A pandemia do coronavírus e a (não) aplicação do fato do príncipe nas rescisões contratuais trabalhistas

09/08/2021 às 13:44
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O ano de 2020 trouxe para o mundo um dos maiores desafios já enfrentados pela humanidade nos últimos cem anos. De fato, a pandemia causada pelo coronavírus está a testar todos os limites do sistema de saúde dos países atacados por este poderoso vírus.

1- INTRODUÇÃO

O trabalho sempre ocupou a centralidade da vida humana, adquiriu caráter preponderante na formação das civilizações. Em toda a história da humanidade sempre existiu o trabalho como esforço físico ou intelectual do homem, que transforma a natureza para servir a seu desejo, e dela extrai sua subsistência.

Como paradigma da atividade humana e da evolução da humanidade, o trabalho pode ser apontado como a premissa principal e o ponto de partida a compreensão do modo de produção econômica, social e política, e também, como forma do homem se relacionar com outros homens e construir os vínculos sociais e econômicos a gerir a sociedade. Ao desvendar as leis da natureza, o homem a transforma e a domina, esse processo dialético, implica diretamente na transformação do homem, isto é, na mudança ontológica em sua natureza, transformando-o em ser social.

A partir do início do século XX e o Estado Liberal passa a implementar uma mudança de rumos em grande parte devido as sucessivas crises que enfrentou com a Primeira Guerra Mundial, o Socialismo Real, a Grande Depressão de 1929; decorrente da superprodução que o mercado foi incapaz de absorver; encerra um período de grande desenvolvimento e, com isso, assume uma agenda positiva, dotada de prestações de serviços públicos, a serem asseguradas ao trabalhador como direitos inerentes à cidadania. Com isso, nos grandes centros hegemônicos do capitalismo são adotadas medidas de intervencionismo estatal, após a Segunda Guerra Mundial.

Assevera Everaldo Gaspar Lopes de Andrade (2005. p. 70), e a citar Keynes, que o capitalismo é um sistema econômico essencialmente instável e tende constantemente ao desequilíbrio, razão pela qual é imprescindível à presença do Estado na economia.

Diante de ameaças ao sistema o capitalismo adotou medidas para humanizar suas relações de produção, através da substituição da doutrina do Estado Mínimo pela ideia do Estado do Bem-Estar Social Welfare State, também chamado de Estado Providência e Estado Social, cujos princípios básicos foram concebidos pelo economista britânico John Maynard Keynes e que consistia em uma política social na qual o Estado era o responsável por suprir as demandas da população, a fornecer à sociedade os principais serviços, como forma de garantir melhor qualidade de vida. Fazia contraponto ao chamado Estado Neoliberal, pois este tem como pressuposto primordial a não intervenção do Estado na economia, não devendo este fornecer os serviços básicos, agindo, apenas, como órgão regulador destes serviços. Cabe às empresas privadas a responsabilidade pela realização desses serviços essenciais, de modo a prover a sociedade, dentro da regulação estabelecida pelo Estado.

A subordinação tem sido apontada ao longo da história do Direito Individual do Trabalho como seu principal objeto de estudo, posto ser a relação de emprego considerada a linha mestra das relações entre patrões e empregados, sendo esta um derivado da relação entre trabalho e propriedade.

A subordinação pode ser compreendida como a sujeição do trabalhador ao poder de direção e comando do empregador, pois, tradicionalmente, este último controla as atribuições e funções do empregado, assim como, o faz em relação à forma com que essas atribuições serão exercidas. Tem-se, então, como forma de caracterização da relação de emprego: a subordinação e o poder diretivo do empregador, prerrogativa concedida a apenas esse sujeito da relação contratual.

A título de ilustração, etimologicamente a palavra subordinação é originária de subordinare (sub: baixo, ordinare: ordenar), significando, dessa maneira, a ideia de dependência, obediência e sujeição às ordens de outrem.

A subordinação como elemento primordial da relação de emprego, não incide sempre que alguém preste serviços a outrem, sendo necessário que exista dependência de uma pessoa para com a outra. Esta dependência, que o Direito do Trabalho conceitua com subordinação, deriva da relação contratual existente entre elas, portanto, de uma relação jurídica. Tal explicação se faz necessária, tendo em vista haver outras formas de dependência ou subordinação existentes em uma relação empregatícia, v.g., a relação de dependência econômica, pois o empregado dependia do salário para a sua sobrevivência; técnica, em que o empregador monopolizava o conhecimento técnico sobre as formas de produção ou mesmo social. Além de outras tipologias de subordinação, como a empresarial, regida exclusivamente pelo direito empresarial ou comercial.

2 -  A COVID 19 E O DIREITO DO TRABALHO

O ano de 2020 trouxe para o mundo um dos maiores desafios já enfrentados pela humanidade nas últimas décadas. A pandemia causada pelo coronavírus ou COVID-19 está a testar todos os limites do sistema de saúde dos países atacados por este poderoso vírus, agravado pela globalização e a consequente diminuição das distâncias outrora consideradas grandes; em especial o Brasil, cujo serviço público básico de atendimento à população há muito não corresponde às demandas da parcela mais vulnerável da sociedade.

Em consequência ao seu grande potencial de contágio, a se espalhar em pouquíssimo tempo e contaminar pessoas pelo mundo todo, revelando-se, até o momento, extremamente difícil de ser contido, a Organização Mundial da Saúde (OMS) passou a recomendar, como principal medida preventiva, o distanciamento social. Por conseguinte, diversos Governos nacionais tomaram medidas duras de confinamento da população, restrição ao deslocamento e a paralisação de todas as atividades econômicas consideradas não essenciais.

Mas, não apenas o sistema de saúde está em teste, o sistema jurídico também está sendo instado a responder segura e rapidamente aos problemas surgidos de forma inesperada e de repercussões inéditas.

Diante disso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) passou a recomendar, como principal medida preventiva, o distanciamento social. E isso fez com que boa parte dos Governos dos Estados Nacionais passassem a obrigar as pessoas a permanecer em quarentena e determinassem a paralisação de todas as atividades não essenciais.

Em razão da COVID-19, que levou à paralisação parcial ou total de empresas, com reflexos direitos na receita destinada ao pagamento da remuneração dos trabalhadores, foram editadas medidas provisórias para enfretamento do grave problema econômico e social, notadamente as de números 927, 936 e 944/2020.

No Brasil, país também bastante afetado pela pandemia, tanto que foi decretado o estado de calamidade pública através do Decreto Legislativo nº 6, de 20/03/2020, diversas medidas legislativas foram tomadas para intervir na economia e reduzir o impacto da paralisação das atividades produtivas. Dentre essas medidas, destaco a MP 936/20 que criou o Programa Emergencial de Manutenção do Empregado e da Renda foi estabelecido pelo Governo Federal, por meio de Medida Provisória, tendo como objetivo principal a regulamentação das relações de emprego em tempos de COVID-19, estabelecendo medidas emergenciais com o escopo principal da preservação dos contratos de trabalho.

Mais recentemente foi publicada a Lei nº 14.020/2020 a autorizar a prorrogação da redução de salários, jornada e a suspensão de contratos para além dos prazos iniciais previstos na MP 936/2020.

- Art. 2º Fica instituído o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, com aplicação durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º desta Lei e com os seguintes objetivos:

- Art. 3º São medidas do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda:

I - o pagamento do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda;

II - a redução proporcional de jornada de trabalho e de salário; e

III - a suspensão temporária do contrato de trabalho.

Diante da COVID-19, que levou à paralisação parcial ou total de empresas, com reflexos inclusive na receita destinada ao pagamento dos trabalhadores, foram editadas Medidas Provisórias para enfretamento do grave problema econômico e social, notadamente as de números 927, 936 e 944/2020.

Nessa senda, ressurgiu um debate sobre instituto jurídico pouco ou quase nunca utilizado, com previsão legal no art. 486 da CLT o fato do príncipe como alternativa aos impactos negativos na economia e nas relações de emprego, que atribui responsabilidade trabalhista pelo adimplemento das verbas rescisórias e indenizatórias ao ente público estranho à relação de trabalho.

Tendo em vista à determinação de governos estaduais e municipais de proibição temporária de funcionamento de inúmeras atividades, passou se a discutir se se trata de força maior governamental, ou seja, de fato do príncipe, com os efeitos previstos no art.486, da CLT, a ensejar a responsabilidade governamental pela indenização correspondente aos danos causados.

Trata-se de uma situação excepcional, na qual o empregador esteja passando por situação de grave prejuízo financeiro, imposto por medidas administrativas do Poder Executivo, a restringir a atividade empresarial por ato discricionário, podendo acarretar a rescisão dos contratos de trabalho e a responsabilização do ente estatal quanto às indenizações decorrentes da extinção da relação empregatícia.

O fato do príncipe pode ser externo e interno. Na forma externa interfere na relação jurídica privada, mas transfere à autoridade pública a responsabilidade da indenização, como ocorre na desapropriação.

Já o fato do príncipe interno mantém a responsabilidade nas mãos do sujeito passivo da relação jurídica por ele afetada. Como exemplos, a interdição ou fechamento de estabelecimento ou prédio que ponha em risco os seus usuários.

No entender de Augusto César Leite de Carvalho[1]:

O factum principis, ou fato do príncipe, é uma variação da força maior, designando uma ordem ou proibição de autoridade pública que frustra a execução do contrato interessa-nos, particularmente, o contrato de emprego. Porque encerra uma modalidade de força maior, o factum principis exige a imprevisibilidade e a irresistibilidade, no tocante ao empregador.

Ressalto ser a interpretação dada ao citado art. 486, Consolidado é bastante restritiva, aplicando-se em raras hipóteses, a reduzir seu campo de aplicação a um quadro fático bastante reduzido.

Luciano Martinez[2] apresenta alguns exemplos de ocorrência do fato do príncipe:

Essa situação, intitulada como fato do príncipe, está prevista no art. 486 da CLT e já teve, no passado histórico brasileiro, alguns referenciais (geradores de incidência da norma), sendo interessante citar aqueles que dizem respeito:

a) medidas de racionamento de energia elétrica em grande parte do País, a partir de junho de 2001;

 b) à desapropriação de áreas que foram submersas nos processos de construção de barragens e de hidroelétricas; e

c) à desapropriação promovida pelo INCRA para efeito de reforma agrária

Ocorre que a decretação de paralisação parcial e temporária de parte das atividades econômicas por diversos governos estaduais e municipais no Brasil visa preservar a saúde pública e obedeceu a necessidade de preservar a dignidade da pessoa humana, bem como de evitar superlotação em hospitais, ausência de leitos e equipamentos e medicação segura, a seguir, assim, recomendação da Organização Mundial de Saúde.

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Faz-se necessário ressaltar que o Brasil vive em estado de calamidade publica, determinado pelo Decreto Legislativo nº 6, de 2020, a significar que durante a prevalência desse excepcional estado, os contratos de trabalho estarão sujeitos ao instituto jurídico da força maior, previsto no art. 501 da Consolidação das Leis do Trabalho, sendo o fato do príncipe uma das espécies daquele. Cuida-se de espécie de força maior, de efeitos inevitáveis, qualificada pela origem: autoridade administrativa, no exercício do interesse público.

Nesse sentido, a jurisprudência consolidada do Tribunal Superior do Trabalho, determina que atos da Administração Pública a visar o que visem a resguardar a relevância maior da sociedade não se harmonizam com o conceito do fato do príncipe.

Pode-se afirmar serem inabituais, por conseguinte, as situações de ato de império estatal tendo por fundamento o fato do príncipe que não derivem da má gestão empresarial ou do próprio ao risco inerente à atividade econômica, conforme se verifica em Valentin Carrion[3]:

O instituto (o factum principis) se esvaziou no decorrer do tempo, se é que já não nasceu morto; a prática revela dois aspectos: se o ato da autoridade é motivado por comportamento ilícito ou irregular da empresa, a culpa e as sanções lhe são atribuídas por inteiro; se seu proceder foi regular, a jurisprudência entende que a cessação da atividade faz parte do risco empresarial e também isenta o poder público do encargo; o temor de longa duração dos processos judiciais contra a Fazenda Pública também responde por essa tendência dos julgados.

É mister realçar que, em respeito aos princípios da legalidade e da moralidade pública insculpidos na Constituição Federal 1988, o Estado é obrigado a guardar e tutelar a proteção do interesse público, em especial na dramática situação ocasionada pela pandemia do coronavírus. Sob pena de incidir nas sanções previstas na Lei de Improbidade Administrativa Lei 8.429/92, aplicáveis aos agentes públicos, por violação às finalidades precípuas da Administração Pública.

Portanto, entendo não ser cabível a aplicação do factum principis, posto que o interesse privado das empresas, embora legítimo, de abater o prejuízo sofrido, esbarra no interesse público motivado pelo estado de calamidade enfrentado no Brasil, imposto pelo Decreto Legislativo nº 6, de 2020 e decorrente do episódio de pandemia, a descaracterizar a responsabilidade desses governos, pois não se trata de ato de governo, mas da natureza, que afetou a saúde pública mundial, capaz de exigir medidas preventivas urgentes.


[1] Carvalho, Augusto César Leite de Direito do trabalho: curso e discurso. 3ª ed. São Paulo: LTr, 2019. Pág. 452

[2] Martinez, Luciano Curso de direito do trabalho: relações individuais, sindicais e coletivas do trabalho. 9. ed. São Paulo : Saraiva, 2019. Pag. 650

[3] CARRION, Valentim. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. 32.ed. atual. por Eduardo Carrion. São Paulo: Saraiva, 2008, p.393

Sobre o autor
Fábio Porto Esteves

Mestre em Direito do Trabalho pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor. Conselheiro Estadual da OAB/PE. Presidente da Comissão de Estágio e Exame de Ordem. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

A importância do tema em debate é incontestável uma vez que se entende ser de grande valia essa discussão para toda a Sociedade do Trabalho. O presente artigo apresenta mais um ponto de vista sobre o tema polêmico e atual, através da análise da moderna doutrina e jurisprudência pátria.

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