A POSSIBILIDADE DA PENHORA COM RELAÇÃO A VALOR ORIUNDO DO EMPRÉSTIMO CONSIGNADO
Rogério Tadeu Romano
Segundo o site do STJ, em 31 de agosto de 2021, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou recurso especial interposto por devedor que teve valor oriundo de empréstimo consignado, depositado em conta salário, penhorado em ação de execução. Por decisão unânime, o colegiado considerou que esse valor não se assemelha às verbas de natureza salarial – que são impenhoráveis, segundo a legislação.
A relatora do recurso, ministra Nancy Andrighi, afirmou que, apesar de as parcelas do empréstimo incidirem diretamente na contraprestação recebida pelo trabalho, ele não se equipara às quantias recebidas pelo trabalhador e destinadas ao seu sustento e de sua família, indicadas no artigo 833, inciso IV, do Código de Processo Civil de 2015.
No caso dos autos, ao requerer a liberação da penhora, o executado argumentou que o valor estava depositado em conta salário e era derivado de empréstimo consignado, cujas parcelas são descontadas em folha, o que o tornaria uma verba de natureza salarial, protegida contra a penhora.
A matéria foi discutida no REsp 1.931.432.
Ao votar pelo desprovimento do recurso, a ministra Nancy Andrighi lembrou que a Terceira Turma considera que os valores recebidos de salário e os de empréstimo consignado possuem naturezas jurídicas diferentes, pois o salário é proveniente do contrato de trabalho ou prestação de serviço; já o empréstimo tem origem no contrato de mútuo celebrado entre o trabalhador e a instituição financeira.
A relatora também explicou que, de acordo com a Corte Especial, nem sequer o salário e verbas assemelhadas – que têm natureza alimentar – gozam da proteção de impenhorabilidade absoluta, de forma que não é razoável que se confira tal proteção aos valores decorrentes de empréstimo consignado porque se encontram depositados na conta salário do devedor.
"O fato de essas parcelas incidirem diretamente sobre a contraprestação recebida pelo trabalho, entretanto, não equipara os valores oriundos do empréstimo consignado ao vencimento, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios, montepios, aos ganhos de trabalhados autônomo e aos honorários de profissional liberal, aos quais o legislador conferiu a proteção da impenhorabilidade", concluiu a ministra.
Entendeu-se que se nem mesmo o salário e verbas assemelhadas, que têm natureza alimentar, gozam de impenhorabilidade absoluta, não é razoável que se confira tal blindagem aos valores decorrentes de empréstimo consignado, apenas porque se encontram depositados na conta salário do devedor.
Os valores de empréstimo consignado em folha de pagamento, depositados na conta bancária do devedor, só recebem a proteção de impenhorabilidade atribuída a salários, proventos e pensões, nos termos do artigo 833, inciso IV, do Código de Processo Civil, quando forem comprovadamente destinados à manutenção da pessoa ou de sua família. Fora dessa situação, o crédito consignado pode ser normalmente penhorado por ordem do juiz.
O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o REsp 1.837.702 – DF, passou a permitir a constrição de percentual dos proventos dos devedores, de modo a garantir a efetividade do processo, sem afrontar a dignidade ou a subsistência destes e de sua família.
O Crédito consignado (também conhecido como empréstimo consignado) é um empréstimo com pagamento indireto, cujas parcelas são deduzidas diretamente da folha de pagamento da pessoa física. Ele pode ser obtido em bancos ou financeiras, cuja duração não deve ser superior a 72 meses.
Fala-se que no crédito consignado há a livre disposição contratual e a boa-fé que deve se unir a todas as relações contratuais, como as de mútuo mediante o pagamento de juros.
A legislação que instituiu a concessão de crédito consignado (Lei nº 10.820/03) foi uma forma camuflada das instituições financeiras burlarem a restrição de impenhorabilidade de salários e pensões, prevista no artigo 649, inciso IV, do Código de Processo Civil.
Mas o princípio da proteção do caráter alimentar da remuneração do trabalho deve prevalecer sobre os descontos em folha de pagamento. Daí porque têm limite os descontos que devem ser feitos no contracheque do devedor. Se não respeitada tal prática, será o empréstimo consignado uma prática abusiva, análoga à penhorabilidade de vencimentos e que caracterizava a invasão da “privacidade econômico-financeira” do tomador de crédito, uma ofensa ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Nessa espécie de mútuo a parte passiva é o consignante.
Por sua vez, a penhora é um ato executivo (ato do processo de execução), cuja finalidade é a individualização e preservação dos bens a serem submetidos ao processo de execução, como bem salientado por Francesco Carnelutti (Instituzioni del processo civile italiano, 5ª edição, 1956).
É um meio de fixar a responsabilidade executiva sobre determinados bens do devedor.
É o patrimônio do devedor, ou de alguém que tenha assumido responsabilidade pelo pagamento da dívida, que deve ser atingido pela penhora.
A proteção da impenhorabilidade ocorre somente se o mutuário (devedor) comprovar que os recursos oriundos do empréstimo consignado são necessários à sua manutenção e à da sua família.
O Superior Tribunal de Justiça concluiu que o salário, o soldo ou a remuneração são impenhoráveis, sendo tal regra excepcionada quando se tratar unicamente de constrição para pagamento de prestação alimentícia.
Nesse sentido:
"PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. ENUNCIADO ADMINISTRATIVO N. 3/STJ. SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL. MILITAR. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. CONTRATO DE MÚTUO. INADIMPLEMENTO. CONSIGNAÇÃO EM FOLHA DE PAGAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. IMPENHORABILIDADE DO SOLDO. ART. 649, IV, DO CPC/1973. PRECEDENTES. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO.1. A parte ora agravante pretende que o valor das prestações inadimplidas relativas ao contrato de mútuo firmado entre as partes seja objeto de penhora sobre os proventos mensais da agravada, com o consequente restabelecimento da relação de consignação em folha prevista no contrato, até o pagamento integral do débito.2. O entendimento do STJ é de que o salário, soldo ou remuneração são impenhoráveis, nos termos do art. 649, IV, do CPC/1973, sendo essa regra excepcionada unicamente quando se tratar de penhora para pagamento de prestação alimentícia.3. Agravo interno não provido."(AgInt no REsp 1.579.345/RJ, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 27/6/2017, DJe 30/6/2017).
Mas, de outro modo, tem-se:
"PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. PENHORA DE PROVENTOS DE APOSENTADORIA. RELATIVIZAÇÃO DA REGRA DA IMPENHORABILIDADE. (...) 2. O propósito recursal é decidir sobre a possibilidade de penhora de 30% (trinta por cento) de verba recebida a título de aposentadoria para o pagamento de dívida de natureza não alimentar.3. Quanto à interpretação do art. 649, IV, do CPC/73, tem-se que a regra da impenhorabilidade pode ser relativizada quando a hipótese concreta dos autos permitir que se bloqueie parte da verba remuneratória, preservando-se o suficiente para garantir a subsistência digna do devedor e de sua família. Precedentes.4. Ausência no acórdão recorrido de elementos concretos suficientes que permitam afastar, neste momento, a impenhorabilidade de parte dos proventos de aposentadoria do recorrente.5. Recurso especial conhecido e parcialmente provido."(REsp 1.394.985/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/6/2017, DJe 22/6/2017).
Diante da divergência instaurada, conforme demonstrado acima, a Corte Especial do STJ, no final do ano de 2018, assentou a impenhorabilidade só se aplica à parte do patrimônio do devedor que seja efetivamente necessária à manutenção de seu mínimo existencial, à manutenção de sua dignidade e da de seus dependentes e, com isso, permitiu a penhora de parte do salário para o pagamento de dívida de natureza não alimentar. Eis, por oportuno, a ementa do referido julgado:
“PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. IMPENHORABILIDADE DE VENCIMENTOS. CPC/73, ART. 649, IV. DÍVIDA NÃO ALIMENTAR. CPC/73, ART. 649, PARÁGRAFO 2º. EXCEÇÃO IMPLÍCITA À REGRA DE IMPENHORABILIDADE. PENHORABILIDADE DE PERCENTUAL DOS VENCIMENTOS. BOA-FÉ. MÍNIMO EXISTENCIAL. DIGNIDADE DO DEVEDOR E DE SUA FAMÍLIA.1. Hipótese em que se questiona se a regra geral de impenhorabilidade dos vencimentos do devedor está sujeita apenas à exceção explícita prevista no parágrafo 2º do art. 649, IV, do CPC/73 ou se, para além desta exceção explícita, é possível a formulação de exceção não prevista expressamente em lei.2. Caso em que o executado aufere renda mensal no valor de R$ 33.153,04, havendo sido deferida a penhora de 30% da quantia.3. A interpretação dos preceitos legais deve ser feita a partir da Constituição da República, que veda a supressão injustificada de qualquer direito fundamental. A impenhorabilidade de salários, vencimentos, proventos etc. tem por fundamento a proteção à dignidade do devedor, com a manutenção do mínimo existencial e de um padrão de vida digno em favor de si e de seus dependentes. Por outro lado, o credor tem direito ao recebimento de tutela jurisdicional capaz de dar efetividade, na medida do possível e do proporcional, a seus direitos materiais.4. O processo civil em geral, nele incluída a execução civil, é orientado pela boa-fé que deve reger o comportamento dos sujeitos processuais. Embora o executado tenha o direito de não sofrer atos executivos que importem violação à sua dignidade e à de sua família, não lhe é dado abusar dessa diretriz com o fim de impedir injustificadamente a efetivação do direito material do exequente.5. Só se revela necessária, adequada, proporcional e justificada a impenhorabilidade daquela parte do patrimônio do devedor que seja efetivamente necessária à manutenção de sua dignidade e da de seus dependentes.6. A regra geral da impenhorabilidade de salários, vencimentos, proventos etc. (art. 649, IV, do CPC/73; art. 833, IV, do CPC/2015), pode ser excepcionada quando for preservado percentual de tais verbas capaz de dar guarida à dignidade do devedor e de sua família.7. Recurso não provido”.(EREsp 1.582.475/MG, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, CORTE ESPECIAL, julgado em 3/10/2018, REPDJe 19/03/2019, DJe 16/10/2018).
Entendeu-se, pois que o mutuário (devedor) recebe determinada quantia do mutuante (instituição financeira ou cooperativa de crédito) e, em contrapartida, ocorre a diminuição do salário devido aos descontos efetuados diretamente na folha de pagamento. Porém, ainda que as parcelas do empréstimo contratado sejam descontadas diretamente da folha de pagamento do mutuário, a origem desse valor não é salarial, pois não se trata de valores decorrentes de prestação de serviço, motivo pelo qual não possui, em regra, natureza alimentar.