a competência de julgamento das Reclamações resultantes de decisões que impugnam acórdãos de Turmas Recursais Estaduais para as Câmaras Reunidas ou à Seção Especializada dos Tribunais de Justiça, estaria atuando além de suas competências, vez que, em que pese a Corte Superior detenha dentre suas atribuições a possibilidade de reger sua própria organização judiciária, tal qual se verifica no art. 96, I, a, da CF, não se abrange nessas atribuições a possibilidade de interferir nas organizações judiciárias dos Estados.
No mais, tal fixação de competência, entendem os autores, tratar-se-ia de definição de competência judicial, matéria eminentemente processual e de regulamentação privativa do Congresso Nacional, tal qual se verifica no disposto do Art. 22, I, da Constituição Federal. Assim, tendo atuado o Superior Tribunal de Justiça muito além de suas competências, razão pela qual a referida resolução parece carecer de constitucionalidade.
Assim, esse é o atual panorama enfrentado pelas partes que possuem ações ajuizadas perante os Juizados Especiais Estaduais do Brasil. Quando proferido acórdão pela Turma Recursal, o método de controle das decisões via ação de reclamação está sendo realizado pelas Câmaras Reunidas Seção Especializada dos Tribunais de Justiça, por força da ainda vigente e questionável Resolução STJ/GP nº 3/2016.
CONCLUSÃO
Por fim, em conclusão do exposto, verifica-se que a problemática criada pela Lei 9.099/95 quando da regulamentação dos Juizados Especiais Estaduais sobre a omissão de, no determinado órgão jurisdicional, não haver mecanismos de controle das decisões proferidas pelo colegiado de juízes de direito que compõem o segundo grau de jurisdição, qual seja as Turmas Recursais.
A construção da Constituição Federal, como visto no início do presente trabalho, sobre os Recursos de natureza Extraordinária lato sensu foi, também, de extrema importância para se alcançar a problemática aqui abordada. O constituinte originário fixou no dispositivo que se trata do Recurso Extraordinário stricto sensu ao Supremo Tribunal Federal seu cabimento para atacar, genericamente, decisões que violem quaisquer das alíneas ali apontadas, não importando de qual tribunal tenha sido exarada a referida decisão guerreada pela via recursal.
No entanto, nos artigos seguintes, na mesma Constituição Federal, se fora fixado o cabimento do Recurso Especial ao Superior Tribunal de Justiça de decisões que também violem quaisquer das alíneas apontadas pelo referido artigo, mas com uma diferença em seu dispositivo em relação ao Recurso Extraordinário, que faz toda a diferença no presente caso, a origem das causas decididas impugnáveis pelo supracitado recurso foram taxativamente restringidas, sendo possível sua interposição apenas de decisões exaradas pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios.
Resta claro a distinção dos dois dispositivos, e, não à toa, os referidos Tribunais reforçaram em Enunciados Sumulares tal interpretação da Constituição Federal, demostrando, de um lado, o cabimento de Recurso Extraordinário contra decisão contra decisão proferida por juiz de primeiro grau nas causas de alçada, ou por turma recursal de juizado especial cível e criminal, tal qual enuncia a Verbete de Súmula nº 640 do STF. E, de outro lado, se observa o não cabimento de recurso especial contra decisão proferida por órgão de segundo grau dos Juizados Especiais, conforme a Súmula nº 203 do STJ.
Portanto, a soma das duas causas supracitadas, quais sejam a ausência de previsão em Lei regulamentadora de mecanismos de controle das decisões proferidas pelos órgãos de segundo grau dos Juizados Especiais, assim como a impossibilidade de se utilizar o Recurso Especial para atacar decisões que violem matéria de competência do Superior Tribunal de Justiça, quando proferidas por órgãos não listados no dispositivo Constitucional, resultou no vácuo recursal enfrentado pelos jurisdicionados que buscam a boa prestação jurisdicional nos órgãos regidos pela Lei 9.099/95.
E conforme observado, as tentativas de se solucionar tal problemática, inauguradas com o julgamento dos Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário nº 571.572 / BA, sucedido pela edição da Resolução nº 12/2009, que futuramente com o advento do Código de Processo Civil restara revogada, sendo, para tanto, editada a derradeira Resolução STJ/GP nº 3/2016, de uma forma ou de outra, se mostram incompatíveis com o ordenamento jurídico.
O julgado do Supremo Tribunal Federal, em 2009, buscou, sobretudo, a proteção dos interesses dos cidadãos e a garantia da boa prestação jurisdicional, ao permitir o ajuizamento da ação de Reclamação perante o Superior Tribunal de Justiça como via de se garantir o controle das decisões proferidas pelas Turmas Recursais que porventura estivem em desacordo com legislação federal ou jurisprudência da Corte Superior. No entanto, conforme foi evidenciado em tal assentada, que se tratava esse de um remédio temporário para a solução da problemática enquanto o Legislador não previa um órgão de Uniformização de Jurisprudência no âmbito dos Juizados Estaduais, tal como ocorrido com os Juizados Federais e da Fazenda Pública.
A regulamentação das Reclamações no Superior Tribunal de Justiça como via de dirimir divergência entre acórdão prolatado por turma recursal estadual e a Corte Superior, por meio da Resolução nº 12/2009, trouxe consigo algumas inconsistências apontadas pela doutrina, sobre o possível caráter recursal que a referida ação autônoma passaria a ter, eis que estipulava prazo para seu ajuizamento. Assim como, trouxe também um problema logístico para o Superior Tribunal de Justiça, vez que, conforme enunciado, tal resolução foi responsável pelo incremento em 1.523% (mil quinhentos e vinte e três por cento) do número de reclamações julgadas.
Com o avento da nova Lei processual de 2015, o resultado problemático ainda persistiu, no entanto, alterando-se os fatores que o compõem. A revogação da Resolução anterior, e a edição da nova Resolução carregou consigo a criação de um cenário teratológico, que persiste até os dias atuais. O Superior Tribunal de Justiça, por meio de instrumento regulatório, descolocou a sua competência de julgamento de Reclamações oriundas de Juizados para as Câmaras Reunidas ou Seção Especializada dos Tribunais de Justiça dos estados.
Tal instrumento certamente afronta disposição constitucional, por violar a competência legislativa para legislar sobre direito processual, tal qual enuncia o art. 22, I, da CF, assim como também afronta dispositivo de norma legal federal, eis que o Código de Processo Civil regula a competência para julgamento da reclamação perante o juízo a cuja competência se busca preservar ou cuja autoridade se pretenda garantir, conforme se consigna no art. 988, § 1º.
Não se nega que é muito difícil buscar sanar certas lacunas ou vácuos que o legislador deixara na lei, sobretudo quando esse, mesmo com o esforço da comunidade, até os dias atuais se mantém em mora na solução da problemática, se utilizando o judiciário apenas de instrumentos regulatórios que regem seu próprio regimento interno e estrutura judiciária. No entanto, fazê-lo de modo a afrontar um conjunto de dispositivos, de natureza legal e constitucional, não parece ser o meio mais idôneo, ainda mais sendo fruto do órgão a que a Carta Magna designa como guardião das matérias de Lei Federal.
A melhor maneira de se solucionar a problemática desenhada no presente trabalho é, como apontado pelo Min. Luis Felipe Salomão no julgamento do já citado Agravo Regimental na Reclamação nº 18.506/SP, a pressão pelos cidadãos e pelo próprio Superior Tribunal de Justiça aos Legisladores, para assim se criar a Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais dos Estados e do Distrito Federal, seguindo o modelo da Lei n. 10.259/2001, que regula os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, consubstanciando essa a solução definitiva para o problema, vez que não só garante a uniformização da jurisprudência, mas também se assegura a efetiva prestação jurisdicional aos cidadãos que ao Poder Judiciário recorrem para solucionar suas demandas.
REFERÊNCIAS
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[1] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Reclamação nº 141/SP, reclamante: RITA DE MEIRELLES CINTRA E OUTRO; reclamado: ESPÓLIO DE LUCINDA SOUZA MEIRELLES E OUTROS – Rel. Min. Rocha Lagoa. Brasília, julgado em 25 jan. 1952.
[2] “Compete aos tribunais: [...] II – elaborar seus Regimentos Internos e organizar os serviços auxiliares, provendo-lhes os cargos na forma da lei; e bem assim propor ao Poder Legislativo competente a criação ou a extinção de cargos e a fixação dos respectivos vencimentos”
[3] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.212/CE, requerente: GOVERNADOR DO ESTADO DO CEARÁ – Rel. Min. Ellen Gracie. Brasília, julgado em 02 out. 2003.
[4] Relatório estatístico extraído do Portal do Superior Tribunal de Justiça disponível em: https://www.stj.jus.br/webstj/Processo/Boletim/sumario.asp
[5] BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental na Reclamação nº 3.700/RS, agravante: ILDO RIBEIRO DA SILVA; reclamado: PRIMEIRA TURMA RECURSAL DO JUIZADO ESPECIAL CÍVEL DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL – Rel. Min. João Otávio de Noronha. Brasília, julgado em 22 jun. 2011. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno na Reclamação nº 8.853/PB, agravante: TELEMAR NORTE LESTE S/A; agravado: EDILEUZA VITAL CÂNDIDO – Rel. Min. Gurgel de Faria. Brasília, julgado em 26 out. 2016.
[6] BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental na Reclamação nº 18.506/SP, agravante: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL; agravado: BANCO BRADESCO FINANCIAMENTOS S.A; reclamado: PRIMEIRA TURMA CÍVEL, CRIMINAL E FAZENDA DO COLÉGIO RECURSAL DE AMERICANA – SP – Rel. Min. Raul Araújo. Brasília, julgado em 06 abr. 2016.