Introdução
Tradicionalmente em Direito dos Contratos, o princípio da autonomia da vontade dispõe que os indivíduos, desde que dotados de capacidade jurídica, têm o poder de praticar atos e assumir obrigações de acordo com a sua vontade. Sua origem está vinculada aos ideais iluministas surgidos no século VIII, cujo foco era o indivíduo, pregadas pela Revolução Francesa.
A ideia contida neste princípio é que as pessoas são dotadas de liberdade e que, portanto, são válidos os atos de contratar o que quiserem, com quem quiserem, da forma que entenderem mais adequada e oferecendo a contraprestação que considerarem justa. Em suma, o princípio da autonomia da vontade compreende a liberdade de contratar – decidir se e quando estabelecer uma relação jurídica contratual; a liberdade de escolher o outro contratante; e a liberdade de determinar o conteúdo do contrato – optar por uma das modalidades de contrato reguladas em lei, com introdução das modificações que considerar necessárias, ou por um contrato inominado, totalmente distinto dos modelos regulados.
A Constituição Federal, ao definir em seu artigo 5º, II, que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei", além de estabelecer o princípio da legalidade, está preconizando, a contrario sensu, que todos podem fazer ou deixar de fazer tudo o que quiserem, desde que não haja lei em contrário. Fazer o que quiser é ser livre para decidir o próprio destino e decidir o próprio destino é ser autônomo para praticar o que tiver vontade.
O Direito Civil, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, passou a priorizar a dignidade da pessoa humana e a garantia dos direitos fundamentais, visto que ele deve estar em conformidade com os valores, regras e princípios constitucionais.
Nesse sentido, também se deve levar em consideração a concepção social do contrato que, segundo Gonçalves (2012), tem relação com o princípio da “função social da propriedade”, previsto na Constituição Federal, que visa “promover a realização de uma justiça comutativa, aplainando as desigualdades substanciais entre os contratantes” (GONÇALVES, 2012, p.28).
Assim, segundo Gonçalves (2012),
O Código Civil de 2002 procurou afastar-se das concepções individualistas que nortearam o diploma anterior para seguir orientação compatível com a socialização do direito contemporâneo. O princípio da socialidade por ele adotado reflete a prevalência dos valores coletivos sobre os individuais, sem perda, porém, do valor fundamental da pessoa humana (GONÇALVES, 2012, 28).
Portanto, apesar do estabelecido na ideia do princípio da autonomia da vontade e definido pela CF/88 (art. 5º, II) são necessárias restrições impostas ao mesmo, por não ser absoluto, pois: a) não se pode contratar o que for contrário à lei, à ordem pública e aos bons costumes; b) em determinadas situações – monopólios estatais, por exemplo – não se pode escolher o outro contratante; e c) nos contratos de adesão não é possível exigir alterações específicas. E estes são aspectos que serão analisados neste breve artigo.
Limites acerca do princípio da Autonomia da Vontade
Parte-se da premissa que o tal princípio nasce de ideais iluministas liberais, onde reside uma redução (ou quase inexistência) de intervenção, e do equilíbrio entre os sujeitos envolvidos no ato jurídico e na negociação entre as partes. Este, em conjunto com o princípio da força obrigatória, foi a base indispensável para a segurança dos contratos e, a partir deles, da enorme geração de riqueza ocorrida a partir do século XIX.
Entretanto, percebe-se que o equilíbrio de forças numa relação contratual, nem sempre, é verdadeiro, sendo necessário proteger a parte mais fraca. Por isso, o brocardo pacta sunt servanda do qual derivaram os princípios da autonomia da vontade e da força obrigatória do contrato, embora não derrogado, foi afetado tanto pelo intervencionismo estatal, que limita a autonomia ao buscar a prevalência do interesse social sobre o interesse das partes, quanto pela teoria da imprevisão, que corrói o pilar da força obrigatória.
No tocante de intervenção estatal, as restrições surgiriam na tentativa de assegurar maior igualdade de oportunidade no mercado e como tratamento protetivo às partes contratuais mais vulneráveis. Com isso, razões de justiça e equidade vieram a determinar a intervenção do Estado sobre as relações contratuais, o que ficou conhecido como dirigismo contratual. Trata-se da inserção, no ordenamento jurídico, de uma série de normas que delimitam os assuntos sobre os quais se pode contratar, em que limites se pode dispor de determinados direitos, e que cláusulas serão consideradas intrinsecamente abusivas e, consequentemente, nulas.
Com o Estado intervencionista delineado pela Constituição de 1988 teremos, então, a presença do Poder Público interferindo nas relações contratuais, definindo limites, diminuindo os riscos do insucesso e protegendo camadas da população que, mercê daquela igualdade aparente e formal, ficavam à margem de todo o processo de desenvolvimento econômico, em situação de ostensiva desvantagem (TEPEDINO, 2001, p. 204).
Mesmo o princípio não sendo absoluto e sofrendo este tipo de intervenção segue-se atrelado à função social do contrato, conforme disposto no art. 421, CC: “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato” (BRASIL, 2002).
Segundo Gonçalves,
[...] a função social do contrato serve precipuamente para limitar a autonomia da vontade quando tal autonomia esteja em confronto com o interesse social e este deva prevalecer, ainda que essa limitação possa atingir a própria liberdade de não contratar, como ocorre nas hipóteses de contrato obrigatório (GONÇALVES, 2012, 28).
Assim, a função social questiona a concepção clássica de que tudo é possível para os contratantes respaldados no exercício da autonomia da vontade.
Outro aspecto que deve ser levado em consideração que marca o princípio da autonomia das vontades é a formação dos contratos atípicos, encontrado no art. 425 do CC, que não seguem os modelos de contratos típicos. Que prevê que “é lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código” (BRASIL, 2002).
Para tornar ilustrativa a coexistência do princípio da autonomia da vontade e a função social do contrato, vê-se o art. 52 da lei de locações (Lei nº 8245/91) sobre a prática dos contratos de locação.
Art. 52. O locador não estará obrigado a renovar o contrato se: (...) II - o imóvel vier a ser utilizado por ele próprio ou para transferência de fundo de comércio existente há mais de um ano, sendo detentor da maioria do capital o locador, seu cônjuge, ascendente ou descendente. §1º - Na hipótese do inciso II, o imóvel não poderá ser destinado ao uso do mesmo ramo do locatário, salvo se a locação também envolvia o fundo de comércio, com as instalações e pertences (BRASIL, 1991).
Aqui se tem um exemplo dos limites impostos ao direito de retomada do imóvel por parte do locador para uso próprio. Coelho (2000) demonstra que este tipo de conflito é de interesse privado entre o locatário e o direito de propriedade do locador: “Quando o direito de propriedade do locador entra em conflito com o direito de inerência a ponto do locatário, está em oposição uma simples oposição de interesses privados, individuais (COELHO, 2000, p. 103)”. Assim, é possível dizer que ocorre uma lacuna no princípio da autonomia da vontade cedendo espaço a norma constante da lei, colocando um interesse acima de outro.
Ao afirmar que o dispositivo que veda o restabelecimento do locador no negócio desenvolvido pelo locatário, o legislador não confronta o direito de propriedade, mas o funcionaliza. Nesse sentido, o artigo tutela não apenas a função social da propriedade, mas também a função social do contrato de locação, que se transforma em incentivo para que locatários desenvolvam cada vez melhores negócios, seguros de que não sofrerão a retomada do imóvel sob o argumento de uso próprio para que o locador venha a se aproveitar o trabalho realizado no ponto.
Já a teoria da imprevisão torna possível e pertinente a resolução ou revisão do contrato quando da ocorrência de fatos novos e imprevisíveis às partes, sem que tenham contribuído para a ocorrência e que sejam – tais fatos – impactantes o suficiente para trazer consequências na base econômica ou na execução do contrato.
Teoria intimamente ligada com o princípio da boa-fé objetiva, esta se mostra adequada aos contratos de execução continuada, de trato sucessivo ou de execução diferida, sendo impertinente aos contratos de execução imediata. Mas, como exemplo podemos apontar o art. 6º, V, do CDC que traz a previsão de será possível ao consumidor pleitear a revisão do contrato, se circunstância superveniente desequilibrar a base objetiva do contrato, impondo-lhe prestação excessivamente onerosa. Percebe-se que não há alusão à imprevisibilidade como condição, razão pela qual alguns doutrinadores optam por se referir à 'teoria da onerosidade excessiva'.
E, por fim, existem os contratos de adesão que são instrumentos muito adotados nas relações de consumo. São elaborados, geralmente por uma das partes (proponente) e são usados no dia a dia das relações de consumo, pois já estão em modelos prontos para garantir a agilidade e execução dos negócios. Quanto a natureza jurídica do contrato de adesão temos duas teorias. A primeira diz que é um negócio unilateral, esta ideia baseia-se justamente no motivo de que não existe liberdade contratual e as cláusulas são impostas por uma das partes, já a segunda teoria afirma que a natureza jurídica é contratual, por sua manifestação de vontade, esta é a teoria dominante na doutrina e nos tribunais.
Segundo o artigo 54 do CDC, o “contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo” (BRASIL, 1990).
Neste tipo de acordo, o proponente oferece já pronto o contrato, com anterioridade na elaboração de todas as cláusulas, assim existe a preponderância da vontade de um dos contratantes, restando à parte aderente apenas preencher as lacunas do contrato e formalidades legais para que, desta forma, torne aquele contrato válido, existente e efetivo. Isto é, o que contrata o produto ou serviço em questão, apenas demonstra anuência ou não sobre aquilo que já foi estabelecido, não podendo modificá-lo.
Desta maneira, o aderente fica impedido de realizar qualquer modificação ou negociação nos termos e condições pré-estabelecidas no contrato. Por conta disto, pode-se observar uma limitação do já consagrado princípio contratual da autonomia da vontade das partes, no que concerne ao conteúdo do contrato.
Além disso, com o decorrer do tempo percebeu-se arbitrariedades por parte dos contratantes, lesando o consumidor. Por isso, surgem leis, como o CDC, para proteger o consumidor nas relações de consumo, pois neste caso não há situação de igualdade, o consumidor é hipossuficiente, tanto economicamente como em conhecimento técnico, devendo ser protegido nas relações contratuais. Assim, a possibilidade de revisão nos contratos de adesão pelo judiciário, quando ocasionar em prestações desproporcionais, não fere o princípio da autonomia da vontade, podendo, para tanto, ser relativizado para que se restabeleça o equilíbrio da relação contratual.
Conclusão
Os limites ao princípio da autonomia são essenciais para manter condições igualitárias, livres e equilibradas nas relações contratuais. A partir do desenvolvimento da humanidade, ocorreu a necessidade da norma jurídica se adaptar, assim, os limites da autonomia dos contratos, atualmente, levam em consideração tanto questões do individual quanto coletiva, se preocupando, também, com as consequências do contrato para a sociedade.
Os abusos pelo individualismo nos contratos, respaldados pela autonomia da vontade, podem ser sanados pela função social do contrato, que busca evitar que os contratos sejam abusivos, causando prejuízo a partes mais frágil, e pela teoria da imprevisão, que possibilita a resolução ou revisão do contrato quando ocorrem novos fatos imprevisíveis às partes, sem que tenham participado para tal ocorrência.
Cabe destacar que a liberdade contratual nas negociações é indispensável, no entanto, às limitações, no sentido de impedir convenções contrárias à moral, à ordem pública e aos bons costumes, não devem estar sob a vontade das partes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm. Acesso em: 26 jul. 2021.
______. Lei nº. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8078.htm. Acesso em: 26 jul. 2021.
________. Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991. Dispõe sobre as locações dos imóveis urbanos e os procedimentos a elas pertinentes. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8245.htm. Acesso em: 26 jul. 2021.
______. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002.
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, v. I. São Paulo, Saraiva, 4ªed., 2000.
______, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil, 3: contratos São Paulo : Saraiva, 2012.
Gonçalves, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 3: contratos e atos unilaterais. São Paulo : Saraiva, 2012.
TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 2a edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.