A informalidade no Brasil e a necessidade de se repensar a legislação trabalhista brasileira

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Até que ponto a justiça do trabalho tem atendido os trabalhadores informais no Brasil? Esse é um dos pontos a ser explicado por esse artigo que buscará contextualizar a realidade social e a suas consequências dentro da empregabilidade no país.

É notório que o desemprego em massa é um dos principais problemas enfrentados pela sociedade brasileira nas últimas décadas, ou melhor, é um problema estrutural que convive com a história brasileira desde a abolição da escravatura.

Já no final do século XIX, com a campanha que terminou na abolição da escravatura, já se via a arquitetura de segregação e desemprego que perduraria no país por séculos e atravessaria até a atualidade, como bem informada por Gilberto Maringoni (2011):

“A campanha que culminou com a abolição da escravidão, em 13 de maio de 1888, foi a primeira manifestação coletiva a mobilizar pessoas e a encontrar adeptos em todas as camadas sociais brasileiras. No entanto, após a assinatura da Lei Áurea, não houve uma orientação destinada a integrar os negros às novas regras de uma sociedade baseada no trabalho assalariado. ”

Em entrevista dada em um sítio eletrônico de notícias (UOL, 2020), o ilustre professor Marcos Henrique do Espírito Santo também reafirmou que, após tal ato, “houve um processo de imigração de europeus, especificamente italianos, para a criação das forças de trabalho assalariadas. Os negros escravizados, no entanto, não foram incluídos no mercado de trabalho”. 

Com isso, esse grupo social passou a se espalhar pelas periferias na tentativa de buscar a sobrevivência por outras fontes, levando a um profundo e triste histórico de precarização da qualidade de vida e de mão-de-obra fazendo até com que, ainda segundo o citado professor, os negros tivessem a maior taxa de desemprego em relação aos demais grupos étnicos, até os dias de hoje.

Nesse contexto de desemprego estrutural no Brasil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE estimou, no primeiro trimestre de 2021, o número de 14,8 milhões de desempregados (desocupados) no Brasil além de 6,0 milhões de desalentados - ou seja, aqueles que desistiram de procurar emprego - no mesmo período. 

Essa marca reflete a saúde da sociedade como um todo, no entanto, está longe de ser uma estimativa concreta da realidade do país no que diz respeito à oferta de empregos. O que não se computa, dentro dessa realidade de desemprego é o contexto daqueles brasileiros que não aceitam, ou não podem aceitar, a situação de desocupação e migram para um conceito bastante conhecido de trabalho: a informalidade.

Para se adentrar ao tema “informalidade”, é interessante diferenciar o trabalhador informal do desempregado e do trabalhador formal. 

O desempregado refere-se às pessoas com idade para trabalhar, mas que não estão trabalhando no momento, mesmo estando em busca de emprego (IBGE, 2021).

O trabalhador formal, diferente dos informais, é aquele que possuí vínculo de trabalho mediante contrato assinado com a Carteira de trabalho e previdência social – CTPS devidamente preenchida, fazendo jus a todos os direitos inerentes à Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT.

Por sua vez, o trabalhador informal, de acordo com o IBGE, é aquele empregado “no setor privado sem carteira assinada, empregados domésticos sem carteira assinada, empregador sem registro no CNPJ, trabalhador por conta própria sem CNPJ ou trabalhador familiar auxiliar”.

De um modo mais didático, pode-se afirmar que o trabalhador informal é aquele profissional que não possui carteira de trabalho e previdência social assinada e, por consequência, não dispõe de direitos trabalhistas oriundos da relação de trabalho da CLT, tais como férias, décimo terceiro salário, direitos rescisórios do contrato de trabalho. E mesmo configurando claramente o contrato de trabalho formal, não dispõe de facilidade para ter os seus direitos reconhecidos, frente a ausência do “papel” que lhes classifiquem como celetistas.

Eles participam da economia nacional como profissionais autônomos como, por exemplo, catadores de recicláveis, camelôs, pequenos feirantes, vendedores ambulantes, domésticas, freelancers e até mesmo os uberizados como entregadores e motoristas de aplicativos.

Nesse contexto, as formas antigas de trabalho informal unem-se com formas mais modernas de trabalhos baseados em aplicativos de entrega ou de mobilidade, originando assim uma falsa aparência de empregabilidade dentro da sociedade na qual, na verdade, se compõe como uma escravidão moderna e contemporânea por estarem excluídos da proteção das leis trabalhistas.

O coordenador de um estudo científico intitulado “Trabalho Escravo no Brasil do Séclo XXI”, Leonardo Sakamoto, descreve a consequência do trabalho informal dentro do Brasil, o que não significa afirmar que tal problema é decorrente de um atraso sociológico ou temporal sobre o tema:

“De 1995 até 2005, 17.983 pessoas foram libertadas em ações dos grupos móveis de fiscalização, integrados por auditores fiscais do Trabalho, procuradores do Trabalho e policiais federais. No total, foram 1.463 propriedades fiscalizadas em 395 operações. As ações fiscais demonstram que quem escraviza no Brasil não são proprietários desinformados, escondidos em fazendas atrasadas e arcaicas. Pelo contrário, são latifundiários, muitos produzindo com alta tecnologia para o mercado consumidor interno ou para o mercado internacional. Não raro nas fazendas são identificados campos de pouso de aviões. O gado recebe tratamento de primeira, enquanto os trabalhadores vivem em condições piores do que as dos animais. (SAKAMOTO, 2006, p. 2)”

Ainda segundo o IBGE (2021), através da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) contínua, a taxa de informalidade no mercado de trabalho subiu para 40% da população ocupada, ou seja, estima-se a marca de quase 35 milhões de brasileiros com vínculos de trabalhos sem a carteira assinada.

Nesse contexto, observa-se que o desemprego está ligado ao trabalho informal, que, por sua vez, está ligado à graves problemas trabalhistas tais como o trabalho escravo, insalubre e violação de direitos fundamentais. 

Um trabalhador informal não possui nenhuma garantia trabalhista em meio a rescisão unilateral do seu vínculo empregatício com a outra parte, sequer falando em relação de trabalho nesses casos. Também não conta com benefícios previdenciários, salvo se contribuírem por iniciativa própria. 

Em tempos de crise econômica, sanitária ou política, tais trabalhadores são os mais afetados, tendo em vista a precariedade da estabilidade econômica ou trabalhista que vivenciam.

Seja por um camelô que perde sua mercadoria para a fiscalização por não contar com notas fiscais ou por não possuir licença para trabalhar em determinado lugar; seja por um entregador de aplicativo que sofre um acidente de transito e fica anos em recuperação sem qualquer auxílio previdenciário por não estar, ao momento do fato, contribuindo para previdência. Tudo isso são possíveis exemplos no contexto os quais os informais estão inseridos. 

Portanto, é claro a existência de um problema sério e secular que se adapta e evolui com a tecnologia e a modernidade, criando ramos e braços com o objetivo de perpetuar-se como exploração total dos trabalhadores mediante a mínima, ou inexistente, contraprestação ou seguridade de direitos que deveria existir dentro das relações de emprego e trabalho.

Para tanto, visto que a modernidade e a tecnologia cresce de uma maneira exponencial, tentar utilizar da velha e tradicional regulamentação legal parece ser um trabalho perdido, uma vez que a ciência jurídica sempre se desenvolveu em atraso frente aos anseios da sociedade.

Nesse contexto, a justiça do trabalho, incorporada na Consolidação das Leis do Trabalho, possui uma limitação clara e definida: a anotação da CTPS e o contrato de trabalho, não considerando, por conta do princípio da legalidade fatos que fogem da caracterização genérica da relação de emprego (alteridade, subordinação, pessoalidade, onerosidade e não eventualidade).

Tal fato deve ser superado, fazendo uso do próprio Direito do Trabalho ao trabalhar com seus princípios basilares. Aliás, é pela preferência aos princípios do trabalho que se encontra a solução para os problemas que afetam os trabalhadores informais do Brasil, o que será tratado mais adiante. 

Por hora, realizando um estudo superficial do Direito Trabalhista, por uma visão principiológica, é fácil identificar que é defeso para todo trabalhador a renúncia dos seus direitos trabalhistas por se tratar de algo intrínseco ao empregado, tal como outros direitos fundamentais, não podendo servir como moeda de troca (LEITE, 2018).

Se os direitos trabalhistas é um direito fundamental de todo e qualquer trabalhador, é questionável o fato do trabalhador informal, em muitas vezes, abrir mão dos seus direitos básicos e relacionados à própria dignidade tais como o respeito à carga horária máxima de oito horas por dia e ao salário mínimo em situações normais de trabalho. 

É como se, por ser trabalhador informal, a proteção aos direitos trabalhistas fossem relativizadas ou simplesmente não existissem. No entanto, os direitos fundamentais são, por sua natureza, universais e inalienáveis, não podendo a pessoa humana deles serem privados. 

Nesse aspecto, o direito ao trabalho é um direito fundamental social expressamente previsto na Constituição Federal do Brasil conforme o seu artigo 6º além de ser um dos fundamentos principais da ordem econômica, devendo ser tal direito protegido pela Justiça do Trabalho sobre todas as suas formas: celetistas, informais ou uberizadas.

Não se pode haver, como estrutura do Direito Trabalhista, leis voltadas apenas para a relação de emprego formal, sem qualquer regulamentação voltada para aqueles trabalhadores que decidem ganhar seus rendimentos ou prestar seus serviços de forma autônoma ou informal. 

Essa estrutura a qual se fala é devidamente confirmada pelo jurista Gustavo Filipe Barbosa Garcia (2017):

“As regras jurídicas trabalhistas são as disposições normativas que regulam certas situações específicas e condutas, bem como estabelecem as respectivas consequências. Os princípios do Direito do Trabalho são as disposições estruturais desse ramo do Direito. O Direito do Trabalho, assim, é esse sistema de regras, princípios e instituições pertinentes à relação de emprego”

O Direito do Trabalho deve ser onipresente na sociedade brasileira. Deve ser um conjunto de normas principiológicas capazes de adequar toda e qualquer relação referente à prestação de serviços com viés empregatícios aos princípios inerentes aos direitos do trabalhador e aos direitos fundamentais.

A Justiça do Trabalho, bem como os órgãos institucionais ligados à ela e até mesmo as normas e regulamentações que trabalham com grupos específicos de trabalhadores não são suficientes para fazer o Direito do Trabalho acompanhar corretamente as mudanças tecnológicas diante de uma sociedade cada vez mais dinâmica. 

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Com tudo isso, é visível a necessidade de expandir o aparato protetivo do Estado quanto às relações de trabalho, sejam eles formais ou informais, por mais que a informalidade defenda justamente a “liberdade” de legislação “pesada” e “burocratizada”, como muitos defendem, erroneamente.

Deve-se lembrar que o Estado é um dos principais responsáveis por certos problemas trabalhistas existentes na sociedade pois é este que não consegue oferecer a todos a oferta de emprego adequada, fazendo com que outros agentes passem a explorar essa falha, mitigando a liberdade do trabalhador de buscar condições melhores dentro do mercado de trabalho.

Além disso, é por culpa do Estado que o desemprego afeta, em maior ou menor grau, uma sociedade. Onde há desemprego, há informalidade sem qualquer resguardo jurídico e mitigação de direitos a troco de vagas escassas dentro das relações formais.

Para isso, é necessário que se busque uma legislação principiológica, ou seja, um conjunto normativo que contenha preceitos gerais, fixando os principais fundamentos da Justiça do Trabalho de modo que tal legislação possa ser aplicada ao mais variado contexto, nunca se tornando uma lei fechada para determinado tempo ou situação. 

Uma lei que pode ser usada para empregados formais, informais, grupos prioritários tais como idosos, deficientes físicos e mulheres de uma forma que lhes garantam abrangência e, por fim, que possa servir de norte para um conjunto jurisprudencial capaz de acompanhar toda e qualquer mudança que a sociedade brasileira venha a ter, desde que contenha os objetivos buscados pelo Direito do Trabalho.

Nesse contexto, a regulamentação não visa apenas o atendimento do trabalhador informal, mas sim, a criação de uma nova visão de trabalho. Onde seja capaz de combater a escravização contemporânea do trabalhador brasileiro e que consiga se contrapor frente aos possíveis abusos das grandes empresas de tecnologia e do seu monopólio sobre milhões de trabalhadores urbanos, que se sujeitam às regras por conta da baixa oferta de emprego causadas pelas crises enfrentadas pelo país nos últimos anos.

Uma regulamentação ideal buscaria uma base principiológica rica, tendo como inspirações leis e estatutos brasileiros mais recentes onde sobrepõe determinado grupo social em um patamar de prioridade onde o Estado e a sociedade são obrigadas a garantir a devida efetivação de seus direitos.

Jorge Neto & Cavalcante (2019), define de maneira clara a importância dos princípios para a ciência jurídica: 

“No campo da ciência, os princípios denotam as proposições ideais, as quais são elaboradas a partir de uma dada realidade e com o objetivo de compreendê-la. A ciência, como representa o conhecimento sistematizado do homem a respeito de um determinado objeto, necessita dos seus princípios para analisar e captar a realidade inerente ao seu campo de estudo.”

Com base nisso, além da composição dos princípios básicos e da busca pela igualdade material entre todos os trabalhadores e funções econômicas, seria de grande valia a elaboração de uma lei ou estatuto didático onde fosse possível a caracterização de várias espécies de trabalho e suas principais características e necessidades.

Características essas que seriam, por sua vez, direcionadas por procedimentos estatais de modo a dar para cada profissão a atenção que deveriam possuir. 

Exemplos disso seriam a composição de normas programáticas para que o Estado regulamentasse a implantação de seguros para entregadores de aplicativos de modo compartilhado entre poder público e empresa intermediadora; ou a facilidade de obtenção de crédito ou de pagamento de impostos ou contribuições previdenciárias para trabalhadores informais que faturassem valores próximos do salário mínimo; ou, por fim, a disponibilização gratuita de equipamentos de proteção individual – EPI para catadores de recicláveis ou demais profissionais informais em situação de risco de acidentes de trabalho.

Por fim, o que se busca é uma regulamentação que seja capaz de abraçar o direito trabalhista de qualquer empregado, seja ele formal ou informal. Não necessitando ter um réu do outro lado da discussão, mas apenas o pleito jurídico suficiente para garantir os seus direitos sociais fundamentais contidos na Constituição Federal.

Em uma nação onde, sabiamente, já se abraçou os direitos da mulher, da criança e do adolescente, do idoso, das minorias e de tantos outros grupos em situação de vulnerabilidade, é justo que se abrace o direito ao trabalho.

E que o direito ao trabalho alcance toda e qualquer relação de emprego ou prestação de serviços onde figure ao menos um ser humano de um lado da relação, não devendo os demais ramos do Direito servirem de trincheiras para evitar a concretização da justiça trabalhista. 

Antes de um CNPJ ser fato suficiente para bloquear uma relação empregatícia por meio do direito civil; ou de um contrato de adesão ser motivo suficiente para retirar de um entregador de aplicativo, a caracterização de empregado; a legislação nacional deverá priorizar a realidade social das relações, protegendo o trabalhador, de modo que a justiça cumpra com o seu objetivo basilar: a proteção do elo mais fraco.

O Direito, assim como a Lei, deve ser fluido e deve ser capaz de se adaptar a um mundo que muda a cada segundo. Mantendo, é claro, o seu núcleo protetivo para com a pessoa humana, mas sempre se buscando adaptar os seus princípios ao cotidiano da sociedade a qual ele serve. 


Referências Bibliográficas

BARÃO, Naíke. Entenda o trabalho informal no Brasil e no mundo. Portal Politize. 28/10/2020. Disponível em https://www.politize.com.br/trabalho-informal/

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa Curso de direito do trabalho / Gustavo Filipe Barbosa Garcia. – 11ª ed., rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2017

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Desemprego | IBGE. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. História – O destino dos negros após a Abolição. Revista Desafios do Desenvolvimento. 2011. Ano 8. Edição 70 - 29/12/2011.     Disponível     em https://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&id=2673%3Acatid%3D28;

JORGE NETO, Francisco Ferreira. Direito do Trabalho/Francisco Ferreira Jorge Neto, CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2019.

LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito do trabalho. 9. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

SAKAMOTO. Leonardo. Trabalho Escravo no Brasil do Século XXI. Primeira edição 2006. Disponível em ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---rolima/---ilo-brasilia/documents/publication/wcms_227551.pdf

Sobre os autores
Leandro Ferreira da Mata

Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Estácio Brasília; habilitado no Exame da Ordem dos Advogados na área de Direito Penal; Especialista em Direito da Criança, Juventude e dos Idosos e em Segurança Pública e Organismo Policial.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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