Autismo e o princípio da igualdade em tempos de pandemia

24/08/2021 às 22:13
Leia nesta página:

Analise do princípio da igualdade sobre a ótica dos direitos dos autistas em tempo de pandemia.

I - INTRODUÇÃO

 A Constituição Federal traz no seu artigo 5º um dos princípios mais importantes do nosso ordenamento jurídico, o princípio da igualdade, que determina que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]”, com isso assegura uma vida digna, livre e igualitária a todos os cidadãos.

Quando pensamos no princípio da igualdade vêm logo à nossa mente os dizeres de Aristóteles: “tratar de forma igual os iguais e de forma desigual os desiguais na medida em que se desigualam”.

Conforme Celso Bandeira de Mello, o princípio da igualdade não se limita ao mero tratamento igual, mas sim a garantia de tratamentos especiais àqueles com características diferentes, para que tenham as mesmas chances que os outros indivíduos na sociedade.

Neste sentido, o artigo 4º do Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei nº 13.146, de 2015, prevê que as pessoas com deficiência têm direito à igualdade de oportunidades como às demais pessoas, ou seja, não é simplesmente tratar os dois igualmente, mas dar maior chance e acessibilidade para que os deficientes tenham oportunidades para participar em sociedade, sem que sejam discriminados.

Em 2012 foi instituída a Lei nº 12.764 que traz a Política Nacional de Proteção dos Direitos das Pessoas portadoras do Transtorno do Espectro Autista, e tem esse princípio no seu artigo 3º, estabelecendo direitos como: a integridade física e moral, a inclusão social, resguardando a igualdade e a dignidade da pessoa humana, bem como o reconhecimento do autista como uma pessoa com deficiência, abarcando assim, todos os direitos legais assegurados às pessoas deficientes.

Ainda que estes dispositivos legais decorram do mesmo princípio da igualdade, a importância desta legislação está na materialização dos direitos dele decorrentes, especialmente quando a sociedade somente reconhece um direito quando este está expressamente normatizado.

 

Mesmo com todas estas previsões legais, a efetividade destes direitos e garantias muitas vezes não ocorre na prática, pelo contrário, sempre tem que ser buscada a cada instante, tem que ser reivindicada, tem que ser exigida para que seja efetivada.


 II - VACINAÇÃO

 Tratando da garantia da igualdade na pandemia, a vacinação iniciou-se em janeiro de 2021 e o Ministério da Saúde não estabeleceu a prioridade de vacinação para os autistas no Programa Nacional de Imunização (PNI), mesmo estando ciente de que a Organização Mundial da Saúde (OMS) e Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) recomendaram a prioridade da vacinação para pessoas com deficiência por correrem maior risco de contaminação e evolução da doença em razão da vulnerabilidade que apresentam.

O próprio Conselho Nacional de Saúde (CNS) ressaltou a necessidade de priorizar a vacinação para as pessoas com deficiência, conforme Recomendações 31 e 73.

Mesmo assim o Ministério da Saúde não inseriu no momento inicial a vacinação para as pessoas com deficiência e com isso acabou por desrespeitar a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da qual o Brasil é signatário, e que estabelece no seu artigo 11 que em “situações de risco e emergências humanitárias, os Estados Partes tomarão todas as medidas necessárias para assegurar a proteção e a segurança das pessoas com deficiência...”.

Também não foi observada a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, que prevê em seu artigo 18 a atenção integral à saúde da pessoa com deficiência em todos os níveis de complexidade, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), que deve garantir o acesso universal e igualitário, inclusive em relação às campanhas de vacinação.

Ressalte-se que, ainda em de 2020, a Organização das Nações Unidas (ONU) lançou um alerta mundial sobre o abandono das pessoas com deficiência durante a crise provocada pelo coronavírus.

Em 2020 foi publicado um estudo feito pela Fair Health no The Wall Street Journal onde foi apontado que as pessoas com deficiência intelectual, Síndrome de Down e Transtorno do Espectro Autista estariam sujeitas a uma taxa de mortalidade duas vezes maior do que as demais pessoas.

Este e outros estudos da comunidade científica corroboram com a notória vulnerabilidade e necessidade de prioridade de atendimento das pessoas com deficiência, levando-se em consideração as suas diversas características e necessidades de priorização no recebimento de medidas de proteção, entre elas a vacinação contra a Covid-19, inclusive porque muitos apresentam algumas comorbidades.

O Programa Nacional de Imunização (PNI) sofreu várias adaptações ao longo desta pandemia, e em março de 2021 foram incluídas as pessoas com deficiência institucionalizadas.

E naquele momento foram introduzidos outros grupos prioritários deixando os autistas e as pessoas com síndrome de down fora do plano de vacinação.

Era importante ter seguido as orientações técnicas cientificas para a prioridade da vacinação no Brasil.

Só a partir de sua 4ª edição é que passou expressamente a incluir as pessoas com síndrome de down no grupo das prioridades, sedo que ao editar a nota técnica não ficou claro que a prioridade de vacinação atingia as demais categorias de pessoas com deficiência.

O Programa Nacional de Imunização (PNI) estabeleceu no primeiro momento a vacinação das pessoas com deficiência que tinham o Benefício da Prestação Continuada (BPC), para depois estabelecer como prioridade a vacinação das pessoas com deficiência permanente sem o Benefício da Prestação Continuada (BPC), tudo isso criou certa confusão a nível estadual e municipal, e muitos estados e municípios acabaram não iniciando a vacinação dos autistas no mesmo momento no país, como deveria ter sido feito. É fato que alguns Estados, já no mês de abril, iniciaram a vacinação dos autistas, enquanto outros estados ainda estão começando, além de ter outros estados que ainda não iniciaram, não houve uma coordenação nacional.

O exemplo disso é que no dia 17/05/2021, no Distrito Federal aconteceu uma audiência pública na Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Câmara dos Deputados e lá estavam mães de autistas (on-line) pleiteando a vacinação para os seus filhos e cuidadores.

Em Salvador, no final de abril, foi iniciada a vacinação contra a Covid-19 para os autistas de grau moderado, isso quer dizer que houve tratamento diferente entre pessoas da mesma categoria, infringindo aí o princípio da igualdade.

Em 02/07/2021, o deputado estadual e vice-presidente da Assembléia Legislativa do Tocantins, Cleiton Cardoso (PTC), apresentou um requerimento em caráter de urgência no Plenário da Assembléia Legislativa solicitando a inclusão dos portadores do Transtorno do Espectro Autista na lista de prioridades da vacinação contra a Covid-19 no Estado.

No dia 08/07/2021, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei oriundo do Senado que inclui como grupo prioritário os autistas de 12 a 17 anos no Programa Nacional de Imunização (PNI), mas ainda depende de sanção do Presidente.

Os Estados e Municípios têm autonomia para incluir ou mudar algumas categorias em seus planos de imunização, mas também não o fizeram.

Não existe uma uniformização de vacinação dos autistas em todo território nacional.

As famílias estão preocupadas devido à falta de vacinação para todos os autistas e de seus cuidadores, por temerem que seus filhos autistas tenham a Covid-19, ou que seus familiares se contaminem, pois muitos não têm quem dê suporte aos seus filhos caso isto ocorra.


III - TRATAMENTOS E TERAPIAS

Todos que convivem ou que conhece um autista sabem a importância da vacinação para as pessoas com deficiência para terem a continuidade dos seus tratamentos, das suas terapias e das atividades de lazer, que são importantes para o seu desenvolvimento.

O autista precisa ser constantemente estimulado, devido a seus interesses restritos, o que dificulta a sua interação com outras pessoas. A pandemia favoreceu uma desorganização para essas pessoas.

Eles necessitam de tratamentos diários para o seu desenvolvimento, a exemplo de terapia cognitivo-comportamental (ABA), de psicólogo, de fonoaudiólogo e de terapeuta ocupacional. A importância em frequentar à escola regular diariamente e de fazer com frequência atividades físicas. Tudo isso ajuda a melhorar o desenvolvimento do autista. Com a pandemia todas essas atividades deixaram de ser realizados devido à necessidade de distanciamento social e pela gravidade de disseminação do vírus.

O impacto da pandemia foi tão grande que muitos deles regrediram no seu desenvolvimento, devido à dificuldade de cumprir as regras para se proteger da Covid-19, como o uso da máscara e de fazer o distanciamento social.


IV - USO DE MÁSCARAS

Outra questão sensível para os autistas nesta época de pandemia é a obrigatoriedade do uso de máscara em ambientes públicos e privados acessíveis ao público, a exemplo os parques, vias públicas, shopping, supermercados.

Trata-se de uma medida importante no combate à pandemia, pois visa à redução do índice de contágio do vírus, contudo, muitos autistas não se adaptam ao uso da máscara.

Neste sentido, em observância ao princípio da igualdade, a Lei nº 13.979, de fevereiro de 2020, que prevê a obrigatoriedade do uso da máscara, sofreu alterações promovidas pela Lei nº 14.019, de julho de 2020, passando a excepcionar esta obrigatoriedade aos autistas, dentre outros casos.

Contudo, somente a edição desta lei não afastou por si só o constrangimento a que passam rotineiramente os autistas e seus familiares em decorrência do não uso da máscara. São olhares, críticas, e até mesmo reclamações de pessoas desinformadas, que não conhecem o direito que os autistas têm de não usar a máscara, além de não terem sensibilidade suficiente para compreenderem a situação.

Não compete aos autistas ou a seus familiares se justificarem a cada momento, a cada constrangimento, nem muito menos utilizarem crachás ou qualquer outro tipo de identificação para informar ao público de que se trata de um autista, e que este tem o direito do convívio social, mesmo que não seja capaz de usar a máscara.

Cabe sim ao poder público, através de campanhas de conscientização, educar e informar à comunidade os direitos das pessoas com deficiência, e mais especificamente neste momento de pandemia, o direito que o autista tem de não usar a máscara em ambientes públicos.


V - CONVÍVIO EM CONDOMÍNIO

Mais uma questão que se intensificou com a pandemia ser refere ao convívio do autista em seu ambiente doméstico, no condomínio. Em razão do necessário isolamento social, as pessoas passaram a ficar mais tempo em casa, muitas inclusive passaram a trabalhar em casa, e com isso aumentaram as reclamações relativas a barulhos.

São queixas ao síndico, interfone à portaria, e até mesmo panfletos em elevador acerca de como é importante o silêncio.

É certo que os autistas, em sua grande maioria, fazem mais barulhos que outras pessoas em seus lares. São portas que batem, os pulos em camas, gritos, birras, televisão alta... As famílias adotam medidas para minimizar tais situações e evitar maiores transtornos aos vizinhos, contudo, trata-se de questões decorrentes do autismo, que nem sempre podem ser evitadas.

Tem-se aí uma questão mais sensível, de educação, de se colocar no lugar do outro, de se ter uma noção, mesmo que intuitiva, do princípio da igualdade. Não se pode cercear o direito que o autista tem de, em sua própria casa, se expressar, se divertir, se movimentar, e principalmente de ter seus momentos de crise.

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VI - CONSIDERAÇÕES FINAIS

É importante destacar para todas as pessoas que tem um autista próximo ou convive com ele no dia a dia: que por mais difícil que seja esse momento, os autistas precisam de amor e compreensão por todos que estão a sua volta. Devemos oferecer sempre uma boa qualidade de vida, para garantir o seu bem estar e a sua segurança.

Faz-se necessário esse tratamento diferenciado para o autista dando assim oportunidade a estes de terem uma vida digna, e poderem participar da vida em sociedade de forma igualitária como as demais pessoas.

Estes necessitam do atendimento prioritário nos serviços de saúde, a prioridade nas filas dos estabelecimentos comerciais, bancos, nos aeroportos etc. Estes direitos são importantes e devem ser implantados em nossa sociedade para garantir a estas pessoas uma vida digna e uma efetiva participação na sociedade.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS    

 ALEGRE, Laura. Pandemia interfere na rotina de crianças com autismo – São Paulo: Jornal da USP. 2020. Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/pandemia-interfere-na-rotina-de-criancas-com-autismo/ . Data de acesso: 07/05/2021

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ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco; tradução e notas: Luciano Ferreira de Souza. - São Paulo: Martin Claret, 2015.

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CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. RECOMENDAÇÃO Nº 031, DE 30 DE ABRIL DE 2020. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/recomendacoes-cns/1146-recomendacao-n-031-de-30-de-abril-de2020.

 CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. RECOMENDAÇÃO Nº 073, DE 22 DE DEZEMBRO DE 2020. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/recomendacoes-cns/1557-recomendacao-n-073-de-22-de-dezembro-de-2020.

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 FERNANDES, Pablo Viana Mauad. Autismo e Direito: Dos Direitos e Garantias das Pessoas com Transtorno do Espectro Autista no Ordenamento Jurídico Brasileiro - Publicação Independente, 2020.

 FONTELES, Samuel Sales Fonteles. Direitos Fundamentais – 3. ed. ver., ampl. e atual.- Salvador: Editora JusPodivm, 2019.

 MELO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade-4.ed.- São Paulo: Malheiros, 2021.

 ONU. COVID-19: Who is protecting the people with disabilities? – UN rights expert. Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=25725&LangID=E.

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 UNDP. Relatório da ONU sobre progresso dos ODS aponta que a COVID-19 está comprometendo avanços no campo social. Disponível em: https://www.br.undp.org/content/brazil/pt/home/presscenter/articles/2020/relatorio-da-onu-aponta-que-a-covid-19-esta--retardando--decadas.html. Data de acesso: 01/07/ 2021.

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Sobre a autora
Maely Passos Boeri Valadão

Advogada OAB/BA n. 80.328 ( UCSAL), Engenheira Civil (UCSAL) , Professora, Graduanda em Direito de Família e Sucessões (UCSAL) e Pós-graduanda em Educação Inclusiva (Gran Faculdade), Formação em Analise de comportamento AMA-SP

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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