RESUMO: Em decisão por maioria de votos, o STF – Supremo Tribunal Federal, sob a presidência do Ministro Dias Toffoli, entendeu que em processo criminal com multiplicidade de réus, havendo réu delator este deve se manifestar antes de réu delatado. A decisão do STF apresenta elevado caráter inovador para o ordenamento jurídico brasileiro, encontrando-se na fronteira entre mutação constitucional e atividade legislativa positiva pelo Poder Judiciário. Tal fato pode representar mácula ao princípio da separação de Poderes que consiste em cláusula constitucional pétrea inscrita no artigo 60, § 4º, III da atual Constituição Federal brasileira de 1988, configurando indevida usurpação de competência do Poder Legislativo pelo Poder Judiciário. Também traz o temor de anulação de atos posteriores à instrução ou mesmo de sentenças já transitadas em julgado, trazendo a impunidade em razão de possível efeito erga omnes e retroativo da decisão do STF. Assim, não se pode ignorar a necessidade da pesquisa que verificou a constitucionalidade desta decisão do STF, confrontando-a, dentre outros, com o princípio do devido processo legal e seus corolários da ampla defesa e do contraditório. Para a realização da pesquisa foi utilizada como metodologia a revisão bibliográfica.
1. INTRODUÇÃO
O atual Código de Processo Penal brasileiro – CPP, em seu artigo 403 cuida das alegações finais, determinando que as mesmas podem ser orais ou por escrito, mas sempre oferecidas em primeiro pela acusação e na sequencia pela defesa. A inversão das partes acarreta a nulidade do ato em razão do ferimento dos princípios do contraditório e ampla defesa.
O CPP não trata, porém, da possibilidade de algum dos acusados estar recebendo benefícios em razão de estar colaborando com a acusação, ou seja, se este acusado deve se manifestar necessariamente antes dos demais acusados e, caso não ocorra assim, se o ato pode ser anulado por configurar cerceamento de defesa.
O instrumento da colaboração premiada passou a integrar o ordenamento jurídico brasileiro com a Lei dos Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional, Lei n. 7.492/1986, e atualmente pode-se encontrá-lo também na Lei que define os Crimes Contra a Ordem Tributária, Econômica e Contra as Relações de Consumo, Lei n. 8.137/1990; Lei de Lavagem de Capitais, Lei n. 9.613/1998; Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas, Lei n. 9.807/1999; Lei Antitóxicos, Lei n. 11.343/2006; e a Lei do Crime Organizado, Lei n. 12.850/2013.
O questionamento quanto a ordem das alegações finais chegou ao Supremo Tribunal Federal – STF com o Habeas Corpus n. 166.373/PR, que teve como Relator o Ministro Edson Fachin, que remeteu ao Plenário o julgamento e, por maioria de votos ficou decidido que é direito dos delatados apresentarem suas alegações finais depois das dos réus que fizeram acordo de colaboração premiada.
A decisão do Plenário do STF criou regra que não se encontra na legislação e trouxe o temor de anulação de atos processuais posteriores à instrução, em ações já em grau de recurso ou com sentença transitada em julgado, tendo a decisão do STF efeito erga omnes e retroativo, acarretando impunidade generalizada.
Assim, o presente artigo tem por objetivo verificar a constitucionalidade da decisão do STF que entendeu haver nulidade em processo criminal com multiplicidade de réus quando, havendo réu delator, este não houver se manifestado antes de réu delatado.
Ainda, analisar a decisão do STF em cotejo com o princípio do devido processo legal e seus corolários da ampla defesa e contraditório, verificar a natureza da decisão do STF, se se trata de mutação constitucional ou atividade legislativa, determinar se houve ofensa ao princípio da separação de Poderes e os possíveis efeitos retroativo e erga omnes, que possivelmente pode acarretar impunidade penal.
A metodologia utilizada para a realização deste artigo científico foi a revisão de literatura.
2. O INSTITUTO DA COLABORAÇÃO PREMIADA
No cenário nacional, o reconhecimento quanto a ineficiência dos métodos investigativos tradicionais e, consequentemente, quanto a necessidade da colaboração premiada, está correlacionado ao aumento da criminalidade organizada a partir dos anos 90. Posto isso, o Poder Legislativo revolucionou o ordenamento jurídico brasileiro, trazendo uma série de leis especiais que dispusessem sobre o instituto da colaboração premiada, diferenciando-se estas quanto aos objetivos e benefícios provenientes da delação.
Renato Brasileiro de Lima (2020, p. 866) define a colaboração premiada como tipo de direito premial pautado numa técnica especial de investigação na qual:
[...] o coautor e/ou partícipe da infração penal, além de confessar seu envolvimento no fato delituoso, fornece aos órgãos responsáveis pela persecução penal informações [...] eficazes para a consecução de um dos objetivos previstos em lei, recebendo, em contrapartida, determinado prêmio legal.
A Lei dos Crimes Hediondos (Lei n. 8.072/90) foi a primeira legislação a ter abarcado expressamente a colaboração premiada, cujo artigo 8º, parágrafo único, dispõe que “o participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou a quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá pena reduzida de um a dois terços” (BRASIL, 1990).
Entretanto, a aplicabilidade do supracitado dispositivo não requer meramente um concurso eventual de agentes, mas a existência de associação permanente nos crimes taxativamente por ele elencados, sendo a delação realizada por um de seus integrantes, objetivando a identificação dos coautores e partícipes do delito para a posterior dissolução da quadrilha criminosa.
Visivelmente, a partir desta Lei houve a formação de um critério estável para que a premiação da colaboração ocorresse: a relação proporcional de favores pelo interesse do Estado, isto é, a utilidade do resultado em contraposição ao favor judicial (CORDEIRO, 2019).
Ainda, a Lei n. 8.072/90 incluiu o § 4º ao artigo 159 do Código Penal, que dispôs: “Se o crime é cometido por quadrilha ou bando, o coautor que denunciá-lo à autoridade, facilitando a libertação do sequestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços” (BRASIL, 1940).
Pelo fato de ser crime em que o risco à vítima é predominante, bem como o interesse no resgate da mesma, a referida lei não exigiu por resultado o desmantelamento da associação, mas tão somente a cooperação na busca da libertação do sequestrado. Todavia, o seu texto foi alvo de debates na doutrina e jurisprudência quanto à relevância do requisito de ter sido cometido por quadrilha ou bando, ou seja, a presença de no mínimo quatro pessoas para a colaboração premiada ser possível.
Tal controvérsia chegou ao fim em 1996, com a alteração do dispositivo pela Lei n. 9.269, que determinou: “se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar à autoridade, facilitando a libertação do sequestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços” (BRASIL, 1996).
Seguindo a mesma lógica, houve previsão legal da colaboração premiada na Lei n. 9.034/95, atualmente revogada pela Lei n. 12.850/13, Lei do Crime Organizado, na redação do art. 4º:
Art. 4º O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados: [...].
Nesse caso, porém, o resultado exigido para a concessão do prêmio é mais extenso, não se limitando a uma única ocorrência. A Lei do Crime Organizado exige para a concessão do benefício:
I – a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas;
II – a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;
III – a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa;
IV – a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa;
V – a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada.
Nesta tendência criminalizante dos danos coletivos, logo veio a Lei n. 9.080/95, cujos artigos 1º e 2º introduziram modificações na Lei que define os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei n. 7.492/86) e no diploma legal que define os crimes contra a Ordem Tributária, Econômica e contra as Relações de Consumo (Lei n. 8.137/90).
A Lei n. 7.492/86 passou a dispor em seu artigo 25, § 2º, e a Lei n. 8.137/90, em seu artigo 16, parágrafo único, a seguinte regra:
Nos crimes previstos nesta Lei, cometidos em quadrilha ou co-autoria, o co-autor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a dois terço.
Cabe ressalva ao fato de que, mesmo com a revelação não efetivando a sanção dos corréus, ou recuperando o produto do crime, o prêmio legal torna-se formalmente adquirido com o pleno apontamento feito pelo confitente, diferente do exigido na Lei do Crime Organizado.
Nos casos onde a norma exige a revelação de todo conluio, o agente não será beneficiado se informou a totalidade do que sabe, mas ainda assim é insuficiente para a composição da cadeia de fatos e agentes envolvidos.
Com vigência a partir de 4 de março de 1998, de forma semelhante à Lei do Crime Organizado, a colaboração premiada é prevista no artigo 1º, § 5º da Lei de Lavagem de Capitais, Lei n. 9.613/98, alterado pela Lei n. 12.683/12:
A pena poderá ser reduzida de um a dois terços e ser cumprida em regime aberto ou semiaberto, facultando-se ao juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la, a qualquer tempo, por pena restritiva de direitos, se o autor, coautor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais, à identificação dos autores, coautores e partícipes, ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime.
Observamos que, pela primeira vez, foi instituído como benefício não unicamente a diminuição da pena, mas uma série de outros incentivos ao réu delator. Ademais, em se tratando de crime de lavagem de dinheiro é natural que a recuperação dos valores seja um aspecto indispensável para a persecução, pois além de auxiliar a prova do delito, causa prejuízo significativo à organização criminosa pela perda de seu capital, beneficiando, por outro lado o interesse social na compensação dos danos provenientes da conduta delituosa.
Mas uma das principais mudanças feitas pela Lei das Organizações Criminosas foi a mudança da nomenclatura, enquanto antes era chamada de delação premiada, a nova legislação preferiu chamá-la de colaboração premiada. Embora muitos acreditem serem termos sinônimos, há uma diferença entre eles. De acordo com Renato Brasileiro de Lima (2020), a delação premiada existe quando o acusado assume a culpa e delata outras pessoas, ou seja, ocorre chamamento de corréu; já a colaboração premiada, segundo o autor, ocorre quando o imputado assume a culpa sem incriminar terceiros, de modo a fornecer informações do crime.
Contudo, a maior inovação está ligada à uma legislação mais detalhada. A Lei 12.850/2013 procurou definir organização criminosa, detalhar os instrumentos especiais de investigação, bem como estabelecer procedimentos e delimitar as funções de cada envolvido no procedimento, como a polícia, o Ministério Público, juízes, advogados e os colaboradores (CORREIA; OLIVEIRA, 2016).
Prosseguindo na ordem cronológica, sobre a Lei de Proteção às Testemunhas e Vítimas de Crimes, Lei n. 9.807/99, pontuou o jurista Renato Brasileiro de Lima (p. 875, 2020) que:
[...] por não ter seu âmbito de aplicação restrito a determinado(s) delito(s), representou verdadeira democratização do instituto da colaboração premiada no ordenamento jurídico pátrio, possibilitando sua aplicação a qualquer delito, além de organizar um sistema oficial de proteção aos colaboradores.
De fato, todos os dispositivos anteriores que definiam a colaboração premiada possibilitavam sua aplicação apenas a crimes específicos, com exceção à Lei n. 9.034/95, Lei do Crime Organizado, que se referia amplamente a delitos praticados por organização criminosa.
O artigo 13 da Lei 9.807/99 discorre que o magistrado poderá:
[...] de ofício ou a requerimento das partes, conceder o perdão judicial e a conseqüente extinção da punibilidade ao acusado que, sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração tenha resultado:
I - a identificação dos demais co-autores ou partícipes da ação criminosa;
II - a localização da vítima com a sua integridade física preservada;
III - a recuperação total ou parcial do produto do crime.
Assim, desde que a colaboração atinja certos resultados, o juiz deverá avaliar a personalidade do beneficiado e a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso, para conceder o perdão judicial.
Ainda, mesmo que o artigo atribua o prêmio ao “acusado”, predomina o entendimento de que o indiciado possui também o direito, possibilitando, dessa forma, a concessão do benefício até mesmo na fase das investigações preliminares.
Há previsão de colaboração, semelhantemente, na nova Lei de Drogas, Lei n. 11.343/06, em seu artigo 41, caput, com a seguinte redação:
O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um terço a dois terços.
É notório, em tal situação, que a incidência da colaboração premiada apenas é possível quando, na prática de qualquer dos crimes previstos na Lei nº 11.343/06, o agente cometer a conduta em concurso de pessoas.
Ainda, muito embora a delação premiada seja, obviamente precedida da confissão espontânea do delito pelo réu, a colaboração dirige-se à identificação dos demais coautores e partícipes do crime, bem como à recuperação total ou parcial do seu produto, enquanto a atenuante da confissão espontânea constitui o reconhecimento da autoria do delito, onde o agente admite contra si, voluntária, expressa e pessoalmente, a prática do fato criminoso.
Nos termos do artigo 65, inciso III, alínea “d”, do Código Penal, a confissão espontânea é circunstância que sempre atenua a pena, sendo aplicada na segunda fase do processo de individualização da pena, enquanto a delação premiada, como causa de diminuição de pena, é considerada na terceira fase. Sendo assim, além de reduzir de um terço a dois terços a pena, a colaboração premiada poderá ser aplicada conjuntamente com a atenuante da confissão.
Nesse seguimento, a Lei n. 12.529/11, que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, consoante disposto nos artigos 86 e 87, trouxe o fenômeno do acordo de leniência, podendo este ser celebrado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), com pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica, desde que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo e que dessa colaboração resulte:
I - a identificação dos demais envolvidos na infração; e
II - a obtenção de informações e documentos que comprovem a infração noticiada ou sob investigação (artigo 86, incisos I e II).
Mas estabelece também o parágrafo primeiro do mesmo artigo que o acordo de leniência somente poderá ser celebrado quando forem preenchidos, cumulativamente, outros requisitos, quais sejam:
I - a empresa seja a primeira a se qualificar com respeito à infração noticiada ou sob investigação;
II - a empresa cesse completamente seu envolvimento na infração noticiada ou sob investigação a partir da data de propositura do acordo;
III - a Superintendência-Geral não disponha de provas suficientes para assegurar a condenação da empresa ou pessoa física por ocasião da propositura do acordo; e
IV - a empresa confesse sua participação no ilícito e coopere plena e permanentemente com as investigações e o processo administrativo, comparecendo, sob suas expensas, sempre que solicitada, a todos os atos processuais, até seu encerramento.
No que concerne aos efeitos penais e processuais penais oriundos do acordo, o artigo 87 da Lei nº 12.529/11 merece especial atenção, pois passou a prever que, nos crimes contra a ordem econômica, tipificados na Lei nº 8.137/90 (Lei que define os Crimes Contra a Ordem Tributária, Econômica e Contra as Relações de Consumo) e nos demais crimes diretamente relacionados à prática de cartel, tais como os tipificados na Lei nº 8.666/93 (Lei de Licitações e Contratos) e os tipificados no artigo 288 do Código Penal, a celebração de acordo de leniência determina a suspensão do curso do prazo prescricional e impede o oferecimento da denúncia com relação ao agente beneficiário da leniência.
Além disso, o parágrafo único do mesmo artigo determina que o acordo de leniência feito pelo agente, extingue automaticamente a punibilidade dos delitos mencionados. Por essa razão, o acordo de leniência ficou taxado como acordo de doçura.
Art. 87. Nos crimes contra a ordem econômica, tipificados na Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990 , e nos demais crimes diretamente relacionados à prática de cartel, tais como os tipificados na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, e os tipificados no art. 288 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, a celebração de acordo de leniência, nos termos desta Lei, determina a suspensão do curso do prazo prescricional e impede o oferecimento da denúncia com relação ao agente beneficiário da leniência.
Com vigência a partir 29 de janeiro de 2014, a Lei Anticorrupção Empresarial, Lei n. 12.846/13, foi o último instituto a ter evidenciado uma espécie de colaboração, antes da nova Lei de Organização Criminosa, Lei n. 12.850/13, com a redação dada pela Lei n. 13.964/19.
A Lei Anticorrupção Empresarial prevê em seu artigo 16, a possibilidade de celebração de acordo de leniência, entretanto com reflexos exclusivamente administrativos. Também, o art. 17 discorre sobre a possibilidade da Administração pública celebrar acordo de leniência com a pessoa jurídica responsável pela prática de ilícitos previstos na Lei de Licitações e Contratos, Lei n. 8.666/93, com vistas à isenção ou atenuação das sanções administrativas estabelecidas em seus artigos 86 a 88.
Art. 16. A autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública poderá celebrar acordo de leniência com as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos previstos nesta Lei que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo, sendo que dessa colaboração resulte:
I - a identificação dos demais envolvidos na infração, quando couber; e
II - a obtenção célere de informações e documentos que comprovem o ilícito sob apuração.
§ 1º O acordo de que trata o caput somente poderá ser celebrado se preenchidos, cumulativamente, os seguintes requisitos:
I - a pessoa jurídica seja a primeira a se manifestar sobre seu interesse em cooperar para a apuração do ato ilícito;
II - a pessoa jurídica cesse completamente seu envolvimento na infração investigada a partir da data de propositura do acordo;
III - a pessoa jurídica admita sua participação no ilícito e coopere plena e permanentemente com as investigações e o processo administrativo, comparecendo, sob suas expensas, sempre que solicitada, a todos os atos processuais, até seu encerramento.
2º A celebração do acordo de leniência isentará a pessoa jurídica das sanções previstas no inciso II do art. 6º e no inciso IV do art. 19 e reduzirá em até 2/3 (dois terços) o valor da multa aplicável.
§ 3º O acordo de leniência não exime a pessoa jurídica da obrigação de reparar integralmente o dano causado.
§ 4º O acordo de leniência estipulará as condições necessárias para assegurar a efetividade da colaboração e o resultado útil do processo.
§ 5º Os efeitos do acordo de leniência serão estendidos às pessoas jurídicas que integram o mesmo grupo econômico, de fato e de direito, desde que firmem o acordo em conjunto, respeitadas as condições nele estabelecidas.
§ 6º A proposta de acordo de leniência somente se tornará pública após a efetivação do respectivo acordo, salvo no interesse das investigações e do processo administrativo.
§ 7º Não importará em reconhecimento da prática do ato ilícito investigado a proposta de acordo de leniência rejeitada.
§ 8º Em caso de descumprimento do acordo de leniência, a pessoa jurídica ficará impedida de celebrar novo acordo pelo prazo de 3 (três) anos contados do conhecimento pela administração pública do referido descumprimento.
§ 9º A celebração do acordo de leniência interrompe o prazo prescricional dos atos ilícitos previstos nesta Lei.
§ 10. A Controladoria-Geral da União - CGU é o órgão competente para celebrar os acordos de leniência no âmbito do Poder Executivo federal, bem como no caso de atos lesivos praticados contra a administração pública estrangeira.
Art. 17. A administração pública poderá também celebrar acordo de leniência com a pessoa jurídica responsável pela prática de ilícitos previstos na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, com vistas à isenção ou atenuação das sanções administrativas estabelecidas em seus arts. 86 a 88.
Somente com as alterações trazidas pela Lei n. 13.964/19 foi construída a regra que obriga o réu delator manifestar-se antes dos réus delatados:
Art. 4º O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados:
§ 10-A Em todas as fases do processo, deve-se garantir ao réu delatado a oportunidade de manifestar-se após o decurso do prazo concedido ao réu que o delatou.
Assim, é de se notar que o instrumento da colaboração premiada não surgiu pronto do ordenamento jurídico brasileiro, sendo fruto da evolução histórica da legislação, impulsionada pela jurisprudência e doutrina, consolidando-se, atualmente, como instrumento de persecução penal, notadamente em relação a ilícitos danosos a interesses difusos e coletivos.
3. DA INSTRUÇÃO PROCESSUAL PENAL E A ORDEM DAS ALEGAÇÕES FINAIS
O procedimento de instrução processual penal historicamente passou por várias fases, partindo da autotutela ou justiça privada para o monopólio da prestação jurisdicional pelo Estado; e, da instrução processual inquisitiva para a instrução processual garantista.
No Brasil, a Constituição Política do Império do Brazil, de 25 de março de 1824, não fez previsão expressa de qualquer garantia processual constitucional, que somente surgiu no texto constitucional seguinte, da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891.
Com a Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926, o texto constitucional de 1891 determinou que aos acusados deveria se garantir a mais ampla defesa:
Art. 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes:
§ 16. Aos accusados se assegurara na lei a mais plena defesa, com todos os recursos e meios essenciaes a ella, desde a nota de culpa, entregue em 24 horas ao preso e assignada pela autoridade competente, com os nomes do accusador e das testemunhas.
A ordem constitucional posterior, estabelecida na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934, passou a fazer referência à ampla defesa como garantia processual constitucional:
Art 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
24) A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os meios e recursos essenciais a esta.
A próxima Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937, conhecida por constituição polaca em razão de sua orientação fascista, deixou de fazer menção expressa à garantia constitucional da ampla defesa, assegurando a defesa de direitos desde que não conflitantes com o interesse público, importando em severa involução normativa.
Art. 122 - A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
7º) o direito de representação ou petição perante as autoridades, em defesa de direitos ou do interesse geral;
Art. 123 - A especificação das garantias e direitos acima enumerados não exclui outras garantias e direitos, resultantes da forma de governo e dos princípios consignados na Constituição. O uso desses direitos e garantias terá por limite o bem público, as necessidades da defesa, do bem-estar, da paz e da ordem coletiva, bem como as exigências da segurança da Nação e do Estado em nome dela constituído e organizado nesta Constituição.
A Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946, restabeleceu a garantia processual constitucional da ampla defesa, introduzindo de forma expressa no texto constitucional a garantia do contraditório:
Art. 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
§ 25 - É assegurada aos acusados plena defesa, com todos os meios e recursos essenciais a ela, desde a nota de culpa, que, assinada pela autoridade competente, com os nomes do acusador e das testemunhas, será entregue ao preso dentro em vinte e quatro horas. A instrução criminal será contraditória.
Durante o período militar, surge a Constituição da República Federativa do Brasil de 1967, cujo texto foi alterado pela Emenda Constitucional n. 1 de 17 de outubro de 1969, mas que manteve a mesma redação quanto à garantia processual constitucional, tanto da ampla defesa quanto do contraditório:
Art. 150 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pais a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
§ 15 - A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os recursos a ela inerentes. Não haverá foro privilegiado nem Tribunais de exceção.
§ 16 - A instrução criminal será contraditória, observada a lei anterior quanto ao crime e à pena, salvo quando agravar a situação do réu.
A atual Constituição Federal brasileira de 1988, em seu artigo 5º, incisos LIV e LV, mantendo a tradição garantista, também trouxe expressos os princípios da ampla defesa e contraditório, acrescentando o princípio do devido processo legal:
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
Dentre as várias discussões decorrentes de tais princípios processuais constitucionais, ampla defesa e contraditório, garantindo-se o devido processo legal, tanto no aspecto formal quanto material, um que particularmente interessa a esse estudo é o da ordem de interrogatório e apresentação de alegações finais em ações penais com multiplicidade de acusados.
A inversão de atos processuais, com a manifestação prévia do acusado e suas testemunhas ao invés da vítima e testemunhas de acusação, importa em grave violação do devido processo legal e seus corolários da ampla defesa e contraditório, importando em cerceamento de defesa e nulidade dos atos processuais.
Quanto a isto, estabelece o Código de Processo Penal que as alegações finais devem ser apresentadas primeiro pela acusação e depois pela defesa:
Art. 403. Não havendo requerimento de diligências, ou sendo indeferido, serão oferecidas alegações finais orais por 20 (vinte) minutos, respectivamente, pela acusação e pela defesa, prorrogáveis por mais 10 (dez), proferindo o juiz, a seguir, sentença.
§ 1º Havendo mais de um acusado, o tempo previsto para a defesa de cada um será individual.
§ 2º Ao assistente do Ministério Público, após a manifestação desse, serão concedidos 10 (dez) minutos, prorrogando-se por igual período o tempo de manifestação da defesa.
3º O juiz poderá, considerada a complexidade do caso ou o número de acusados, conceder às partes o prazo de 5 (cinco) dias sucessivamente para a apresentação de memoriais. Nesse caso, terá o prazo de 10 (dez) dias para proferir a sentença.
No entanto, nada foi estipulado na Constituição atual, no Código de Processo Penal ou nas Leis que tratam da colaboração premiada, acerca da ordem de manifestação dos acusados, nos processuais com multiplicidade de réus, existindo a figura do delator.
3.1. Do Julgamento do Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus n. 166.373/PR
O Habeas Corpus n. 166.373, foi impetrado pelo ex-gerente de Empreendimentos da Petrobrás, Márcio de Almeida Ferreira, condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no âmbito da Operação Lava-Jato, no dia 02 de outubro de 2019.
O relator, Ministro Edson Fachin, remeteu o feito para o Plenário do Supremo Tribunal Federal, como forma de preservar a segurança jurídica e a estabilidade jurisprudencial do Tribunal, tendo a Corte, por maioria de votos, decidido que nas ações criminais nas quais se conta com réus colaboradores e réus não colaboradores, é direito dos delatados apresentarem suas alegações finais depois das dos réus que fizeram acordo de colaboração ou delação premiada.
Na votação venceu o entendimento de que, em razão do conflito de interesses entre réus colaboradores e não colaboradores, o prazo para apresentação de alegações finais deve ser concedido de forma sucessiva, manifestando-se primeiro o réu delator, assegurando-se aos réus não delatores o direito fundamental a ampla defesa e contraditório.
Porém, como tal decisão irá repercutir em diversos processos já transitados em julgado ou ainda sem decisão final, os Ministros decidiram que, em homenagem à garantia da segurança jurídica, definirão posteriormente tese que vinculará as instâncias judiciais inferiores. Tal tese ainda não foi construída pela Corte.
Márcio de Almeida Ferreira alegou que foi delatado e mesmo assim teve de apresentar suas alegações finais em prazo concomitante com os réus delatores.
Com a decisão, o STF anulou a condenação de Márcio de Almeida Ferreira e determinou que o processo retornasse à fase de alegações finais para que o acusado possa se manifestar após os réus delatores.
A Segunda Turma do STF já havia, em 27 de agosto de 2019, anulado a condenação do ex-presidente da Petrobras Aldemir Bendine, também em julgamento de Habeas Corpus impetrado sob os mesmos argumentos, decidindo que o prazo para apresentação de alegações finais concedido aos réus delatores e delatados foi concomitante, o que configurou constrangimento ilegal.
O Ministro Fachin negou o Habeas Corpus a Aldemir Bendine por não ter ficado provado constrangimento ou prejuízo ao contraditório em decorrência do prazo comum. As alegações do paciente quanto a ocorrência de constrangimento não apontaram prejuízo concreto e efetivo, mas apenas argumentação especulativa. Também, apontou que não existe no ordenamento jurídico brasileiro regra que determine precedência na ordem de apresentação de alegações finais dentre defensores na ocorrência de pluralidade de réus.
O ministro Marco Aurélio esclareceu em seu voto, afirmando que contraria a legislação penal determinar a apresentação de alegações finais com prazo diferente para delator e delatado, pois que a norma criminal prevê prazo comum a todos os réus. O réu, ou seu defensor, não pode atuar nos autos como assistente da acusação, assim, mesmo como delator, continua a figurar no polo passivo da ação penal e nunca no polo ativo.
No mesmo sentido decidiram os ministros Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Marco Aurélio.
Porém, o ministro Presidente do STF, Dias Toffoli, em seu voto dispôs que o colaborador, por se beneficiar do acordo de delação, deve se beneficiar após o delatado, pois, na prática, torna-se testemunha de acusação. Desta forma, somente irá se garantir plenamente o exercício do contraditório se o delator apresentar suas alegações finais antes do réu delatado, tornando possível contradizer todas as acusações que podem ocasionar uma sentença condenatória. Em relação às ações penais já terminadas, o réu delatado deve demonstrar efetivo prejuízo para a defesa para que o processo retorne à fase de alegações finais, caso contrário não há que se falar em dano a ampla defesa e ao contraditório.
Veja-se a Súmula 14 do STF:
É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.
O Ministro Alexandre de Moraes abriu a divergência, também defendendo o direito do réu delatado manifestar-se após o delator, defendendo que a todo ato acusatório produzido, caberá igual direito de defesa, não importando quem está formalmente imputando a infração penal. Caso seja outro réu que tenha feito a imputação, o imputado deve ter garantido o direito de se defender e o direito ao contraditório, constitucionalmente previstos, cabendo ao Estado assegurá-los.
Afirmou que abrir prazo de ao menos cinco dias para que o réu imputado se manifeste após o delator, não prejudica o andamento da ação e o combate à corrupção, sendo certo que entre delator e delatado existe uma relação de antagonismo, de contradição. O delator e a acusação, portanto, possuem idêntico interesse na condenação do delatado. Desta forma, deferiu a ordem, anulando a sentença.
Tal entendimento foi seguido pelos Ministros Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Dias Toffoli.
A Ministra Cármen Lúcia denegou o HC, mas defendeu a tese da nulidade relativa da instrução que concedeu prazo comum aos réus, delatores e delatados, cabendo ao réu prejudicado demonstrar o prejuízo concreto pela não concessão do prazo sucessivo.
Assim, não tendo nos autos prova do efetivo prejuízo, pois o réu delatado teve a oportunidade de complementar as alegações finais, mas não fez, não há que se falar em nulidade processual, tendo em vista a ausência de comprovação de prejuízo.
A inversão processual, falando antes a defesa e depois a acusação nas alegações finais [...], implica nulidade tanto quanto no caso da sustentação oral [...], por ofensa ao princípio da ampla defesa e do contraditório. Entretanto, quando a defesa argui questão preliminar nas alegações finais, é legítima a abertura de vista e a manifestação do Ministério Público, ambos com respaldo legal na aplicação analógica do art. 327, primeira parte, do CPC, como previsto no art. 3º do CPP, pois em tal caso é de rigor que outra parte se manifeste, em homenagem ao princípio do contraditório, cujo exercício não é monopólio da defesa. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 76.420).
A decisão do STF, no entanto, trouxe séria insegurança jurídica e instabilidade dos julgados, pois abre precedente para que decisões anteriores, inclusive já transitadas em julgado, voltem a ser questionadas, havendo a possiblidade de anulação de parte da instrução processual.
4. DA REPERCUSSÃO DOUTRINÁRIA DA DECISÃO DO STF
Sobre o assunto, Lopes Júnior manifestou-se concordando com o posicionamento do STF, asseverando o papel de testemunha da acusação, assumida pelo colaborador:
Mais grave ainda é a situação do delator, ou seja, do corréu beneficiado pela delação premiada, que ao assumir o papel de mais relevante ‘testemunha’ da acusação (ainda que tecnicamente não o seja) é imprescindível estabelecer-se o contraditório na sua oitiva, com os demais corréus realizando perguntas. Do contrário, teremos um ato probatório nulo – prova colhida ao arrepio do contraditório e ampla defesa – e, por consequência, uma sentença (absolutamente) nula por derivação. (2016, p. 246).
Renato Brasileiro de Lima também se manifesta condenando a ideia do réu delator se manifestar depois dos réus delatados:
Permitir, pois, o oferecimento de memoriais escritos de réus colaboradores, de forma simultânea ou depois da defesa — sobretudo no caso de utilização desse meio de prova para prolação de édito condenatório — comprometeria o pleno exercício do contraditório, que pressupõe o direito de a defesa falar por último, a fim de poder reagir às manifestações acusatórias (2020, p. 892).
Porém, Gustavo Badaró aponta que o testemunho do delator é prova menor que não tem o condão de, isoladamente, servir de fundamento para uma condenação, principalmente em caso de dois réus que apontam como único autor ou culpado, terceiro acusado. Nestes casos, o autor atribui ao julgador a tarefa de ponderar as provas dos autos, atribuindo-lhes o devido peso probatório:
Mas uma questão interessante é se serão suficientes para justificar uma condenação duas ou mais delações com conteúdos concordes. É o que se denomina mutual corroboration ou corroboração cruzada. Ou seja, o conteúdo da delação do corréu A, imputando um fato criminoso ao corréu B, ser corroborado por outra delação, do corréu C, que igualmente atribua o mesmo fato criminoso a B. O § 16 do art. 4º da Lei 12.850 não atinge a delação premiada quanto a sua admissibilidade. Ao contrário, é uma prova admissível que, contudo, recebe um descrédito valorativo, por ser proveniente de uma fonte considerada ‘impura’, o que justifica seu ontológico quid minusem relação ao testemunho. Se assim é, e se o próprio legislador atribui à delação premiada em si uma categoria inferior ou insuficiente, como se pode admitir que a sua corroboração se dê com base em elementos que ostentam a mesma debilidade ou inferioridade? Portanto, não deve ser admitido que o elemento extrínseco de corroboração de uma outra delação premiada seja caracterizado pelo conteúdo de outra delação premiada. Sendo uma hipótese de grande chance de erro judiciário, a gestão do risco deve ser orientada em prol da liberdade. Neste, como em outros casos, deve se optar por absolver um delatado culpado, se contra ele só existia uma delação cruzada, a correr o risco de condenar um delatado inocente, embora contra ele existissem delações cruzadas.
O doutrinador Lopes Júnior lembrou do direito ao silêncio, previsto constitucionalmente, que não deve ser utilizado em desfavor do acusado, mas deixa de ter eficácia em relação ao colaborador. Entendimento contrário seria um enorme contrassenso, conforme explica o autor, pois para ser aceita colaboração premiada, o acusado deve elucidar os detalhes da conduta ilícita, além de outros requisitos que pode a lei exigir, conforme acima já apontado:
Problemática, ainda no que tange à delação premiada, é a possibilidade de utilização do direito de silêncio por parte do delator que está depondo. Quando estiver depondo na condição de réu, é inegável que está amparado pelo direito de silêncio e, portanto, não está obrigado a responder às perguntas que lhe forem feitas (pelo juiz, acusador ou demais corréus) e que lhe possam prejudicar. Mas, em relação às perguntas que digam respeito às imputações que está fazendo, o silêncio alegado deve ser considerado no sentido de desacreditar a versão incriminatória dos corréus. É imprescindível muito cuidado por parte do juiz ao valorar essa prova, pois não se pode esquecer que a delação nada mais é do que uma traição premiada, em que o interesse do delator em se ver beneficiado costuma fazer com que ele atribua fatos falsos ou declare sobre acontecimentos que não presenciou, com o inequívoco interesse de ver valorizada sua conduta e, com isso, negociar um benefício maior.
Contudo, quando arrolado como testemunha da acusação, não está protegido pelo direito de silêncio, tendo o dever de responder a todas as perguntas, como qualquer testemunha. (2016, p. 246).
Por fim, o autor lembra que, tendo sido o acusado retirado da sala de audiência para a coleta de prova testemunhal, o interrogatório somente pode ser iniciado após ser dado ciência dos depoimentos ao réu, como forme de garantir o contraditório e ampla defesa:
O direito de defesa, especialmente no seu viés de autodefesa, deve ser observado quando é determinada a retirada do réu da sala de audiências com base no art. 217 do CPP, exigindo um especial cuidado para que o juiz não proceda, imediatamente após a coleta da prova testemunhal, ao interrogatório. Ao réu é assegurado o direito a última palavra pressupondo, sempre, que tenha pleno conhecimento de todas as provas que foram produzidas contra si. Desta forma, se não presenciou algum depoimento porque foi determinada sua retirada da sala de audiências, deverá o juiz garantir-lhe acesso integral e pelo tempo que for necessário a esses depoimentos, para somente após proceder ao interrogatório. (LOPES JÚNIOR, 2016, p. 246).
Neste mesmo sentido se manifestou o ex-Ministro do STF, Cezar Peluso, em decisão anterior:
Há, é verdade, diligências que devem ser sigilosas, sob risco de comprometimento do seu bom sucesso. Mas, se o sigilo é aí necessário à apuração e à atividade instrutória, a formalização documental de seu resultado já não pode ser subtraída ao indiciado nem ao defensor, porque, é óbvio, cessou a causa mesma do sigilo. (...) Os atos de instrução, enquanto documentação dos elementos retóricos colhidos na investigação, esses devem estar acessíveis ao indiciado e ao defensor, à luz da Constituição da República, que garante à classe dos acusados, na qual não deixam de situar-se o indiciado e o investigado mesmo, o direito de defesa. O sigilo aqui, atingindo a defesa, frustra-lhe, por conseguinte, o exercício. (...) 5. Por outro lado, o instrumento disponível para assegurar a intimidade dos investigados (...) não figura título jurídico para limitar a defesa nem a publicidade, enquanto direitos do acusado. E invocar a intimidade dos demais investigados, para impedir o acesso aos autos, importa restrição ao direito de cada um dos envolvidos, pela razão manifesta de que os impede a todos de conhecer o que, documentalmente, lhes seja contrário. Por isso, a autoridade que investiga deve, mediante expedientes adequados, aparelhar-se para permitir que a defesa de cada paciente tenha acesso, pelo menos, ao que diga respeito a seu constituinte. (HC 88.190-4-RJ)
É importante lembrar uma vez mais que, não se pode confundir a colaboração premiada com a simples confissão. Na colaboração o agente terá garantias previstas nos dispositivos legais que tratam sobre esse segmento, apenas quando admitir sua participação no delito cometido e fornecer informações de forma objetiva e eficaz para a descoberta dos fatos previamente conhecidos.
Dito isso, a colaboração premiada é um meio extraordinário, cujo objetivo é a identificação da fonte da prova, além de ser considerada como um negócio jurídico processual.
Antes da Lei n. 13.964/2019, mesmo com a redação proibindo sentenças condenatórias somente tendo como base as declarações prestadas pelo delator, não era o que ocorria na prática. Diversas delações foram causa exclusiva para determinação de prisão temporária ou preventiva dos delatados, trazendo grande transtorno.
Ademais, também é vedado o recebimento da denúncia ou queixa-crime, e a condenação, exclusivamente com base nas declarações do colaborador. Assunto que antes, causava divergência de opiniões e foi esclarecido na Lei de Organização Criminosa, Lei n. 12.850/13, alterada pela Lei n. 13.964/2019:
Art. 4º O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados:
§ 16. Nenhuma das seguintes medidas será decretada ou proferida com fundamento apenas nas declarações do colaborador:
I - medidas cautelares reais ou pessoais;
II - recebimento de denúncia ou queixa-crime;
III - sentença condenatória.
No cenário atual, para que o juiz se convença, em todos os atos capazes de atingir os direitos fundamentais básicos do delatado, se faz crucial somar o acordo de colaboração premiada aos demais elementos probatórios, na intenção de propiciar uma fonte de prova sólida e concreta, sob pena de esvaziar o núcleo do seu próprio objetivo.
Desta forma se percebe a relevância da discussão e suas imbricações futuras, com a possibilidade de nulidade de decisões anteriores, caso tenha efeito retroativo.
No entanto, parece ser unânime a necessidade de se considerar o réu delator como equivalente a uma testemunha da acusação e, na ordem dos depoimentos e oferecimento de alegações finais, deva se manifestar após as testemunhas de acusação propriamente ditas, mas antes dos demais réus.
A decisão do STF também apresenta elevado caráter inovador para o ordenamento jurídico, encontrando-se, em uma primeira análise, na fronteira entre mutação constitucional e uma atividade legislativa pelo Poder Judiciário, o que feriria o princípio da separação de Poderes, cláusula constitucional pétrea (art. 60, § 4º, III da atual Constituição Federal brasileira de 1988).
5. CONCLUSÕES
Desta forma, os princípios envolvidos na discussão da matéria são basilares e sopesá-los com justiça é tarefa que requer extrema habilidade jurídica e sensibilidade ética do Julgador, além de que a solução é sempre efêmera, pois as variantes histórico-culturais exigirão a revisão da decisão adotada, mais cedo ou mais tarde.
O instituto da colaboração premiada tenta modernizar os institutos penais, mas peca em sua essência, ao ser vendida como fim da criminalidade. Tecnicamente, esse atropelamento trouxe imprecisões, com efeito prático evidente
A Lei n. 12.850/2013 trouxe nítida evolução ao instituto, mas não regulamentou a situação dos processos com múltiplos réus onde um deles é delator, sem fazer menção à necessidade dos réus delatados manifestarem-se por último, restando violados os princípios do contraditório e ampla defesa plena.
O regramento da situação surgiu com a Lei 13.964/2019, que inseriu § 10-A, no artigo 4º na Lei 12.850/2013, obrigando o réu delator a manifestar-se antes dos réus delatados, regra nitidamente inspirada na decisão do STF.
O posicionamento do STF inovou o ordenamento jurídico brasileiro de forma inesperada, potencialmente prejudicial ao combate à corrupção caso tenha efeito retroativo, mas sob a alegação de garantir do devido processo legal, protegendo-se os princípios da ampla defesa e do contraditório.
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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