HOUVE CRIME DE CHARLATANISMO DA PARTE DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA?

12/08/2021 às 13:07
Leia nesta página:

O ARTIGO DISCUTE SOBRE O CRIME DE CHARLATANISMO E DO CURANDEIRISMO À LUZ DA DOUTRINA PÁTRIA.

HOUVE CRIME DE CHARLATANISMO DA PARTE DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA? 

Rogério Tadeu Romano  

 

I – OS FATOS  

 

Segundo o Poder 360, o senador Humberto Costa (PT-PE) afirmou nesta 4ª feira (11.ago.2021) que o relator da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Covid no Senado, Renan Calheiros (MDB-AL), recomendará em seu parecer final o indiciamento do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) pelos crimes de curandeirismo e charlatanismo.  

Ainda conforme o Estadão, em 11 de agosto do corrente ano, na avaliação da CPI, Bolsonaro foi o principal “garoto-propaganda” de medicamentos como a ivermectina e a cloroquina durante a pandemia, disseminando informações falsas à população e levando pessoas à morte.  

A cloroquina é um medicamento indicado contra malária e doenças autoimunes. Bolsonaro também já quis mudar a bula do remédio para incluir a indicação contra covid-19, mas não obteve sucesso na empreitada. No ano passado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou “fortemente” que a substância não fosse usada para esse fim, pois não apresentava eficácia no tratamento para coronavírus. 

Há o crime de charlatanismo.  

Sobre o tema fático já disse o Partido Democrático Trabalhista(PDT), em representação criminal, ao STF que:  

“É fato inconteste que desde o período crítico da pandemia o Excelentíssimo Senhor Presidente da República professa a utilização da cloroquina como panaceia para conter e disseminar a doença causada pelo novo coronavírus. Para além desse medicamento, o Governo Federal também passou a indicar de forma indiscriminada o uso de azitromicina e ivermectina. No que toca especificamente à cloroquina, o Senhor Jair Messias Bolsonaro mobilizou todo o aparato estatal para que a distribuição do medicamento virasse uma política de governo. Era necessário amainar a desídia e o comportamento ignóbil do Senhor Jair Messias Bolsonaro na condução do país durante o caos pandêmico.

No entanto, são inúmeros os estudos que dão conta da ineficácia da cloroquina no combate ao coronavírus. Cite-se, por exemplo, que em trabalho publicado no The New England Journal of Medicine, assinado por 35 (trinta e cinco) médicos, aportou-se à conclusão sobre a ineficácia do tratamento com cloroquina, pois não trazia benefícios como antiviral. O medicamento também foi testado contra outras infecções, como ebola, H1N1 e outros vírus, tudo sem sucesso. O que a ciência comprova é que o tratamento
com a cloroquina está associado com o aumento das mortes de pacientes com COVID-19. Inclusive, é de bom alvitre registrar que a agência que regula o uso de medicamentos dos Estados Unidos (FDA) revogou, em 15 (quinze) de junho de 2020, a autorização emergencial que previa uso de cloroquina e hidroxicloroquina de forma oral para o tratamento da COVID-A FDA baseou-se nas evidências que mostram que não
há provas de que o uso do medicamento é eficiente para tratar as complicações respiratórias decorrentes da COVID-19.” 

E continuou o PDT, em sua digressão, na representação criminal enviada ao STF:

“Mesmo diante do amplo espectros de estudos realizados, o Senhor Jair Messias Bolsonaro insiste na prescrição da cloroquina como panaceia para todos os males advindos da COVID-19, com realização de lives semanais e aparelhamento do Estado para a fabricação e difusão do medicamento. Rememora-se, no ponto, que o Governo Federal e as Forças Armadas distribuíram 2,8 milhões de comprimidos de cloroquina produzidos pelos laboratórios do Exército e da Marinha à população de todos os estados brasileiros. De acordo com documentos obtidos pela “Agência Pública”, “o Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército (LQFEx) e o Laboratório Farmacêutico da Marinha (LFM) produziram ao todo 3,2 milhões de comprimidos de cloroquina em 2020. Antes da pandemia, o LQFEx produzia 250 mil comprimidos a cada dois anos para o combate à malária”. 

Muitos ganharam dinheiro em propaganda, prescrição e exibição desses medicamentos que comprovadamente não curam o mal da covid-19.  

Esse é o fato.  

II – O CHARLATANISMO  

Prevê o artigo 283 do Código Penal:  

Art. 283 - Inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível: 

Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa. 

Trata-se de um crime de menor potencial ofensivo onde se prevê transação e sursis processual e proposta de acordo de não persecução penal. Na lição de Celso Delmanto e outros(Código Penal Comentado, 6ª edição, pág. 563), cabe o sursis processual mesmo que resulte lesão corporal grave ou morte(artigo 76 da Lei nº 9.099/95).  

Inculcar significa apregoar ou dar a entender; anunciar quer dizer divulgar ou fazer saber. O objeto das condutas é a cura por meio secreto ou infalível. Tem-se, como disse Guilherme de Souza Nucci(Código Penal Comentado, 8ª edição, pág. 979), por fim punir aquele que, sendo médico ou não, se promove à custa de métodos questionáveis e perigosos de curar pessoas, de maneira oculta ou ignorada do paciente e do poder público, além de divulgar mecanismos inverídicos de cura de enfermidade.  

Para Heleno Cláudio Fragoso(Lições de Direito Penal, parte especial, 1965, volume III, pág. 915) é mister que  haja insinceridade e falsidade da parte do agente.  

Para Magalhães Noronha(Direito Penal, 1995, volume IV, pág. 65) que não se trate de um convicto, ou seja,, que sabia não ter eficácia o que proclama e anuncia.  

Como ensinou Flamínio Fávero(Medicina Legal, páginas 41 e 42), charlatanismo é “inculcar ou anunciar cura por meio secreto e infalível. No segredo e a infabilidade estão os pontos fundamentais do ilícito moral e legal, porque a medicina não pode agir por meios secretos, devendo ser franca e leal em sua atuação e também porque nunca pode pretender a infabilidade”.  

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

O crime exige o dolo de perigo, genérico, a vontade de gerar um risco não tolerado a terceiros. Ainda Guilherme de Souza Nucci(obra citada, pág. 980), ao contrário de outros autores, não vê necessidade de se exigir do agente que saiba que o seu método não é infalível ou ineficaz. A vontade deve pautar-se em divulgar a cura por método infalível, creia nisso ou não.  

Cura é o restabelecimento da saúde de alguém.  

Meio é o recurso utilizado para atingir um determinado objetivo, que seria a cura do doente, para o caso. Secreto é meio oculto ou ignorado pelo paciente.  

O crime é comum(qualquer pessoa pode praticá-lo), formal, comissivo, excepcionalmente omissivo impróprio.  

Como lecionou Heleno Cláudio Fragoso(Lições de Direito Penal, volume II, parte especial, 5ª edição, pág. 267) o crime consuma-se com a simples ação de inculcar ou anunciar, sem que seja necessária a habitualidade ou qualquer outro resultado.  

Esse crime pode concorrer com o estelionato.  

A ação penal é incondicionada.  

III – O CURANDEIRISMO  

De outra parte tem-se o curandeirismo, que é um crime de ação múltipla.  

A esse respeito trago à colação o artigo 284 do Código Penal:  

Art. 284 - Exercer o curandeirismo: 

I - prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer substância; 

II - usando gestos, palavras ou qualquer outro meio; 

III - fazendo diagnósticos: 

Pena - detenção, de seis meses a dois anos. 

Parágrafo único - Se o crime é praticado mediante remuneração, o agente fica também sujeito à multa. 

Ainda é crime de menor potencial ofensivo em que cabem o sursis processual e a transação, além de acordo de não persecução penal.  

O Código Penal de 1890, em seu artigo 158, já prescrita tal delito na proteção do exercício de profissões sanitárias.  

O curandeiro, geralmente, é pessoa ignorante, rude, sem qualquer conhecimento da medicina, como ainda informou Heleno Cláudio Fragoso(obra citada, pág. 269).  

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, porém, não o médico, nem a pessoa que tenha conhecimentos médicos embora não legalmente habilitada.  

Trata-se de crime habitual.  

O tipo subjetivo é o dolo genérico.  

O dolo é o de perigo, o dolo específico.  

Curandeirismo é a atividade desempenhada pela pessoa que promova curas, sem qualquer título ou habilitação.  

Sabe-se que é muito comum em atividades religiosas, envolvendo a crença do paciente as chamadas cirurgias espirituais. Entretanto, se o ofendido morrer ou sofrer lesões corporais graves, o agente deve ser responsabilizado. Aí se insere a questão da chamada liberdade religiosa. Assim se a cura apregoada era pedida comunitariamente, através de orações, pura questão de fé, não se configura o delito(TACrSP, RT 458/425). Há crime se comprovada a habitualidade com que o acusado ministra “passes” e obriga adultos e menores a ingerir sangue de animais e bebida alcóolica, colocando em perigo a saúde e levando adolescentes à dependência de álcool(REsp 50.426, DJU de 29 de agosto de 1994, pág. 22.211).  

Trata-se de crime comum, habitual, de perigo comum abstrato, unisubjetivo, plurissubsistente.   

IV – CONCLUSÃO  

Penso, no entanto, que melhor se adequa a conduta noticiada ao tipo previsto no artigo 283 do Código Penal para o caso.  

Na matéria já existe uma representação, como noticiado, apresentado pelo PDT. Com isso, poderá o titular da ação penal, o Ministério Público Federal, através da PGR, que atua perante o STF, na tutela criminal, ter mais elementos para a análise a partir de um relatório da CPI da COvid-19 sobre o caso.   

 

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos