Uma ADPF que deve ser extinta

20/08/2021 às 10:51
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Com base em um fato concreto, analisa-se o entendimento estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF 572/DF em relação ao artigo 43 do Regimento Interno do STF (RISTF).

Revelou o Estadão, em 20 de agosto do corrente ano que  o presidente Jair Bolsonaro se insurgiu contra o artigo do regimento interno da Corte que permite a abertura de investigações de ofício, sem necessidade de aval da Procuradoria-Geral da República (PGR). A norma foi usada, por exemplo, para instaurar o inquérito das fake news que atingiu a rede bolsonarista e o próprio chefe do Executivo. 

Em ação enviada ao STF no dia 19 de agosto deste ano, a Advocacia Geral da União (AGU) pediu a suspensão liminar do texto até o julgamento definitivo do tema no plenário do tribunal. O documento é assinado pelo ministro-chefe da pasta e pelo próprio presidente. A AGU argumenta que o artigo viola preceitos fundamentais, como os princípios acusatório, da vedação de juízo de exceção e da segurança jurídica. 

O artigo questionado é o 43 do regimento interno da Corte, segundo o qual ‘ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição’. A previsão é atípica, porque a Justiça brasileira preserva o princípio acusatório, ou seja, um órgão apresenta o pedido de investigação e eventualmente uma denúncia, frequentemente o Ministério Público, e outro julga. 

O governo argumenta que a norma abre brecha para o acúmulo de funções nas mãos dos ministros. “Ao inserir o Ministro designado em uma posição de juiz apurador, supervisor e curador das funções ministeriais, o artigo 43 do RISTF cria, em contraste ao juiz de garantias, a anômala figura do ‘juiz à margem das garantias'”, diz um trecho da ação. 

O objetivo do presidente da República é fulminar o inquérito das fake news que tem como principais protagonistas alguns de seus aliados.  

Dita o artigo 43 do RISTF:  

Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro. 

§ 1º Nos demais casos, o Presidente poderá proceder na forma deste artigo ou requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente. 

§ 2º O Ministro incumbido do inquérito designará escrivão dentre os servidores do Tribunal.” 

A matéria já foi objeto da ADPF 572 MC / DF em que foi relator o ministro Fachin.  

Naquele julgamento disse o ministro relator:  

“A instauração deste inquérito se impôs e se impõe não porque o queremos, mas porque não podemos banalizar ataques e ameaças a este Supremo Tribunal Federal, Guardião da Constituição da República.

Trata-se de prerrogativa e de reação institucional necessária em razão da escalada das agressões cometidas contra o Tribunal, seus membros e os familiares desses, das quais a Corte não pode renunciar, em especial quando se verifica a inércia ou complacência daqueles que deveriam adotar medidas para evitar o aumento do número e da intensidade de tais ataques.” 

A Portaria GP nº 69, objeto desta arguição de descumprimento, data de 14 de março de 2019 e determinou, com base no art. 43 do Regimento Interno da Corte, a instauração de procedimento de investigação, com parâmetros objetivos, para apurar a existência de notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus calumniandi, diffamandi e injuriandi, que atinjam a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e de seus familiares. 

Os fundamentos daquela Arguição de Descumprimento de Preceito Constitucional eram os que aqui se enumera:  

  • i) que o art. 43 do Regimento Interno do STF, citado para fundamentar a portaria, trataria do poder de polícia interno, regulamentado pela Resolução nº 564/2015, e exigiria que o fato ocorressena sede do Tribunal e, cumulativamente, envolvesse autoridade ou pessoa sujeita à jurisdição do STF. Ambos os requisitos estariam ausentes, a ensejar, não a atuação do Judiciário, e sim do sistema acusatório: dapolícia judiciária ou do Ministério Público;

  • ii) que há ofensa ao preceito fundamental da separação dos Poderes (CFRB, art. 60, § 4º, III), não tendo o Judiciário, salvo algumas exceções, competência estabelecida no art. 102 para conduzir investigações criminais;

  • iii) que as pessoas jurídicas e entes despersonalizados não poderiam ser sujeitos passivos de crimes contra a honra, de modo que a portaria não poderia ser instaurada para apurar fatos ofensivos à honra do Supremo Tribunal Federal;

  • iv) que, no caso das pessoas naturais, a investigação estaria condicionada à representação do ofendido;

  • v) que faltaria justa causa, pois, não havendo referência a fatos concretos ou delimitação mínima do objeto, teria sido ofendido o preceitofundamental da legalidade estrita;

  • vi) que o inquérito não foi livremente à distribuição, o que reforçaria a hipótese de tribunal de exceção, vedada pelo art. 5º, XXXVII, da CF, prejudicando a imparcialidade; e

  • vii) que o sigilo atribuído ao inquérito ofenderia o direito de defesa, nos termos do enunciado da Súmula Vinculante nº 14 do STF 

Naquela oportunidade, Procuradoria-Geral da República reconheceu isso em seu parecer pela constitucionalidade da instauração de inquérito pela Presidência do STF com fundamento no mencionado art. 43 do Regimento Interno da Corte:

“[A] possibilidade de cada Poder ter atribuição de realizar atos típicos de investigação, inclusive na esfera criminal, decorre do sistema de divisão funcional de Poder, pelo qual se objetiva assegurar condições que permitam a atuação e o funcionamento independente de cada um dos Poderes, sem nenhum tipo de ingerência de outros órgãos que possa comprometer ou embaraçar o pleno exercício de suas atribuições”

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Lembrou o Parquet, ainda, de forma exemplificativa, o enunciado da Súmula nº 397 da Corte, segundo o qual

“o poder de polícia da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em caso de crime cometido nas dependências, compreende, consoante o Regimento, a prisão em flagrante do acusado e a realização do inquérito ”  

Naquela oportunidade, disse bem o ministro Edson Fachin que, nessa conformidade, a Portaria GP nº 69/2019, à luz do art. 43 do RISTF, evidencia legítima manifestação de vontade do Supremo TribunalFederal em ver instaurada investigação contra supostos autores de crimes contra a honorabilidade e a segurança da Corte ou de seus membros, o que, repite-se, não ofende o regramento contido no sistema acusatório imposto pela Constituição Federal de 1988, nem mesmo o postulado daseparação dos poderes (CF, art. 2º), sobretudo quando se verifica que as funções de acusar, defender e julgar não estão consubstanciadasunicamente no inquérito.  

Ou seja: o Supremo não vai presidir, denunciar e julgar eventual ação penal a partir do inquérito. A Corte exerce, nesta investigação, papel de mero coordenador quanto à montagem do acervo probatório eàs providências acautelatórias necessárias à busca da verdade real.  

Assim para a defesa das garantias instituições do STF não se trata apenas de ver como agressivos atos contra os seus espaços físicos onde se encontre a sua sede, mas ainda aqueles atos que ofendam a honra, a pessoa dos ministros. 

 Esses os principais fundamentos erigidos daquela ADPF.  

Discute-se as decisões em sede de ADPF fazem coisa julgada.  

Respondeu André Ramos Tavares (Tratado de Arguição de Preceito Fundamental, 2001, pág. 380) que “sabe-se que também a decisão proferida no controle concentrado faz coisa julgada.” 

No entanto, André Ramos Tavares nos ensina que “a aplicação das lições no campo do controle concentrado indica a possibilidade de mudança de orientação do Supremo Tribunal Federal anteriormente adotada, desde que haja alteração da compreensão dos princípios ou regras constitucionais fundamentais, inclusive quanto à sua incidência nos casos concretos e quando houver qualquer mudança na situação analisada precedentemente”. Aliás, para Oswaldo Luiz Palu (Controle da Constitucionalidade, pág. 235), “deveria ser estabelecido quórum mais elevado para a alteração de posicionamento acerca da inconstitucionalidade da norma, tendo em vista a segurança jurídica”.  

O certo é que a decisão proferida em sede de controle concentrado produz coisa julgada oponível erga omnes, ou seja, seus efeitos estendem-se para além das partes envolvidas no processo.  

Trata-se de efeito implícito às decisões do Supremo Tribunal Federal quando proferidas no desempenho da função de Tribunal Constitucional.  

Anotou, aliás, Clèmerson Merlin Clève (A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, pág. 240) que “a decisão do Supremo Tribunal Federal produz coisa julgada oponível erga omnes, estendendo os seus efeitos para além das partes(no sentido formal), residentes na relação processual objetiva”.  

Bem concluiu ainda André Ramos Tavares (obra citada, páginas 382 e 383) que “daí estabelece-se a força vinculante, inclusive para a arguição, na qual está em jogo preceito constitucional fundamental. Nesse caso, adoção do referido efeito é medida que se impõe pela natureza das coisas”.  

Há nessas decisões uma verdadeira força vinculante.  

A esse respeito, o ministro Gilmar Mendes (A ação declaratória de constitucionalidade: a inovação da Emenda Constitucional n. 3, de 1993), ensinou que, na Alemanha, o efeito vinculante é “instituto mais amplo do que a coisa julgada(e do que a força da lei, por conseguinte) exatamente por tornar obrigatória não apenas a observância da parte dispositiva da decisão, mas também dos chamados fundamentos determinantes”.  

Há, portanto, coisa julgada e mais do que isso, um efeito vinculante no pronunciamento do Supremo Tribunal Federal. Isso basta para mostrar que a ação declaratória de inconstitucionalidade noticiada, ajuizada pela AGU, é, por si, inadequada, devendo ser objeto de extinção sem julgamento do mérito.  

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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