POR UM NOVO MERCOSUL - A ALTERNATIVA DA SUPRANACIONALIDADE

28/08/2021 às 15:41
Leia nesta página:

Análise da validade do instituto da supranacionalidade para alavancar o MERCOSUL, ante a contínua instabilidade político-jurídica do bloco, com governos refratários a um órgão jurisdicional comunitário - indispensável ao compromissado mercado comum.

Criado pelo Tratado de Assunção, em 26/03/1991, o MERCOSUL vem a ser uma associação de Estados que conforma uma zona de livre comércio e uma união aduaneira, programado para tornar-se um Mercado Comum. Porém, passados 30 anos, e mesmo com significativos avanços comerciais, o MERCOSUL ainda está longe de fechar o seu ciclo de união aduaneira, posto que sujeito às adversidades do mercado interno e à retórica política de seus governos – sem falar das dificuldades derivadas da ordem econômica mundial, desde 2020 ampliadas em razão da pandemia de COVID-19.

Muito embora o MERCOSUL tenha apresentado bons resultados econômicos, especialmente nos primeiros dez anos de atividade, também se lhe reconhece contínuos recuos ou períodos de estagnação. Recentemente, acendeu-se mais uma vez o sinal de alerta quanto à continuidade do bloco, em razão da ameaça feita pelo presidente uruguaio, Luis Lacalle Pou, de romper com a regra que proíbe os parceiros de firmarem acordos comerciais unilaterais, proferida na última Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul e Estados Associados, realizada no dia 08/07/2021.

A posição uruguaia, que não é nova e conta com a simpatia de setores governamentais do Brasil e do Paraguai, se efetivada, romperá de vez com a já instável e incompleta união aduaneira vigente no bloco, que tem na exigência de decisões consensuais (sistema 4+1) as definições da Tarifa Externa Comum. Circunstância que, além de tantos outros entraves, está a exigir imediatos ajustes e aperfeiçoamentos no bloco ‘platino’.

Além disso, o MERCOSUL vem mantendo inalterado o mediano e temerário sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL, pelo qual os conflitos político-econômicos entre os países-membros só podem ser resolvidos (na inviabilidade das negociações preliminares) pelo método da arbitragem, e esta, por conta de discrepâncias governamentais e mesmo de desconfianças metodológicas e institucionais, tem sido muito pouco utilizada – apesar da imponência que se procura dar a um enfraquecido Tribunal Permanente de Revisão, sediado em Assunção há exatos 17 anos (desde 13/08/2004).

Nesse contexto, a minha palestra procurou realçar a relevância de se adicionar critérios de supranacionalidade aos órgãos do MERCOSUL, com enfoque na validade de se instituir um Tribunal de Justiça Supranacional - capaz de impor a obrigatoriedade das regras adotadas, garantir os direitos humanos e sociais, e, incrementar o avanço do bloco econômico rumo ao planejado e compromissado mercado comum (Art. 1 – Tratado de Assunção, 1991).

Naturalmente, a implantação de um Tribunal Judicial no MERCOSUL poderá implicar – em princípio - na modificação das Constituições dos Estados Partes. Por certo, havendo vontade política, a reforma das constituições nacionais representa o caminho mais rápido para se concretar a integração pelo critério da supranacionalidade, mas não é o único.

Vale recordar que em alguns países europeus, em vez de se remendar a Carta Maior, a judicatura simplesmente adaptou a sua interpretação da ordem jurídica à realidade comunitária. Ou seja, em alguns países foi preciso uma alteração constitucional, mas, em alguns outros, a supremacia do direito comunitário foi simplesmente reconhecida pelos tribunais nacionais. Ora, nos tempos presentes, isso não parece difícil no Brasil, quando se vê o STF praticamente legislando, denunciando e julgando em situações de ameaça aos princípios democráticos.

Afinal de contas, se é de se levar a sério e se cumprir com os objetivos do Tratado de Assunção (Art. 1) e do ideário constitucional brasileiro (Art. 4º - § único), o bloco mercosulista ainda está a dever solução cabal e adequada, inclusive, à efetivação de livre circulação de pessoas (físicas e jurídicas), serviços e fatores produtivos (capital e trabalho), reconhecimento de diplomas, e mesmo concluir a implantação da TEC, em conjunto com a coordenação de políticas macroeconômicas e harmonização progressiva das legislações nacionais, com vistas a um direito próprio do bloco - etapas essas necessárias a um mercado comum, e que, hipoteticamente, deveriam ter sido atingidas em meados da primeira década do século XXI, mas de lá para cá parecem cada vez mais relegadas às calendas gregas.

Ademais, a pleiteada revisão da estrutura e dos conceitos jurídico-políticos que norteiam e conduzem o MERCOSUL atual, aliás, visando a superação de suas amarras legais – que decorrem do vetusto conceito da soberania “indivisível” presente nas constituições dos países-membros (Brasil e Uruguai com mais ênfase) - e também buscando a redução do controle absoluto do Executivo nos órgãos diretivos, terá o condão de se dotar o bloco assunceno de instrumentos que o tornem mais atuante e benéfico em favor de suas amplas populações, criando nelas o sentimento de pertença ao processo integracionista, assim capacitando-as a influenciar fortemente sobre os respectivos governos e suas instituições, no rumo de novas formas de governança e de uma efetiva política de distribuição de renda e riqueza aos povos dos países que o constituem.

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Urge a tomada de providências, inclusive a curto prazo, para que o MERCOSUL não seja relegado a ‘morrer na praia’, como outras experiências negativas vivenciadas na América Latina. Se é para ter êxito pleno, tornando-se o segundo mercado comum do planeta (à exemplo da União Europeia), entendo que as mudanças no bloco mercosulista devam começar pela instalação de um Tribunal de Justiça – permanente e supranacional. 

 

REFERÊNCIAS

AGÊNCIA BRASIL (07/7/2021). In: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/ noticia/ 2021-07/cni-anuncio-do-uruguai-preocupa-demais-paises-do-mercosul. Acessado em 06/08/2021.

AGÊNCIA BRASIL (08/7/2021). In: https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/politica/audio/2021-07/brasil-assume-presidencia-do-mercosul-com-criticas-ao-bloco. Acessado em 06/08/2021. 

D´ANGELIS, Wagner Rocha, Mercosul: da intergovernabilidade à supranacionalidade?, Curitiba, Juruá, 2001.

D´ANGELIS, Wagner Rocha, “Para onde caminha o Mercosul? (A integração ao sul do Equador)”, in D´ANGELIS, Wagner Rocha, coord., Direito da Integração & Direitos Humanos no Século XXI, Curitiba, Juruá, 2002 pp. 167-184.

D´ANGELIS, Wagner Rocha, Direito Internacional do século XXI (integração, justiça e paz), Curitiba, Juruá, 2003. 

D´ANGELIS, Wagner Rocha, “Integração, inclusão social e desenvolvimento na América Latina”, in PIÑERO, Nuria Garcia et VITORIA, Ignacio Garcia, org., Direito e Justiça número XI: estudos contemporâneos (CONSINTER), Curitiba, Juruá, 2020, pp. 435-457.

Sobre o autor
Wagner Rocha D’Angelis

Advogado, historiógrafo e professor universitário. Pós-graduado em Direito – USP / UFPR (Mestrado e Doutorado). Presidente da Associação de Juristas pela Integração da América Latina (AJIAL) e Presidente do Centro Heleno Fragoso pelos Direitos Humanos (CHF). Autor de vários livros e artigos científicos (publicados no Brasil e no Exterior).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Acerca do tema, destacando a comparação entre intergovernabilidade e supranacionalidade no contexto de um processo de integração, ver: D´ANGELIS, Wagner Rocha, Mercosul: da intergovernabilidade à supranacionalidade?, Curitiba, Juruá, 2001.

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