É sabido que o microssistema de tutela coletiva é constituído por uma série de diplomas legislativos aptos a conferir a essa forma de proteção de direitos, uma maior densidade, de modo a evitar que ocorram lacunas na aplicação das regras e institutos que regem o tema.
O microssistema da tutela coletiva é o conjunto formado pelas normas processuais, materiais e heterotópicas (sendo estas entendidas como normas de direito material previstas em diplomas processuais e normas de direito processual em diplomas materiais) sobre o processo coletivo nas diversas normas jurídicas positivadas em nosso ordenamento. A respeito da definição do microssistema da tutela coletiva, Fabrício Rocha Bastos ensina que: “Estas normas jurídicas disseminadas formam um conjunto (ainda que de maneira informal, sem a sistematização em um único diploma legislativo) de regras jurídicas que regulamentam a tutela coletiva.”[1]
Entre os diplomas normativos que formam o microssistema, há o Código de Proteção de Defesa do Consumidor e a Lei de Ação Civil Pública. Estas duas legislações formam o arcabouço substancial da tutela coletiva, por causa das normas de ambas legislações que se comunicam entre si. No Código de Proteçâo e Defesa do Consumidor, por exemplo, o artigo 90 determina a aplicação das normas ínsitas na Lei de Ação Civil Pública:
Art. 21. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor. (Incluído Lei nº 8.078, de 1990).
Da leitura destes dois artigos, conclui-se que a LACP determina a aplicação das normas do CDC nas Ações Civis Públicas em geral, e o CDC faz uma remissão a aplicação das normas da LACP às ações coletivas consumeristas. Desta forma, verifica-se a ocorrência do chamado “diálogo de fontes”, normalmente encontrado em normas de direito material. Assim, reconhece-se o CDC como o agente unificador e harmonizador do microssistema coletivo, na medida em que esse diploma promoveu verdadeira integração e sistematização com a LACP, especialmente pela ligação entre o art. 90 do CDC e o art. 21 da LACP. Para Fabricio Rochas Bastos:
“O microssistema de tutela coletiva gera um “Sistema de Vasos Intercomunicantes”. Tal sistema decorre do policentrismo do ordenamento jurídico brasileiro e significa que a normatização das situações ou das relações jurídicas se encontra em normas esparsas. À guisa de exemplo, existem diversas normas jurídicas que regulam o processo civil coletivo ( Constituição da Republica, Lei de Ação Civil Pública, Lei de Ação Popular, Lei de Improbidade Administrativa, Código de Proteçâo e Defesa do Consumidor, Lei do Mandado de Segurança).”[2]
Para o mesmo autor, "Apesar de as normas do CDC e LACP formarem o núcleo essencial (“núcleo duro”) do microssistema da tutela coletiva (formando um procedimento padrão para as demandas coletivas), elas não exaurem a regulamentação do tema.”[3]
Desta forma, o CPC/2015 passa a integrar o microssistema, o que ensejará uma releitura acerca da aplicabilidade destas normas.
Comumente, afirma-se que as normas do CPC serão aplicáveis de maneira residual , ou seja, somente quando não for encontrada solução decorrente da aplicação do microssistema.
Mas, cumpre ressaltar que o novo diploma processual ( CPC/2015) deixou de ser fonte meramente residual das questões processuais que não encontravam solução no microssistema, passando a ser fonte do próprio microssistema. Desenvolvendo melhor esta concepção, a Promotora de Justiça Graziela Argenta (nos) esclarece que:
“a recodificação empreendida com o CPC/2015 partiu da premissa de que o novo texto processual deveria manter sintonia fina com as diretrizes constitucionais, na linha do moderno entendimento acerca da posição e da função da Constituição como diploma central e orientador do ordenamento jurídico. Assim, o CPC/2015 foi idealizado para a concretização, no plano processual, dos valores constitucionais, apresentando, sob essa perspectiva, função participativa com os microssistemas, mormente para permitir uma ligação mais eficiente entre as diversas leis processuais e as normas constitucionais. Nesse novo paradigma, é estreme de dúvidas reconhecer que o microssistema coletivo deve ser articulado em um diálogo de fontes com a Constituição e o CPC/2015. O CPC/2015, ao pressupor a existência de microssistemas, inclusive o do processo coletivo, e ao apresentar-se no sistema com o propósito de servir de ponte entre a Constituição e as demais leis, adere à intertextualidade imanente ao microssistema da tutela coletiva, conferindo-lhe maior coesão e funcionalidade constitucional. Portanto, se o CPC/1973 havia perdido sua função de garantir uma disciplina única para o direito processual, o CPC/2015 não será um mero diploma residual e irá retomar, com bases diversas, a comunicação com o microssistema, mantendo com ele um diálogo de especialidade, coordenação e influência, colocando-o na trilha dos objetivos constitucionais . Por fim, frise-se, ainda, como será tratado adiante de maneira mais detida, que o CPC/2015 também sistematizou um modelo próprio de tutela coletiva, baseado no julgamento de casos repetitivos, o que demonstra sua aderência à ideia de processo coletivo.” [4]
Desta forma, o CPC/2015 é parte integrante do microssistema da tutela coletiva e tem, portanto, eficácia direta nos processos coletivos, devendo ser aplicado de forma coordenada com este. Para Fabrício Rocha Bastos “Trata-se de posição mais consentânea com o nosso sistema processual inaugurado com o CPC/2015, sendo, portanto, possível sustentar que o microssistema da tutela coletiva deve ser articulado em um diálogo de fontes com a Constituição da Republica e o CPC/2015.” [5]
Assim, o CPC passou a ser norma integrante do próprio microssistema:
“Este novo modelo assenta-se em diversas normas fundamentais, que deverão ser integralmente aplicáveis aos processos coletivos, tais como: a) o contraditório participativo através de seu quadrinômio com a necessidade de ser observado o dever jurídico de consulta ou vedação à surpresa (arts. 7º, 9º e 10, CPC); b) sistema multiportas, por meio do qual o jurisdicionado, nos processos coletivos devidamente representados pelo legitimado coletivo, tem o direito de optar pela forma de acesso ao sistema jurisdicional (art. 3º, CPC); c) princípio da boa-fé objetiva (art. 5º, CPC); d) princípio da cooperação (art. 6º, CPC); e) aplicação dos vetores previstos no art. 8º, CPC para a adequada resolução do caso concreto; f) princípio da primazia da resolução do mérito (arts. 4º, 282, § 2º, 317, 321, 488, 932, parágrafo único, 1029, § 5º, 1032 e 1033, CPC) 21 e g) princípio da adaptabilidade (arts. 139, VI e 329, § 2º, CPC).” [6]
Portanto, e em conclusão, o Código de Processo Civil de 2015 possui uma função, organizadora, flexível e aberta em relação ao microssistema, sem, contudo, contrariar as normas próprias da tutela coletiva, que devem ser preservadas.
Referências Bibliográficas
[1] BASTOS, Fabricio Rocha. Do Microssistema da Tutela Coletiva e Sua interação com o CPC/2015. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro nº 68, abr.p.57 - 132. jun. 2018.
[2] Ibidem
[3] Ibidem
[4] ARGENTA, Graziela. Do Processo Coletivo das Ações Coletivas ao Processo Coletivo dos Casos Repetitivos: Modelos de Tutela de Coletiva no Ordenamento brasileiro. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP.Rio de Janeiro. Ano 11. Volume 18. Número 1. pp. 236-277. Janeiro a Abril de 2017.
[5] BASTOS, op.cit.
[6] Ibidem