O LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO PASSIVO NA AÇÃO DEMOLITÓRIA DE PRÉDIOS: A OBRIGAÇÃO PROPTER REM E SUAS NUANCES
Rogério Tadeu Romano
I - REsp 1.721.472
Segundo o que noticiou o site do STJ, em 20 de agosto de 2021, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) que, em ação para demolição de obra em desacordo com a legislação, considerou desnecessária a formação de litisconsórcio passivo entre todos os proprietários do imóvel.
O caso teve origem em ação ajuizada por vizinhos contra a construção de um terraço com churrasqueira e espaço para festas em imóvel localizado no Distrito Federal.
A obra, sem alvará ou autorização da administração pública, não respeitou a distância mínima de afastamento lateral entre construções, imposta pelo artigo 1.301 do Código Civil. Além disso, o terraço possibilitava a visão do interior do imóvel vizinho.
A sentença, confirmada pelo TJDFT, determinou que a obra irregular fosse demolida, com base nos artigos 1.302 e 1.312 do Código Civil, e fixou indenização por danos morais no valor de R$ 15 mil.
No recurso ao STJ, um dos coproprietários do imóvel, na condição de terceiro interessado, alegou ter sido admitido na lide apenas como assistente simples, mesmo tendo interesse direto no resultado do processo. Ele sustentou a necessidade de formação de litisconsórcio passivo em ação real demolitória.
O casal que figurou como réu na ação também recorreu, argumentando estar decaído o direito de reivindicar a demolição.
Com todas as vênias entendemos que a decisão noticiada não se conforma a melhor doutrina e jurisprudência na matéria.
A decisão se deu em acórdão no REsp 1.721.472.
II – EFEITOS REFLEXOS DA SENTENÇA
Entendeu o relator que:
"Trata-se do que a doutrina denomina de efeito reflexo da sentença, o que, a depender da intensidade, justifica o ingresso de terceiro no processo, mas não a obrigatoriedade do litisconsórcio", acrescentou o magistrado.”
Pode haver eventuais efeitos reflexos, cuja previsão justifique as intervenções dos assistentes, inclusive intervenções em caso de litisdenunciação, ou de litisnomeação, ou de chamamento ao processos, por exemplo.
Que efeitos são esses? Salvos os casos de eficácia erga omnes da sentença constitutiva, executiva ou mandamental têm de ser efeitos decorrentes da repercussão da coisa julgada ou da condenação no mundo jurídico, provavelmente da diferença entre o que se acreditava ser a relação de direito material e o que se declara, na sentença, como decisório. Ainda a possibilidade de haver sentença que aplique injustamente, ou a possibilidade de que erre quem crê justa a sua situação, mais ou menos ligada à de outrem, são as causas de repercutir na esfera de terceiros a decisão inter partes. Não se trata de efeitos da coisa julgada, nem da condenação, como explicou Pontes de Miranda ((Tratado das ações, tomo I, Bookseller, pág. 233), mas de efeitos da sentença, não anexados por lei, mas tornados inevitáveis.
É certo que a existência de eficácia anexa e reflexa e de eficácia erga omnes, não ligadas a coisa julgada material, tem levado a teorias chamadas de falsas sobre a coisa julgada;
- Direito material: inválido o negócio jurídico entre A e B, também ficam invalidados os atos posteriores ligados a ele; o mesmo ocorre em caso de resolução, resilição, de rescisão ou de revogação;
- Direito processual: a coisa julgada somente opera inter partes; portanto, se a senteça nos casos a tem eficácia ex tunc – processualmente há o problema de se saber até que o julgado atinge os terceiros;
- Direito público (supra direito civil e supradireito processual): O enunciado do direito material não determina que a sentença opere contra todos, ou contra terceiros, pelo fato de ser ex tunc; o conceito de sentença não pertence ao direito material, o direito material supõe que a incidência baste ao direito. Considerou Pontes de Miranda que a vida, nos casos concretos, e a condição humana impõem que os Estados e os homens se satisfaçam com a sentença que resistiu aos recursos. Por isso mesmo, não poderia, sem prejudicar a força da lei, conceber a coisa julgada material erga omnes. É certo que as leis processuais procuram obviar a esses inconvenientes de não ser sempre parte forçada o que teria interesse no resultado da ação; mas o seu êxito é restrito, e não exaure aqueles inconvenientes. Mas, o problema da coisa julgada continua.
É certo que estaríamos aí diante da possibilidade de um direito de regresso.
No caso das obrigações solidárias, ativa ou passivamente, não se pode falar em extensão subjetiva da coisa julgada material, como admitiu João Monteiro (Programa III, 270).
Quanto aos fiadores repele-se a extensão da coisa julgada material a eles, como ainda entendia João Monteiro (Programa, III, 270), bem como a eficácia da sentença favorável (Paula Batista, Teoria e Prática, 3ª edição, § 188 e 183).
III – O LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO
Não se trate de efeito reflexo da sentença, mas de litisconsórcio passivo necessário em ação real onde se exige a citação dos condôminos.
O litisconsórcio será necessário se a natureza da relação jurídica assim exigir ou quando a lei assim determinar. Em sendo necessário deverá sempre formar-se sob pena de nulidade. Discute-se, face ao direito fundamental à jurisdição, o litisconsórcio necessário ativo, pois ninguém é obrigado a ajuizar ação, a pleitear uma prestação jurisdicional.
É certo que para Liebman (Manuale I/84) no litisconsórcio necessário existe uma ação única. Vale dizer que, se certo direito material tocar a mais de uma pessoa, devendo efetivá-lo em conjunto, a demanda proposta com semelhante escopo agasalha somente uma ação. E a conclusão, nessa espécie, permaneceria válida para o litisconsórcio passivo ou misto. Assim se tem o artigo 29 do Código de Processo Civil português, onde se diz textualmente: “No caso de litisconsórcio necessário, há uma única ação com pluralidade de sujeitos; no litisconsórcio voluntário, há uma simples acumulação de acções, conservando cada litigante uma posição de independência em relação aos seus compartes”.
Ora, se o litisconsórcio for a um tempo necessário e unitário, somente havia uma ação, como disse Araken de Assis (Cumulação de ações). Nesse raciocínio, tratando-se, ao invés, de litisconsórcio facultativo e unitário, haverá mais de uma ação, na demanda proposta por mais de um autor.
Tem-se então, em síntese: toda vez que necessário o litisconsórcio, existe uma só ação. Nas demais hipóteses de litisconsórcio facultativo, ao invés, há cumulação de demandas.
São casos de litisconsórcio necessário:
a) Ação reivindicatória, sendo a posse injusta exercida por vários: litisconsorte necessário de todos os que a exercem, ou se afirmam, donos;
b) Ações de despejo para a realização de reparações urgentes determinados pelo Poder Público (Lei 8.245, artigo 9º, inciso IV).
IV – A ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL
Observo a lição do ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, no julgamento do Recurso Especial nº 147.769-SP, Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, datado de 23.11.1999, assim ementado:
PROCESSUAL CIVIL. ANULAÇÃO DE AÇÃO DEMOLITÓRIA, POR FALTA DE CITAÇÃO DOS LITISCONSORTES NECESSÁRIOS. NÃO FORMAÇÃO DA RELAÇÃO PROCESSUAL VÁLIDA. POSSIBILIDADE DE ANULAÇÃO. NULIDADE PLENO IURE. INTERESSE. RECURSO PROVIDO.
Não falo aqui na solidariedade, propriamente dita: falo na chamada comunhão de direitos que exige a participação obrigatória de comunheiros na ação. Não se trata de direito de regresso, que é próprio de situações onde há efeitos reflexos, aí sim, da sentença.
O Superior Tribunal de Justiça, interpretando o artigo 2º da Lei nº 8.245/91, "(...) proclamou a tese da necessidade da citação de todos os locatários na condição de litisconsortes necessários em ação de despejo, a fim de que os efeitos da sentença alcancem a todos os coobrigados." (REsp 165.280/RJ, Relator Ministro Vicente Leal, in DJ 9/4/2001).
Trata-se de uma ação de natureza real onde se assentou o entendimento pela nulidade de processo em que pleiteada a demolição de bem, por ausência de citação de condômino litisconsorte necessário.
A ação Demolitória visa à demolição de: a) prédio em ruína (art. 1.280 do CC); b) construção prejudicial a imóvel vizinho, às suas servidões ou aos fins a que é destinado (art. 934, I, do CPC); c) obra executada por um dos condôminos que importe prejuízo ou alteração de coisa comum por (art. 934, II, do CPC); d) construção em contravenção da lei, do regulamento ou de postura estabelecidos pelo Município. Exige-se uma tutela de urgência satisfativa, não cautelar. Não se trata de mera ação pessoal, mas de ação que diz respeito ao bem, daí a legitimidade do condômino.
Recentemente, o STJ no julgamento do REsp 1..374.593 – SC, em que foi relator o ministro Herman Benjamin, entendeu que a Ação Demolitória tem a mesma natureza da ação de nunciação de obra nova e se distingue desta em razão do estado em que se encontra a obra (REsp 311.507/AL, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, DJ 5/11/2001, p. 118), em julgamento oriundo da Segunda Turma do STJ.
Assenta-se o entendimento o entendimento pela nulidade de processo em que foi pleiteada a demolição de bem, por ausência de citação de condômino litisconsorte necessário.
É certo que há dificuldades na formação do litisconsórcio necessário no polo ativo.
As dificuldades na formação de um litisconsórcio ativo necessário se dão à luz do próprio texto constitucional que indica que ninguém pode ser forçado a buscar a jurisdição. Trata-se de uma faculdade.
Para o caso, sugere-se, na medida do possível, o ajuizamento de embargos de divergência, nos moldes da legislação, após, se for o caso, embargos de declaração, pois há contradição na fundamentação, data vênia naquele julgado.
V – A DEMOLIÇÃO DE PRÉDIOS E AS OBRIGAÇÕES PROPTER REM
Como dito a demolição de prédios não é cautelar.
Pontes de Miranda (Comentários ao Código de Processo Civil, 1939, tomo V, pág. 370) advertiu que não se condena o réu a interditar o prédio que lhe pertença; nem é correto postular, através da ação cominatória que o réu seja condenado a destruir valas ou escavações, como previa o Código no artigo 302, XI, b.
A interdição é medida definitiva não provisional.
Assim, data vênia, indicava-se mal na redação do artigo 888 do CPC de 1973, sugerindo-se como provimento provisional:
Vlll - a interdição ou a demolição de prédio para resguardar a saúde, a segurança ou outro interesse público.
Galeno Lacerda (Processo Cautelar, Revista Forense, volume 246/158) dizia: “A interdição ou a demolição de prédio para resguardar a saúde, a segurança ou outro interesse público. É evidente que essa ação não é cautelar. É ação principal. E essa distorção decorre, a meu ver, da supressão da ação cominatória em destaque especial. Aqui é a velha ação demolitória do direito romano. É ação principalíssima, é o conflito principal.”
A demolição urgente é um caso, dentro do que Pontes de Miranda, lembrado por Ovídio Baptista da Silva (Curso de processo civil, volume III, 2ª edição, pág. 392) chamava de “execução-para-segurança, pois é execução urgente. Digo mais, data vênia: é medida executiva real, não cautelar, mandamental, que exige a presença dos condôminos.
É ação que tanto se dá no ensejo de direitos de vizinhança como no resguardo do Poder Público do princípio da supremacia do interesse público, podendo ser ajuizada pelos entes federativos, pelo Ministério Público.
Estamos diante de obrigações propter rem.
Caio Mário da Silva Pereira(Instituições de Direito Civil, volume II, 1972, pág. 41 e 44) já ensinava:
" “A ‘obligatio propter rem’ somente encorpa-se quando é acessória a uma relação jurídico-real, ou se objetiva numa prestação devida ao titular do direito real, nesta qualidade (‘ambulat cum domino’). E o equívoco dos que pretendem definir a obrigação ‘propter rem’ como pessoal é o mesmo dos que lhe negam a existência, absorvendo-a na real. Ela é uma obrigação de caráter misto, pelo fato de ter como a ‘obligatio in personam’ objeto, consistente em uma prestação específica; e como a ‘obligatio in re’ estar sempre incrustada no direito real.
Como disse Ricardo Cintra Torres de Carvalho(A obrigação propter rem, uma figura frequente no Direito Ambiental, in Consultor Jurídico) " a obrigação propter rem é figura frequente no Direito Ambiental e vem citada em inúmeros estudos acadêmicos e precedentes judiciais; mas interligada de modo algo confuso à ideia de uma obrigação objetiva ou de solidariedade, que não lhe pertencem, e sem diferenciar a diversa natureza das obrigações tratadas no Direito Ambiental: a obrigação de fazer ou não fazer, a multa administrativa, a multa cominatória e a indenização do dano ambiental."
Dito bem Ricardo Cintra Torres de Carvalho, "a obrigação adere à propriedade, à sua função social, e transita (ambulat) de titular para titular, de modo que cada um a seu tempo deve prestá-la ainda que não tenha sido o autor da degradação; e como é uma obrigação acessória à propriedade que com ela transita, ela se extingue para o transmitente ao mesmo tempo em que passa, com titularidade da coisa, a obrigar o adquirente, o novo proprietário."
Atende-se, no entanto, que a aplicação de penalidades administrativas não obedece à lógica da responsabilidade objetiva da esfera cível (para reparação dos danos causados), mas deve obedecer à sistemática da teoria da culpabilidade, ou seja, a conduta deve ser cometida pelo alegado transgressor, com demonstração de seu elemento subjetivo, e com demonstração do nexo causal entre a conduta e o dano" (o caso cuidava da autuação do dono da carga pelo derramamento de óleo causado pelo transportador, em um acidente de trânsito) (REsp 1.251.697/PR, rel. Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, DJe 17/4/2012).
Data vênia, é absolutamente irracional em uma ação que diz respeito a coisa, e não a um direito relativo fundado em obrigação, não se admitir a um coproprietário, a um condômino, sua participação na lide como litisconsórcio necessário, pois da natureza da relação jurídica de direito real. Mister em se falando de ações executivas reais, como é a demolitória, como é a de nunciação de obra nova, hoje uma ação de rito ordinário.