INSTRUÇÃO NORMATIVA NÃO É LEI

26/08/2021 às 11:20
Leia nesta página:

O ARTIGO DISCUTE SOBRE CASO CONCRETO À LUZ DA DOUTRINA E DE DECISÃO DO STF SOBRE O TEMA.

INSTRUÇÃO NORMATIVA NÃO É LEI  

Rogério Tadeu Romano  

 

I – O FATO  

Segundo o Estadão, em editorial, no dia 26 de agosto do corrente ano, por meio de uma instrução normativa (IN n.º 54) que entrou em vigor no dia 1.º de julho, o Ministério da Economia tomou mais uma iniciativa polêmica, que certamente acabará sendo judicializada. Trata-se da criação de um sistema para identificar o planejamento de greves na administração pública federal, monitorar as paralisações, promover o corte automático do ponto de cada grevista e suspender o pagamento de seus vencimentos. 

Conforme a IN n.º 54, cada órgão federal é obrigado a nomear um funcionário responsável pela transmissão ao governo, diariamente e em tempo real, dessas informações. “Constatada a ausência do servidor ao trabalho por motivo de paralisação decorrente do exercício do direito de greve, os órgãos e entidades integrantes do Sistema de Pessoal Civil da Administração Federal (Sipec) deverão processar o desconto da remuneração correspondente”, afirma o texto. O Sipec é um órgão vinculado ao Ministério da Economia. 

II – O DIREITO À GREVE NO SERVIÇO PÚBLICO: A MORA LEGISLATIVA   

A greve é um direito de coerção que visa à solução de um conflito coletivo. Pode ser considerada um direito potestativo dos empregados. Assim, a parte contrária deve submeter-se à situação. A greve tem um único objetivo: fazer a parte contrária ceder sob um determinado ponto da negociação. 

Por fim, a Constituição Federal de 1988 insere a greve no elenco dos direitos sociais fundamentais dos trabalhadores no setor privado. Prevê que a lei definirá os serviços e atividades essenciais e disporá sobre o atendimento às necessidades inadiáveis da comunidade. Apenas os abusos sujeitam os infratores às penas da lei. 

A Constituição Federal reconhece ainda, no artigo 37, inciso VII, o direito de greve dos servidores públicos, proibindo-a apenas aos servidores militares. Todavia, o exercício desse direito dependeria da edição posterior de lei complementar para a sua regulamentação. O setor privado é regulamentado pela Lei nº 7.783/1989. 

A Emenda Constitucional nº 19/1998 altera o inciso VII, do artigo 37, da CF apenas para dispor que o exercício da greve no serviço público será definido por lei específica, até o momento, contudo, esta lei não foi regulamentada. 

Aguarda-se desde esse tempo legislação na matéria. 

Foi ajuizado, para tanto, mandado de injunção, diante da mora do legislador. 

O STF decidiu a questão por maioria (8 votos a 3), nos seguintes termos: 

“Decisão: O Tribunal, por maioria, conheceu do mandado de injunção e propôs a solução para a omissão legislativa com a aplicação da Lei nº 7.783, de 28 de junho de 1989, no que couber, vencidos, em parte, o Senhor Ministro Maurício Corrêa (Relator), que conhecia apenas para certificar a mora do Congresso Nacional, e os Senhores Ministros Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa e Marco Aurélio, que limitavam a decisão à categoria representada pelo sindicato e estabeleciam condições específicas para o exercício das paralisações. Votou a Presidente, Ministra Ellen Gracie. Lavrará o acórdão o Senhor Ministro Gilmar Mendes. Não votaram os Senhores Ministros Menezes Direito e Eros Grau por sucederem, respectivamente, aos Senhores Ministros Sepúlveda Pertence e Maurício Corrêa, que proferiram voto anteriomente. Ausente, justificadamente, a Senhora Ministra Cármen Lúcia, com voto proferido em assentada anterior. Plenário, 25.10.2007.” 

Com esta decisão, o setor público se submete, no que couber, à Lei nº 7.731/1989. Esta decisão terá validade até a aprovação da lei para o setor público.      

Os ministros que votaram em sentido contrário sustentaram que o era necessário estabelecer especificações para o setor público. Ademais, limitavam a decisão apenas aos sindicatos impetrantes. 

Como lembrou Camila Cotovicz Ferreira(O direito de greve do servidor público parametrizado pelo STF, in Migalhas) “o direito de greve do servidor público, conforme contemplado no art. 37, inc. VII, da Constituição da República, exige a edição de ato normativo que integre sua eficácia. No entanto, até o momento, não se verifica atuação legislativa que dê concreção ao comando positivado no texto constitucional.”  

Diante da mora legislativa contumaz, o STF consolidou, nos Mandados de Injunção 670, 708 e 712, entendimento no sentido de ser aplicável a Lei de Greve (lei 7.783/89) aos servidores. 

Contudo, a aplicação da legislação trabalhista não se dá nos seus exatos termos, mas com adaptações predeterminadas pelo Supremo. Nas palavras do ministro Eros Grau: "não se aplica ao direito de greve dos servidores públicos, repito-o, exclusivamente, e em sua plena redação, a Lei n. 7.783/89, devendo o Supremo Tribunal Federal dar os parâmetros de seu exercício. Esses parâmetros hão de ser definidos por esta Corte de modo abstrato e geral". 

III – UMA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CONCORDÂNCIA PRÁTICA  

Dir-se-ia que há um confronto entre um direito fundamental que tem o trabalhador à greve e o princípio da supremacia do interesse público.  

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De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de Direito Administrativo. 30. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2013. p. 99), o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado é inerente a qualquer sociedade, sendo “a própria condição de sua existência”. Deste modo, podemos inferir que o princípio em comento é um pressuposto lógico do convívio social. 

Hely Lopes Meirelles (Direito Administrativo Brasileiro. 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 113) esclareceu que a “primazia do interesse público sobre o privado é inerente à atuação estatal e domina-a”. O autor frisa que essa supremacia “justifica-se pela busca do interesse geral, ou seja, da coletividade; não do Estado ou do aparelhamento do Estado”. Portanto, devemos abstrair interesse estatal e interesse público, aquele dos agentes administrativos, este dos administrados; aquele não tem o direito à primazia que este tem. 

Ora, para tanto, há a aplicação do princípio da concordância prática.  

Quando houver um conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, utiliza-se o princípio da concordância prática ou da harmonização de forma a coordenar e combinar os  

A solução da questão está no princípio da concordância prática. 

Correta a lição que se tem no sentido de que o princípio da concordância prática consiste ¨numa recomendação para que o aplicador das normas constitucionais, em se deparando com situações de concorrência entre bens constitucionalmente protegidos, adote a solução que otimize a realização de todos eles, mas ao mesmo tempo não acarrete a negação de nenhum¨, como nos ensinaram o ministro Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires, e  Paulo Gustavo Gonet( Curso de direito constitucional, são Paulo, Saraiva, 2007, pág. 107) 

O campo de aplicação do princípio da concordância prática tem sido o dos direitos fundamentais (colisão entre direitos fundamentais ou entre direitos fundamentais e bens jurídicos constitucionalmente protegidos). É subjacente a esse princípio a ideia de que há igual valor dos bens constitucionais, não havendo diferença de hierarquia, que impede, como solução, o sacrifício de uns em relação aos outros, e impõe o estabelecimento de limites e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir a harmonização ou concordância prática entre estes bens. 

IV -  OS LIMITES DA INSTRUÇÃO NORMATIVA  

Ao final, direi que uma instrução normativa, como norma secundária, não tem eficácia a não ser dentro dos limites do serviço público. Ela não pode ir além disso, sob pena de flagrante ilegalidade.  

Uma instrução normativa não cria regras gerais e muito menos mitiga direitos fundamentais erigidos pela Constituição, norma paratípica.  

Délio Maranhão(Direito do trabalho, 14ª edição, pág. 337) lembra as palavras de Rivero-Savatier, para quem “a greve é a cessação combinada do trabalho pelos trabalhadores, visando a constranger o empregador, por este meio de pressão, a aceitar-lhes o ponto de vista sobre a questão objeto do dissídio”. 

Como tal, a greve é uma forma de autodefesa que, dando margem, de início, à autocomposição do dissídio, acaba, se este não se realiza, por provocar-lhe a solução processual. 

Como bem ensinou Celso Antônio Bandeira de Mello(Curso de Direito Administrativo, 17ª edição, pág. 337): 

“Se o regulamento não pode criar direitos ou restrições à liberdade, propriedade e atividades dos indivíduos que á não estejam estabelecidos e restringidos na lei, menos ainda poderão fazê-lo instruções, portarias ou resoluções. Se o regulamento não pode ser instrumento para regular matéria que, por ser legislativa, é insuscetível de delegação, menos ainda poderão fazê-lo atos de estirpe inferior, quais instruções, portarias ou resoluções. Se o chefe do Poder Executivo não pode assenhorear-se de funções legislativas nem recebê-las para isso por complacência irregular do Poder Legislativo, menos ainda poderão outros órgãos ou entidades da Administração direta ou indireta”. 

Instrução normativa não é lei.  

Não atribui direitos, nem impõe obrigações e penalidades a terceiros. 

V – CONCLUSÕES  

A greve é, pois, um direito coletivo, no reconhecimento da autodefesa como forma de composição dos dissídios coletivos. 

O direito de greve é medida política e arma de luta do proletariado por melhores condições de trabalho, pois na economia liberal a sua posição em face da classe patronal é sempre de desigualdade. 

É assim que o tema deve ser tratado. Pois a greve é um direito.  

Ademais, o governo tem a ABIN para tratar do tema de informações não sendo correto, por Instrução Normativa, criar “arapongas” para acompanhar um movimento grevista e combate-lo.  

Decerto uma instrução normativa não pode limitar um direito constitucional. Isso é um absurdo.  

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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