DA PRESCRITIBILIDADE DAS AÇÕES DE RESSARCIMENTO AO ERÁRIO DECORRENTES DE DECISÕES PROFERIDAS PELO TCU

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No presente artigo pretende-se discutir sobre a recente decisão do STF em repercussão geral sobre a (im)prescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário decorrentes de decisões proferidas pelo TCU.

O alcance das interpretações acerca do §5º do art. 37 da Constituição da República tem sido motivo de grande divergência doutrinária e jurisprudencial, razão pela qual o Supremo Tribunal Federal vem sendo reiteradamente instado a se manifestar enquanto intérprete máximo. Preconiza o referido dispositivo, in verbis:

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...)

§ 5º A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.”

Recentemente, no dia 20 de abril de 2020, o STF concluiu o julgamento de mérito do Recurso Extraordinário 636.886/AL, onde, apreciando o tema 899 da repercussão geral, definiu, por unanimidade, o alcance do dispositivo supra para concluir que são prescritíveis as pretensões de ressarcimento ao erário fundadas em decisões de Tribunais de Contas.

Na origem, a ação discutia a restituição aos cofres públicos de valores recebidos – por meio de convênio com o Ministério da Cultura para fins de aplicação no projeto Educar Quilombo – pela ex-presidente da Associação Cultural Zumbi, em Alagoas. No caso, a ausência da prestação de contas ensejou a condenação à restituição, o que, ante a não quitação do débito, culminou na propositura da ação de execução de título extrajudicial pela União[1].

Contra o acórdão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, que confirmou o decisum de primeira instância (que reconhecera a prescrição e extinguira o processo), foi apresentado recurso extraordinário. Em síntese, alegou-se no recurso em comento ofensa ao art. 37, §5º, da CF/88, por se entender ser inaplicável o art. 40, §4º, da Lei nº 6.830/1980 (decretação da prescrição de ofício) às execuções de título extrajudicial embasadas em acórdão do TCU que reconhece a existência do dever de ressarcimento ao erário.

Em que pesem os argumentos expendidos pela União no recurso constitucional, deve-se prestigiar a conclusão a que chegou o STF, que se coaduna com a construção da própria jurisprudência da Corte ao longo dos últimos anos a respeito do art. 37, §5º da CRFB/1988, especialmente diante das teses fixadas no julgamento dos temas 666 e 897 de repercussão geral.

Antes de adentrar na análise do julgamento que fixou a tese do tema 899 de repercussão geral, cerne do presente trabalho, revela-se pertinente tecer algumas considerações a respeito do instituto da prescrição.

Para Pontes de Miranda[2], a prescrição pode ser definida como a exceção tida por alguém em face daquele que não exerceu, dentro do prazo estabelecido pela norma, sua pretensão. Já na esteira do pensamento de Câmara Leal, prescrição consiste na “extinção de uma ação ajuizável, em virtude da inércia de seu titular durante um certo lapso de tempo, na ausência de causas preclusivas de seu curso[3].

A importância de estabelecer-se prazo prescricional para o exercício de uma ação remete à consagração do princípio da segurança jurídica: ao estabelecer-se um prazo dentro do qual deve ser exercido o direito de ação, garante-se a previsibilidade e estabilidade às relações jurídico-sociais, em benefício da paz social.

Conforme entendimento de Gilmar Mendes[4], a prescrição, na condição de limitador temporal do direito de ação, consiste num mecanismo de previsibilidade do direito.

Tal qual mencionado, referido dispositivo constitucional (art. 37, §5º), por abrir margem a diferentes interpretações e, assim, gerar instabilidade jurídica, deu ensejo à fixação de três teses de repercussão geral pelo STF: primeiramente diante do julgamento do tema 666, no bojo do RE 669.069/MG; em um segundo momento, com o tema 897, decorrente do leading case 852.475/SP; por fim, com o tema 899, estabelecido no julgamento do RE 636.886/AL.

Seguindo a cronologia dos julgamentos, impende destacar que, no julgamento do RE 669.069/MG, o Supremo foi instado a se manifestar sobre se a imprescritibilidade das ações de ressarcimento intentadas em favor do erário, à luz do art. 37, §5º, da CF/88, seria aplicável apenas às situações decorrentes de atos de improbidade administrativa, ou se abrangeria todos os danos ao erário (independentemente da natureza do ato que lhe deu causa).

Em seu voto, ressaltando o caráter principiológico da prescrição, o Min. Relator Teori Zavascki assentou:

“Em suma, não há dúvidas de que o fragmento final do § 5º do art. 37 da Constituição veicula, sob a forma da imprescritibilidade, uma ordem de bloqueio destinada a conter eventuais iniciativas legislativas displicentes com o patrimônio público. Esse sentido deve ser preservado. Todavia, não é adequado embutir na norma de imprescritibilidade um alcance ilimitado, ou limitado apenas pelo (a) conteúdo material da pretensão a ser exercida – o ressarcimento – ou (b) pela causa remota que deu origem ao desfalque no erário – um ato ilícito em sentido amplo. O que se mostra mais consentâneo com o sistema de direito, inclusive o constitucional, que consagra a prescritibilidade como princípio, é atribuir um sentido estrito aos ilícitos de que trata o § 5º do art. 37 da Constituição Federal, afirmando como tese de repercussão geral a de que a imprescritibilidade a que se refere o mencionado dispositivo diz respeito apenas a ações de ressarcimento de danos decorrentes de ilícitos tipificados como de improbidade administrativa e como ilícitos penais.”

Assim, em 3 de fevereiro de 2016, o STF por maioria, apreciando o tema 666 da repercussão geral originado do leading case acima referenciado (RE 669.069/MG), fixou a tese de que “é prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil”.

Posteriormente, em 8 de agosto de 2018, dando continuidade à fixação da extensão interpretativa do art. 37, §5º, da CF/88, dessa vez apreciando o tema 897 da repercussão geral no recurso extraordinário852.475/SP, a Corte Suprema consignou a tese da imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na lei de improbidade administrativa.

Para subsunção à tese da imprescritibilidade fixada, portanto, faz-se necessária a concorrência de dois requisitos, quais sejam: a prática de ato de improbidade administrativa devidamente tipificado na Lei 8.429/92 e a presença do elemento subjetivo do tipo dolo.

Da análise dos dois julgamentos referentes às teses 666 e 897, conclui-se que o posicionamento do STF ao longo dos anos, em relação à imprescritibilidade ou não, desenvolveu-se para reconhecer, como regra, a prescrição para as ações de ressarcimento ao erário.

Nesse diapasão, enfim, os entendimentos do STF acerca dos temas de repercussão geral podem ser brevemente consolidados no excerto do voto do Min. Alexandre de Moraes quando do julgamento do RE 636.886/AL, abaixo transcrito:

“Em relação a todos os demais atos ilícitos não caracterizados como atos de improbidade ou atentatórios à probidade na administração praticados sem dolo, ou ainda, pretéritos à edição da Lei 8.429/1992, manteve-se a ampla possibilidade de ajuizamento de ações de ressarcimento, dentro do respectivo prazo prescricional, aplicando-se o TEMA 666, como decidido em Repercussão Geral no RE 669.069 (Rel. Min. TEORI ZAVASCKI), com a seguinte TESE: É prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil.”

No que diz respeito ao julgamento do tema 899 de repercussão geral, através do leading case RE 636.886/AL, o STF não reconheceu similitude nas razões que o levaram a fixar a excepcional hipótese de imprescritibilidade no tema 897.

Como se sabe, o Tribunal de Contas auxilia o Congresso Nacional no controle externo (contábil, orçamentário, financeiro, operacional e patrimonial) da União, conforme dispõe o art. 70 da CRFB/88, sem, contudo, exercer função jurisdicional. A esse respeito, veja-se o que adverte José dos Santos Carvalho Filho:

“O inciso II do art. 71 atribui ao Tribunal de Contas competência para julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da Administração Direta ou Indireta, bem como as contas daqueles que provocaram a perda, o extravio ou outra irregularidade, causando prejuízo ao erário. O termo julgar no texto constitucional não tem o sentido normalmente atribuído aos juízes no exercício de sua função jurisdicional. O sentido do termo é o de apreciar, examinar, analisar as contas, porque a função exercida pelo Tribunal de Contas na hipótese é de caráter eminentemente administrativo.”[5]

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Somado a isso, e conforme consignado no julgamento retro mencionado, é de se atentar para o fato de que o Tribunal de Contas, ao exercer suas atribuições, não analisa a existência, ou não, de ato doloso de improbidade administrativa, não julgando, outrossim, pessoas.

Em outras palavras, o procedimento instaurado no âmbito do TCU tem índole administrativa e, ainda que possa reconhecer ato ilícito, não confere ao fiscalizado ampla possibilidade de defender-se com todas as garantias do devido processo judicial segundo as razões adotadas pelo STF. Há, dessarte, um julgamento eminentemente técnico de contas a partir das informações colhidas da fiscalização.

Em suma, referidas conclusões, portanto, impedem a subsunção das ações de ressarcimento oriundas de decisões do Tribunal de Contas à tese fixada quando do julgamento do tema de repercussão geral 897.

Lado outro, é importante reconhecer que nas hipóteses em que o legislador constituinte pretendeu a imprescritibilidade, o fez de modo expresso, como no art. 5º, XLI (racismo) e XLIV (ação de grupos armados), e no §4º do art. 231, quando trata de ações referentes às pretensões dos índios.

Ademais, convém ressaltar que, durante a Assembleia Nacional Constituinte, a redação antes da aprovação do texto final do atual art. 37, §5º, consignava, in verbis:

“A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízo ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento, que serão imprescritíveis.”

Nota-se que o constituinte optou por expurgar a última oração com a aprovação do texto final, de forma a restringir as excepcionais hipóteses de imprescritibilidade e privilegiar o postulado da segurança jurídica. Assim, a interpretação literal do art. 37, §5º da CF/88 não legitima a tese da imprescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas.

No que concerne à ressalva mantida no dispositivo constitucional em comento, de acordo com as razões expostas pelo Min. Alexandre de Moraes em seu voto no RE636.886/AL, tem-se:

“A ressalva prevista no § 5º do art. 37 da CF não pretendeu estabelecer uma exceção implícita de imprescritibilidade, mas obrigar constitucionalmente a recepção das normas legais definidoras dos instrumentos processuais e dos prazos prescricionais para as ações de ressarcimento do erário, inclusive referentes a condutas ímprobas, mesmo antes da tipificação legal de elementares do denominado ato de improbidade (Decreto 20.910/1932, Lei 3.164/1957, Lei 3.502/1958, Lei 4.717/1965, Lei 7.347/1985, Decreto-Lei 2.300/1986); mantendo, dessa maneira, até a edição da futura lei e para todos os atos pretéritos, a ampla possibilidade de ajuizamentos de ações de ressarcimento.”

Por todo o exposto, considerando as razões decisórias utilizadas pelo STF nos julgamentos dos RE 669.069/MG, 852.475/SP e 636.886/AL, deve-se atribuir sentido estrito ao dispositivo supra, de maneira a referenciar a prescritibilidade como princípio no ordenamento jurídico brasileiro tendente à preservação da segurança jurídica e à estabilidade das relações com o Poder Público.

 


[1] Conforme farto entendimento jurisprudencial, ressaltando-se inclusive a conclusão a que chegou o STJ no julgamento do REsp 1.390.933/RJ de relatoria do Min. Sérgio Kukina, os acórdãos do TCU constituem títulos executivos extrajudiciais por força do art. 71, §3º, da CF/88 c/c o art. 784, XII, do CPC.

[2]MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado; parte geral,v. 6,p. 100.

[3]LEAL, Antônio Luiz da Câmara. Da prescrição e decadência. Rio de Janeiro, Forense, 1978, p. 12.

[4] Posição manifestada no voto do Ministro Gilmar Mendes no julgamento do RE 852.475/SP

[5]FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo, 25 ed. São Paulo. Atlas. 2012. P. 994.

Sobre os autores
Gentil Ferreira de Souza Neto

Procurador de Estado e Advogado. Mestre em Direito Constitucional. Especialista em Direito Público e Direito Constitucional.

Rafael José Farias Souto

Advogado e consultor jurídico. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Atuação nas searas pública e privada. Possui pós-graduação em Direito Público pela Universidade Anhaguera-UNIDERP, em Direito Administrativo pelo Instituto Elpídio Donizetti, e atualmente é pós-graduando em Direito Previdenciário pela Faculdade Legale.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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