O tema que abordaremos neste esboço é muito mais comum e frequente do que imagina a maioria das pessoas. Trataremos, sem a pretensão de esgotar a discussão, somente do verbo “praticar” do crime previsto no art. 218-A do Código Penal - Satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente.
Art. 218-A. Praticar, na presença de alguém menor de 14 (catorze) anos, ou induzi-lo a presenciar, conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.
Não são raros os casos em que casais convivem em um mesmo cômodo com seus filhos pela condição econômica (ou falta dela) não possuindo, assim, nenhuma privacidade entre si para diversos atos, entre eles o sexual.
Dessa forma, a análise do tipo penal proposto é interessante para que possamos discutir o tema de forma técnica e não sob os ânimos pessoais de cada indivíduo, pois, se temos um ordenamento jurídico vigente em um Estado Democrático de Direito, este deve prevalecer.
Continuando a entender o contexto do que aqui se discute, devemos nos atentar, sempre, à redação do dispositivo no sentido de não passar em branco o fim específico que ele determina para a caracterização do crime,
“...a fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem “.
Lascívia, a grosso termo para um melhor entendimento, podemos definir como a satisfação do desejo sexual do indivíduo pelo e com o ato praticado.
Assim, tendo o crime em comento um fim específico para a sua tipicidade, não basta apenas a conduta ser praticada na presença da criança ou adolescente menor de 14 anos mas, sim, que esta presença seja conditio sine qua non para a satisfação da lascívia de quem está praticando a conduta. Não havendo esta “presença lasciva” inexiste a tipicidade penal, sendo o fato atípico por força da parte final do art. 218-A conforme já mencionamos acima “...a fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem”.
Imaginemos uma situação em que o casal está no quarto com sua filha de 6 meses e ali praticam conjunção carnal ou outros atos libidinosos (coito anal, oral, toques, masturbação, beijos lascivos...) na presença da bebê. Houve o crime do art. 218-A? A resposta vai depender do caso concreto. Caso a presença da bebê tenha sido fator imprescindível para que a lascívia dos participantes fosse alcançada, o crime estará caracterizado. Por outro lado, se houve a relação sexual na presença da criança sem que ela influenciasse a libido do casal, o fato é atípico.
Caso tomemos por absoluta a redação do artigo em discussão sem analisar o fim específico que o dispositivo estabelece, ignorando-o, o crime estará (erroneamente) caracterizado sem maiores discussões, entretanto, se tratarmos a redação do tipo penal de forma mais ampla e de acordo com cada caso concreto de forma subjetiva e com a atenção voltada para a taxatividade do tipo, certamente, a depender da situação, o fato será atípico.
Dessa forma, ilustrando um outro exemplo, também não haverá crime se um casal estiver mantendo relações sexuais na madrugada e um dos seus filhos menor de 14 anos acordar e presenciar o ato por dois motivos: o primeiro é que não houve o fim específico que já mencionamos, ou seja, que a presença da criança ou adolescente menor de 14 anos não foi fator para que a lascívia do casal fosse alcançada; o segundo motivo é que o crime que estamos tratando só existe na modalidade dolosa por possuir justamente o fim específico, não tendo previsão em sua modalidade culposa, quando a conduta é praticada por imprudência, imperícia ou negligência. Como o legislador não previu a modalidade culposa do delito não cabe ao intérprete criá-la, sob o risco de ferir de morte o princípio constitucional da legalidade:
Art. 5 (...)
XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;
Assim, impede-se a utilização de aplicação in pejus das normas penais como fonte criadora de infrações e respectivas sanções, ou seja, é vedada a utilização da analogia para a definição de delitos ou aplicação de penas.
No exemplo que citamos acima o casal agiu com imprudência (em sentido lato) em manter relações sexuais dentro do mesmo cômodo que os filhos, porém, além da lei não prever punição pela imprudência, não houve a busca do prazer pela presença da criança, o que torna o fato completamente atípico.
Questão tormentosa e que também dever ser discutida no presente dispositivo que estamos abordando é o caso da vítima que não tem o discernimento sexual necessário para identificar o ato praticado na sua presença. Haveria afronta à sua dignidade sexual?
O crime em comento está inserido dentro do Título VI do Código Penal, que estabelece os crimes contra a DIGNIDADE SEXUAL e, por isso, se fizermos uma leitura nua, crua, superficial e sem nenhum questionamento, em tese, a dignidade sexual da vítima estaria maculada, pois o crime está realmente inserido dentro do título dos crimes contra a dignidade sexual e, consequentemente, por ali estar inserido, presume-se que ela fora afetada.
A dignidade sexual do indivíduo será extirpada quando este não mais poder dispor de sua sexualidade sob sua livre escolha, vontade ou ação da forma como bem entender. Assim sendo, quando estivermos diante de uma conduta em face de alguém que retire dele tais voluntariedades, estaremos diante de um crime contra a dignidade sexual.
Flertando com um olhar estritamente técnico sobre o tema, não podemos aceitar de forma passiva que somente pelo fato do dispositivo estar inserido dentro do título dos crimes contra a dignidade sexual, assim o seja. Entendemos que o tipo penal da forma como foi criado e estabelecido está inserido erroneamente em nosso Código Penal.
O legislador inseriu o crime do art. 218-A no Código Penal como sendo um crime contra a dignidade sexual, entretanto, o mesmo legislador condicionou essa violação contra a dignidade sexual a um fim específico a ser alcançado pelo autor do crime, o que torna o tipo penal contraditório ou, no mínimo, mostra seu total deslocamento sobre o que é e o que diz.
Condicionou-se uma afronta a dignidade sexual da vítima a, necessariamente, um fim específico a ser alcançado pelo autor do crime, pois, sem ele, não haverá o crime conforme já explicamos. Uma relação sexual ou a prática de outros atos libidinosos na presença de uma criança ou adolescente menor de 14 anos só será crime, de acordo com o atual dispositivo, se houver o dolo (consciência e vontade) de praticar o ato buscando a lascívia pela presença do infante, caso contrário não haverá tipicidade penal.
Apenas a título de esclarecimento e respeito ao assunto, situação diferente seria se alguém tocasse lascivamente os vulneráveis previstos no art. 217-A do Código Penal, pois, assim procedendo os tornariam objeto sexual do crime, ainda que jamais pudessem discernir sobre o ato.
Estupro de vulnerável
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
§ 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
Imaginemos, agora, uma situação em que os pais de uma criança – independentemente de ela conseguir assimilar o ato ou não – mantenham relação sexual em sua presença com suas lascívias alcançadas justamente por sua presença. Neste exemplo a presença da criança é o fator gerador da lascívia do casal, sendo, portanto, condição essencial para “acender” seu fogo.
Certamente o caso se amolda perfeitamente no tipo penal e o crime estará configurado, porém, como provar o dolo? O assunto deve ser discutido amplamente e de forma técnica para que cheguemos a uma resposta segura para a correta aplicação da norma ao caso concreto.
No caso de a criança ter discernimento sobre o ato, ela pode contribuir na produção da prova dizendo que seus pais pediram para ela presenciar ou ficar no local enquanto o ato sexual acontecia, porém, como fazer a prova do dolo, por exemplo, se a presença de um bebê de 3 meses for o fator gerador da lascívia? Não existirá a prova!
Como regra geral os crimes contra a dignidade sexual são crimes clandestinos onde, muitas vezes, há somente a palavra da vítima contra a do agressor e nada mais e, mesmo assim, conforme julgados recentes
“É firme o entendimento do Superior Tribunal de Justiça de que, em crimes contra a liberdade sexual, praticados, em regra, de modo clandestino, a palavra da vítima possui especial relevância, notadamente quando corroborada por outros elementos probatórios” (AgRg no AREsp 1.586.879/MS, Sexta Turma, j. 03/03/2020).
e doutrina moderna,
“No mais, embora sejam graves os delitos sexuais contra a criança e o adolescente não se pode olvidar o princípio constitucional da prevalência do interesse do réu (in dubio pro reo), que inspira e norteia o processo penal. Portanto, em caso de confronto integral entre a palavra da vítima e a do acusado, sem maiores dados probatórios, deve-se promover a absolvição” (Crimes contra a dignidade sexual / Guilherme de Souza Nucci. – 5 ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro : Forense, out./2014, pag. 120).
podemos observar que nem sempre é suficiente para uma condenação.
Ao observarmos o posicionamento da doutrina e judiciário acima, percebemos que somente a palavra isolada da vítima, via de regra, não será suficiente para uma responsabilização penal, pois, quando não em conjunto com outros elementos de prova, deve sempre prevalecer o princípio constitucional da presunção de inocência do indivíduo.
Mediante todo o exposto percebemos que o tema não pode ser deixado de lado e que cada ponto aqui trazido deve ser constantemente debatido para que se construa, cada vez mais, uma solidez jurídica com base no ordenamento jurídico que rege o nosso país.