ATRAVESSAR O RUBICÃO
Rogério Tadeu Romano
O presidente da República dá todas os tons de que quer armar a população.
Isso é um perigo, pois pode levar a criação e adoção de grupos armados contra a democracia.
Os decretos que tem editado nesse sentido além de inconstitucionais, pois normas secundárias regulamentadoras não podem afrontar a lei, constituem-se uma preocupação para os que querem o respeito ao Estado Democrático de Direito.
Segundo a Folha Pernambuco, o ex-ministro Raul Jungmann revelou essa preocupação:
"É inafastável a constatação de que o armamento da cidadania para 'a defesa da liberdade' evoca o terrível flagelo da guerra civil, e do massacre de brasileiros por brasileiros, pois não se vislumbra outra motivação ou propósito para tão nefasto projeto", diz.
"Ao longo da história, o armamento da população serviu a interesses de ditaduras, golpes de Estado, massacre e eliminação de raças e etnias, separatismos, genocídios e de ovo da serpente do fascismo italiano e do nazismo alemão", escreveu.
Desnecessário lembrar os tristes fins de ditadores como Mussolini e Hitler. Um foi morto e seu cadáver vilipendiado em praça pública. O outro, segundo os que revelam os livros de história, suicidou-se e para não ter o mesmo fim amargo de seu colega italiano mandou queimar seu cadáver. Tudo isso em abril de 1945.
No Brasil, como reação ao regime autoritário instalado em 1964 e que vigorou até 1985, a Constituição de 1988 estabeleceu, no capítulo relativo aos direitos e garantias fundamentais, que "constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis e militares, contra a ordem constitucional e o Estado.
Dispõe a Constituição de 1988, no seu inciso XLIV:
XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;
A legislação penal brasileira, já existia, à época da promulgação da Constituição de 1988, tinha na Lei de Segurança Nacional os artigos 16 e 14:
Art. 16 - Integrar ou manter associação, partido, comitê, entidade de classe ou grupamento que tenha por objetivo a mudança do regime vigente ou do Estado de Direito, por meios violentos ou com o emprego de grave ameaça.
Pena: reclusão, de 1 a 5 anos.
Art. 24 - Constituir, integrar ou manter organização ilegal de tipo militar, de qualquer forma ou natureza armada ou não, com ou sem fardamento, com finalidade combativa.
Pena: reclusão, de 2 a 8 anos.
Como disse Celso Ribeiro Bastos(Comentários à Constituição do Brasil, segundo volume 1989, pág. 228), o primeiro objetivo que se extrai do preceito é o do reforço da ordem constitucional e do Estado democrático, ideal mais alto perseguido pelas organizações políticas, sobretudo do chamado bloco ocidental.
O dispositivo que já constava no artigo 16 daquela Lei de Segurança Nacional de 1983, ora revogada, reprime ações contra a democracia e a ordem constitucional, que, no Brasil adota o modelo do Estado Democrático de Direito.
Em segundo lugar, retorna-se à preocupação de inserir no comportamento delituoso as ações agressivas provindas de quaisquer quadrantes da realidade nacional. São assim puníveis tanto civis quanto militares.
Com essa apenação é possível, como ainda disse Celso Ribeiro Bastos, que os revoltosos sintam o reforço da intimação jurídica que procura colocar-se acima do colapso momentâneo do Estado. É preciso resguardar a ordem constitucional e o Estado Democrático.
Assim a Constituição determina que sejam coibidos os grupos armados e os atentados à ordem constitucional e ao Estado Democrático, repito.
Vale dizer que comportamentos criminosos, deflagrados por ações agressivas provenientes de grupos armados, civis e militares, constituem atentados à República Federativa do Brasil, porque traduzem a fleuma de ilicitude. Como bem acentuou Uadi Lammêgo Bulos(Constituição Federal Anotada, 6ª edição, pág. 266), note-se que o agravamento da forma de apenação do crime ali aviltado caracteriza-se pela inafiançabilidade e imprescritibilidade, do mesmo modo que o racismo, a tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e os crimes hediondos.
Mas é necessário precaução com relação àquele dispositivo constitucional, pois ele remete à legislação ordinária sobre o conceito de grupos armados.
O segundo protocolo adicional às Convenções de Genebra define grupos armados não estatais como “forças armadas dissidentes ou outros grupos armados organizados” que lutam entre si ou contra as forças armadas regulares.
Disse Elbo Marcus Lôbo de Souza(A responsabilização internacional de grupos armados de oposição) que “a conduta de grupos armados em situações de conflito armado interno é regulada pelo artigo 3 das Convenções de Genebra, que estabelece um regime jurídico mínimo a ser aplicado em tais situações. Esse artigo declara expressamente a incidência de regras humanitárias básicas sobre cada parte do conflito armado não internacional, o que tem sido interpretado pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) no sentido de incluir um dos mais importantes protagonistas em conflitos de tal natureza, os grupos armados1 . De acordo com esse dispositivo, os grupos armados organizados estão obrigados, inter alia, a respeitar a vida, integridade física e dignidade dos não combatentes, a se abster de tomar e usar reféns, e a deixar de aplicar a execução sumária, isto é, sem o devido processo legal.”
A antiga LSN, protegia o Estado. A nova Lei recentemente sancionada, com vetos, pelo atual presidente da República protege à sociedade.
O projeto de lei há pouco aprovado pelo Parlamento brasileiro, que revogou a Lei de Segurança Nacional, desdobrou esse crime em vários delitos autônomos, inserindo-os no Código Penal, com destaque para a conduta de subverter as instituições vigentes, "impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais". Outro comportamento delituoso corresponde ao golpe de Estado, caracterizado como “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”. Ambos os ilícitos são sancionados com penas severas, agravadas se houver o emprego da violência.
Mas o presidente da República vive sob o trauma da dualidade amigo-inimigo.
É a contraposição amigo-inimigo, data vênia, própria das lições de Karl Schmitt.
É o maniqueísmo a ferro e fogo.
Essa tese de triste memória tem origem na visão de Karl Schmitt:
Para Schmitt, a contraposição amigo-inimigo só pode ser corretamente assimilada a partir da política concebida como conceito autônomo, topograficamente localizado no interregnum entre as categorias moral, jurídica, econômica, etc. e a ficção da neutralidade, o que não significa que ela não se encontra imbricada com questões éticas, eclesiásticas ou sócio-ideológicas. A tese central do autor é que o político, enquanto ubiquidade, não deriva de fatores remotamente estabelecidos a partir de um encadeamento causal-naturalístico, como querem os jusnaturalistas, tampouco pode ser deduzido de critérios de estrita legalidade balizadores do pensamento juspositivista. A política sequer é uma esfera específica do Estado, a teor do que proclamam equivocadamente os administrativistas. O político se erige em condição legítima de possibilidade da caracterização de um inimigo público, na medida em que “o inimigo não é, portanto, o concorrente ou o opositor em geral. O inimigo também não é o opositor privado que se odeia com sentimentos de antipatia. O inimigo é, apenas, uma totalidade de homens pelo menos eventualmente combatente, isto é, combatente segundo uma possibilidade real, a qual se contrapõe a uma totalidade semelhante. O inimigo é apenas o inimigo público, pois tudo aquilo que tem relação com uma tal totalidade de homens, em particular, com todo um povo, se torna por isso público. O inimigo é hostis, não inimicus em sentido mais amplo”, (SCHMITT, Carl. O Conceito do Político, pgs. 55 e 56)
Essa foi a linha traçada na defesa de um forte movimento de extrema-direita que foi voga na Alemanha: o nazismo.
Em artigo publicado no dia 29 de agosto de 2021, no jornal “Folha de S. Paulo”, o vice-decano do STF, apesar de não citar nominalmente o presidente Jair Bolsonaro, referia-se ao fato de ele ter estimulado a população a comprar armas de fogo.
O ministro Lewandowski inicia o texto falando que, na Roma antiga, uma lei impedia generais e suas tropas de atravessar o rio Rubicão, que demarcava fronteira com a província de Gália; mesmo assim, Júlio César violou a norma e instaurou uma ditadura, sendo assassinado anos depois.
"O episódio revela com exemplar didatismo, que as distintas civilizações sempre adotaram, com maior ou menor sucesso, regras preventivas para impedir a usurpação do poder legítimo pela força, apontando para as severas consequências às quais se sujeitam os transgressores."
O ministro diz que, além de a Constituição proibir a atuação de grupos armados contra a democracia, há entendimentos semelhantes no Código Penal, no Código Penal Militar e, em âmbito internacional, no Tribunal Penal Internacional.
Ele disse ser preciso registrar que "não constitui excludente de culpabilidade a eventual convocação das Forças Armadas e tropas auxiliares com fundamento no artigo 142 da Lei Maior, para a 'defesa da lei e da ordem', quando realizada fora das hipóteses legais".
Caso, no 7 de setembro de 2021, o atual presidente realmente “atravesse o Rubicão”, a sorte para a democracia estará lançada.
Restará, além de investiga-lo, processá-lo, prender os manifestantes armados contra a democracia e aplicar a Lei de Segurança Nacional.
Em 49 A.C, Julio Cesar ultrapassou como militar as margens do Rubicão e tornou-se ditador.
Cerca de cinco anos depois, foi assassinado a punhaladas por adversários políticos, dentre os quais seu filho adotivo Marco Júnio Bruto, numa cena imortalizada pelo dramaturgo inglês William Shakespeare, como lembrou o ministro Lewandowski.
Da leitura dessa obra, que tenho em língua inglesa, aquele autor imortalizado deixa claro o clima de terrível instabilidade que se instalou em Roma. E diziam os opositores a Cesar: Suportar os triunfos de Cesar?
Repito, para isso, o contexto da democracia militante.
Pensemos em barreiras legais à ação daqueles que advogam contra os princípios e as instituições democráticas. Nesse sentido, Karl Loewenstein propôs, em 1937, a controvertida doutrina da "democracia militante", incorporada pela Lei Fundamental em 1949 e aplicada pela Corte Constitucional alemã nas décadas seguintes. Foi o caso do combate a organizações terroristas de esquerdas que atuaram na década de 1970 na Alemanha.
Por essa doutrina, é possível investigar e mesmo restringir direitos de grupos que ameaçam a democracia, como agora ocorre com os radicais no Brasil.
Isso pode-se chamar de democracia militante.