Uma correta interpretação para a Lei da Ficha Limpa

09/09/2021 às 13:26
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O artigo aborda discussão do STF envolvendo a intepretação do artigo 1º, inciso I, da Lei Complementar 64/90, com a redação dada pelo artigo 2º da Lei Complementar 135/2010.

I – O INCISO I DO ARTIGO PRIMEIRO DA LEI COMPLEMENTAR 64/90

Dita o inciso I do art. 1º da LC 64/90, com a redação dada pelo art. 2º da Lei Complementar n. 135/2010. Leia o dispositivo questionado:

Art. 1º São inelegíveis:

I - para qualquer cargo:

e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes (...)


II –ADIn 6.630

O Partido Democrático Trabalhista (PDT) entrou com uma Adin entendendo que a previsão contida na norma desencadeia uma inelegibilidade por tempo indeterminado. Nesse sentido, a agremiação afirma que o prazo indeterminado de inelegibilidade, na prática, acarretaria a cassação de direitos políticos, prática vedada pela CF.

Segundo o site Migalhas, em 8 de setembro do corrente ano, o ministro Nunes Marques, relator, votou no sentido de dar interpretação conforme a Constituição para admitir que, do prazo de inelegibilidade de oito anos "posteriores ao cumprimento da pena", seja deduzido o período de inelegibilidade decorrido entre a condenação por órgão colegiado, ou transitada em julgado, e o fim do cumprimento da pena criminal, "de tal modo que a correspondente inelegibilidade não supere os 8 anos desde o início da sua eficácia".

O entendimento do ministro Nunes Marques também estabelece que, em caso de a detração (abatimento) implicar o fim da inelegibilidade em data anterior ao término do cumprimento da pena criminal, o condenado não fica isento da aplicação da norma suspensiva dos direitos políticos.

De acordo com o relator, a única forma coerente de se interpretar a vontade do legislador em harmonia com a Constituição é reconhecer a autoridade da decisão colegiada como marco idôneo a desencadear a contagem do prazo de oito anos.

"admitir a inelegibilidade decorrente da condenação provisória como incompensável no total da pena equivale a deixar de observar o princípio do amplo acesso à jurisdição, na medida em que, na prática, induz prejuízo certo ao candidato que opte por interpor recurso de decisão condenatória."

Para o ministro Luís Roberto Barroso, a inelegibilidade deve ter início com a condenação por órgão colegiado ou com o trânsito em julgado. Além disso, o ministro concluiu que, do prazo de oito anos após o cumprimento da pena, deve ser deduzido o período transcorrido entre a condenação por órgão colegiado e o trânsito em julgado.

O ministro Barroso entendeu que se deve prestigiar a interpretação que, "afastando possíveis excessos", garanta a incidência da lei da ficha limpa. "Caso pudesse ser deduzido do prazo de oito anos após o cumprimento da pena todo o período de condenação criminal, não haveria sequer garantia da observância, de forma autônoma, do prazo de inelegibilidade da lei da ficha limpa", afirmou.

"não se pode ignorar que a Lei da Ficha Limpa, de iniciativa popular, aprovada pelo Poder Legislativo e julgada constitucional por esta Corte, decidiu restringir a participação nas eleições de pessoas condenadas pelos crimes que considera especialmente graves."

A matéria é objeto da ADIn 6.630.

O tema ainda no STF encontra-se em discussão.

O ministro Alexandre de Moraes, do STF, pediu vista e suspendeu julgamento acerca da contagem do prazo de inelegibilidade decorrente de condenações criminais previsto na lei da ficha limpa.


III – A INTERPRETAÇÃO CONFORME

Com o devido respeito e todas as vênias entendo que para o caso deve ser aplicado a chamada interpretação conforme para aquele texto constitucional.

É sabido pelos estudiosos que a interpretação conforme à Constituição passou a ser utilizada no âmbito do chamado controle abstrato das normas, como se lê da Rp 948, relator ministro Moreira Alves, RTJ 82:55-6 e ainda Rp 1.100, RTJ 115:993.

Limita-se o Tribunal a declarar a legitimidade do ato questionado desde que interpretado em conformidade com a Constituição (Rp 1.454, relator ministro Octávio Gallotti, RTJ 125:997).

O resultado da interpretação conforme é incorporado, de forma resumida, na parte dispositiva da decisão.

Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a interpretação conforme à Constituição, conhece limites. Eles resultam tanto da expressão literal da lei quanto da chamada vontade do legislador. A interpretação conforme à Constituição é, por isso, apenas admissível se não configurar violência contra a expressão literal do texto, como dizia Lúcio Bittencourt (O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis, pág. 95), e não alterar o significado do texto informativo, com mudança radical da própria concepção original do legislador.

Como decidiu-se na Rp 1.454, relator Octávio Gallotti, RTJ 125:997, dentre outras decisões, a prática demonstrou que o Tribunal não confere maior significado à chamada intenção do legislador ou evita investiga-la, se a interpretação conforme à Constituição se mostra possível dentro dos limites da expressão literal do texto.

O princípio da interpretação das leis em conformidade com a Constituição é, como alertou J.J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 4º edição, pág. 1189), fundamentalmente um princípio de controle e ganha relevância autônoma quando a utilização dos vários elementos interpretativos não permite a obtenção de um sentido inequívoco dentro de vários significados da norma.

Para J.J.Gomes Canotilho (obra citada) essa formulação comporta várias dimensões: a) o princípio da prevalência da Constituição impõe que, dentre as várias possibilidades de interpretação, só se deve escolher-se uma interpretação não contrária ao texto e programas da norma ou normas constitucionais; b) o princípio da conservação de normas afirma que uma norma não deve ser declarada inconstitucional quando, observados os fins da norma, ela pode ser interpretada em conformidade com a Constituição; c) o princípio da exclusão da interpretação conforme a Constituição, mas “contra legem” impõe que o aplicador de uma norma não pode contrariar a letra e o sentido dessa norma através de uma interpretação conforme a Constituição, mesmo que através desta interpretação consiga uma concordância entre a norma infraconstitucional e as normas constitucionais. Assim, quando estiverem em causa duas ou mais interpretações – todas essas em conformidade com a Constituição – deverá procurar-se a interpretação considerada como a melhor orientada para a Constituição.

Na lição de Jorge Miranda (Manual de Direito Constitucional, 2ª. Edição, Coimbra, Ed. Coimbra, 1983, p..233) a interpretação conforme à Constituição não consiste tanto em escolher, dentre os vários sentidos possíveis e normais de qualquer preceito, o que seja mais conforme com a Constituição, e sim, em discernir no limite – na fronteira da inconstitucionalidade – um sentido que, conquanto não aparente ou decorrente de outros elementos de interpretação, é o sentido necessário e o que se torna possível por virtude da forma conformadora da Lei Fundamental.

Ao intérprete cabe escolher a compatível com a Constituição e a regra é a conservação da validade da lei e não a declaração de sua inconstitucionalidade, como lembrou Marilda Watanabe de Mendonça (A interpretação conforme. Análise constitucional de suas peculiaridades).

Observou o ministro Luís Roberto Barroso (Interpretação e Aplicação da Constituição. 7ª. Edição revista, S.P., Ed. Saraiva, 2010) que há necessidade de se decompor o processo de "interpretação conforme" em 04 (quatro) elementos distintos: a) escolha de uma interpretação em harmonia com a Constituição, em meio a outra ou outras possibilidades interpretativas que a norma admita; b) a busca de um sentido possível para a norma, que não é o que mais evidentemente resulta do texto; c) admissão de uma linha de interpretação e exclusão de outra (s) que não seria (m) incompatível (s) com a Constituição; d) além de mecanismo de interpretação, é um mecanismo de controle de constitucionalidade porque se declara ilegítima uma determinada leitura da normal.

A partir da lição de Lúcio Bittencourt (O controle jurisdicional de constitucionalidade das leis, 1968, pág. 93), o ministro Gilmar Mendes (Jurisdição constitucional, 5ª edição, pág. 347) aduziu que os tribunais devem partir do princípio de que o legislador busca positivar uma norma constitucional.

Assim a interpretação conforme à Constituição passou a ser utilizada, igualmente, no controle abstrato das normas. Como ainda ensinou o ministro Gilmar Mendes (obra citada, pág. 347), consoante a prática vigente, limita-se o tribunal a declarar a legitimidade do ato questionado desde que interpretado conforme a Constituição.

A favor da admissibilidade da interpretação conforme à Constituição milita ainda a presunção da constitucionalidade da lei, fundada na ideia de que o legislador não tenha pretendido votar lei inconstitucional, como aduziu Bittencourt (obra citada, pág. 95).

A interpretação conforme, porém, tem seus limites.

Ensinou o ministro Gilmar Mendes que “não se deve conferir a uma lei com sentido inequívoco significação contrária assim como não deve falsear os objetivos pretendidos pelo legislador".

Disse ainda o ministro Gilmar Mendes (obra citada, pág. 349) que segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a interpretação conforme à Constituição conhece limites. Eles resultam tanto da expressão literal da lei quanto da chamada vontade do legislador. A interpretação conforme à Constituição é, por isso, apenas admissível se não configurar violência contra a expressão literal do texto e não alterar o significado do texto normativo, com mudança radical da própria concepção original do legislador.

Não se pode esquecer da lição formulada pelo ministro Moreira Alves que reconheceu a interpretação conforme à Constituição, quando fixada no juízo abstrato das normas, corresponde a uma pronúncia de inconstitucionalidade. Disse o ministro Moreira Alves:

“Ao declarar a inconstitucionalidade de uma lei em tese, o Tribunal – em sua função de Corte Constitucional – atua como um legislador negativo”.

Ora, o mesmo ocorre quando a Corte dessa natureza, aplicando a interpretação conforme à Constituição, declara constitucional uma lei com a interpretação que a compatibiliza com a Constituição, pois nessa hipótese há um caso de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, implicando dizer, como ensinou o ministro Gilmar Mendes (obra citada, pág. 352), que o Tribunal Constitucional “elimina – e atua, portanto, como legislador negativo – as interpretações por ela admitidas, mas inconciliáveis com a Constituição. Concluiu o ministro Gilmar Mendes (obra citada): “Porém, a interpretação fixada, como única admissível, pelo Tribunal Constitucional, não pode contrariar o sentido da norma inclusive decorrente de sua gênese legislativa inequívoca, porque não pode Corte dessa natureza atuar como legislador positivo, ou seja, o que cria norma nova”.

Há, conforme ensinou o ministro Alexandre de Moraes (Direito Constitucional, 24ª.Ed., S.P., 2009) três espécies de interpretação conforme:

a) Interpretação conforme com redução de texto. Nesta espécie se declara a inconstitucionalidade de determinada expressão, possibilitando a partir dessa exclusão do texto, uma interpretação compatível com a Constituição. Ex. ADIN 1.127-8 (O STF excluiu a expressão desacato do art. 7º, § 2º. do Estatuto da OAB concedendo à imunidade material aos advogados, compatibilizando o dispositivo com o artigo 133 da C.F./88.

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b) Interpretação conforme sem redução de texto. Nesta espécie o Supremo não suprime do texto nenhuma expressão, conferindo à norma impugnada uma determinada interpretação que lhe preserve a constitucionalidade. São exemplos: Adin 1371 ; ADI 1521-MC; AGA nº 311369/SP.

c) Interpretação conforme sem redução de texto, excluindo da norma impugnada uma interpretação que lhe acarretaria a inconstitucionalidade. Ex. ADI 1719-9 (Rel. Min. Moreira Alves)

O Supremo Tribunal Federal, segundo orientação formulada pelo ministro Moreira Alves, reconheceu que a interpretação conforme à Constituição, quando fixada no juízo abstrato de normas, corresponde a uma pronúncia de inconstitucionalidade. Daí porque, antes da edição da Constituição, e sob a égide da Emenda Constitucional nº 7/77, entendeu-se incabível a sua aplicação no âmbito da chamada representação interpretativa (voto na Rp. 1.417, DJ de 15 de abril de 1988).

Discutiu a doutrina e a jurisprudência do STF se a interpretação conforme à Constituição haveria de ser, sempre, a uma declaração de nulidade sem redução de texto.

Em decisão, no dia 9 de novembro de 1987, o STF deixou assente que a interpretação conforme à Constituição não deve ser vista como simples princípio de interpretação, mas sim como modalidade de decisão do controle das normas, equiparável a uma declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto (Rp. 1.417, relator ministro Moreira Alves, RTJ 126:48). Mas, o Tribunal não procedeu, inicialmente, não procedeu a qualquer alteração na parte dispositiva da decisão, que continuou a afirmar a improcedência da arguição, desde que adotada uma determinada interpretação.

Segundo o ministro Gilmar Mendes (Controle concentrado da constitucionalidade, 2001, pág. 299), as decisões proferidas pelo STF, nas ADins 491 e 319, todas da relatoria do ministro Moreira Alves, parecem sinalizar que, pelo menos no controle abstrato de normas, o tribunal tem procurado, nos casos de exclusão de determinadas hipóteses de aplicação ou hipóteses de interpretação do âmbito normativo, acentuar a equivalência dessas categorias (ADIn 491 – Medida cautelar, relator ministro Moreira Alves, RTJ 137?90; Adin 319, relator ministro Moreira Alves, DJ de 30 de abril de 1993).

Discute-se a repercussão com relação ao chamado programa normativo.

Dentro da metódica jurídica normativo-estruturante, são componentes da norma, o programa normativo e o domínio normativo. O programa normativo, como informou J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e teoria da Constituição, 4ª edição, pág. 1179), é o resultado de um processo parcial de concretização assente fundamentalmente na interpretação do texto normativo. O setor normativo é o resultado do segundo processo parcial de concretização fulcrado sobretudo na análise dos elementos empíricos (dados reais, dados da realidade).

Com isso, tem-se o método estruturante, na concretização da Constituição (que se traduz num processo de densificação de regras e princípios constitucionais), que vai do texto da norma para uma norma concreta, na tentativa de descobrir uma norma de decisão.

Densificar uma norma significa preencher, complementar e precisar o espaço normativo de um preceito constitucional, especificamente carecido de concretização, a fim de tornar possível a solução, por esse preceito, dos problemas concretos enfrentados pelo intérprete. Densifica-se um espaço normativo (preenche-se uma norma) para tornar possível a sua concretização e a consequente aplicação de um caso concreto.

Mas uma norma jurídica adquire verdadeira normatividade quando com a “medida de ordenação”, nela contida se decide um caso jurídico, ou seja, quando o processo de concretização se completa através de sua aplicação, como anotou Canotilho (obra citada pág. 1184), ao caso jurídico a decidir: a) a criação de uma disciplina regulamentadora ; b) através de uma sentença ou decisão judicial; c) através da prática de atos individuais pelas autoridades. Com isso uma norma jurídica que era potencialmente normativa ganha uma normatividade atual e imediata através de sua passagem a norma de decisão, que regula concreta e vinculativamente o caso carecido de solução normativa. Estamos diante de uma norma de decisão.

Pois bem: ainda que se possa negar a semelhança dessas categorias e a proximidade do resultado prático de sua utilização, é certo que, enquanto na interpretação conforme à Constituição se tem, dogmaticamente, a declaração de que uma lei é constitucional com a interpretação que lhe é conferida pelo órgão judicial, constata-se, na declaração de nulidade sem redução do texto, a expressa exclusão por inconstitucionalidade de determinadas hipóteses de aplicação do programa normativo sem que se produza alteração expressa do texto.

Como acentuou o ministro Gilmar Mendes (obra citada, pág. 301), “assim, se se pretende realçar que determinada aplicação do texto normativo é inconstitucional, dispõe o Tribunal da declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, que, além de mostrar-se tecnicamente adequada para essas situações, tem a virtude de ser dotada de maior clareza e segurança jurídica expressa na parte dispositiva da decisão (a lei X é inconstitucional se aplicável a tal hipótese; a lei Y é inconstitucional se autorizativa da cobrança do tributo em determinado exercício financeiro)”.

No caso de decisão proferida na ADIn 491, tudo pareceu indicar que o STF esteve disposto a afastar da orientação anterior, que equiparava a interpretação conforme à Constituição à declaração de nulidade parcial sem redução de texto, passando-se a se deixar explícito, no caso de declaração de nulidade sem redução de texto, que determinadas hipóteses de aplicação, constantes do programa normativo da lei, são inconstitucionais, daí porque são nulas.


IV – A ADIN 4.578 E A COISA JULGADA

É certo que o STF discutiu o tema na Ação direta de inconstitucionalidade n. 4.578, Plenário, relator o ministro Luiz Fux, julgado em 16 de fevereiro de 2012.

O ministro Luiz Fux aventou a necessidade de se proceder a “uma interpretação conforme à Constituição, para que, tanto na hipótese da alínea ‘e’ como da alínea ‘l’ do inciso I do art. 1º da Lei Complementar nº 64/90, [para que] seja possível abater, do prazo de inelegibilidade de 8 (oito) anos posterior ao cumprimento da pena, o período de inelegibilidade já decorrido entre a condenação não definitiva e o respectivo trânsito em julgado”, entendendo que “essa é uma forma oblíqua de cassação de direitos políticos”.

Como disse o ministro Nunes Marques a despeito daquela proposta, a apreciação acerca do inciso e não foi acompanhada pelos demais ministros do Colegiado, tampouco foi diretamente abordada em seus votos, senão superficialmente. Procedeu-se tão-somente ao exame de constitucionalidade restrito às hipóteses de inelegibilidade, sem que a questão do termo inicial da contagem do prazo de inelegibilidade, em casos de condenações por órgãos colegiados, tenha sido enfrentada de maneira exaustiva.

Não há que se falar em coisa julgada na matéria.

Sobre isso já disse o ministro Luis Roberto Barroso:

“Parece totalmente inapropriado que se impeça o Supremo Tribunal Federal de reapreciar a constitucionalidade ou não de uma lei anteriormente considerada válida, à vista de novos argumentos, de novos fatos, de mudanças formais ou informais no sentido da Constituição ou de transformações na realidade que modifiquem o impacto ou a percepção da lei. Portanto, o melhor entendimento na matéria é o de que podem os legitimados do art. 103 propor ação tendo por objeto a mesma lei e pode a Corte reapreciar a matéria. O que equivale a dizer que, no caso de improcedência do pedido, a decisão proferida não se reveste da autoridade de coisa julgada material . (O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 227/228).

Sobre isso nos ensinou Luis Guilherme Marinoni (Precedentes obrigatórios . São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019) que negar ao Supremo Tribunal Federal, sob o fundamento de existência de coisa julgada, que seja revista decisão por ele próprio proferida, “[...] impediria[m] o adequado desenvolvimento da ordem constitucional”.


V – A CORRETA INTERPRETAÇÃO

Realmente, como disse o ministro Nunes Marques “o propósito moralizador da Lei Complementar n. 135/2010 fruto de louvável movimento da sociedade civil, que se articulou para dar início ao processo legislativo em sua modalidade de iniciativa popular não lhe confere salvo-conduto para produzir o indevido alargamento da duração da incapacidade eleitoral passiva do condenado, sob pena de se referendar a criação, por via transversa, de verdadeira hipótese de suspensão dos direitos políticos por prazo indeterminado.”

Com efeito, a partir da condenação por órgão colegiado, o indivíduo já está inelegível, por força do que está na nova redação da letra e do art. 1º, I, da Lei Complementar n. 64/1990. No entanto, paradoxalmente, o prazo da superação da inelegibilidade não está contando , porque a lei diz que ele só conta depois que a pena (criminal) for cumprida . Então, isso significa que o cidadão está cumprindo a sanção (inelegibilidade), mas isso não é computado como cumprimento. Trata-se claramente de solução legislativa arbitrária.

O sistema constitucional não pode conviver e aceitar perplexidades que tragam juízos que esborrem a razoabilidade.

Proferida decisão por órgão judicial colegiado, o candidato já está inelegível. Tal inelegibilidade se renova com o trânsito em julgado da decisão, sendo que, até então, o apenado não terá contado sequer um dia de cumprimento da inelegibilidade (que ele efetivamente estará cumprindo). E o prazo de oito anos começará a contar apenas após o integral cumprimento da pena.

Na prática, portanto, há três marcos temporais que acabam por renovar a inelegibilidade (condenação colegiada, trânsito em julgado, final do cumprimento da pena criminal), sendo que apenas após o cumprimento da pena o prazo de cessação da sanção será efetivamente contado, o que gera situação deveras arbitrária, como disse o ministro Nunes Marques. O populismo na aplicação da lei deve ser afastado.

A única forma coerente de se interpretar a vontade do legislador em harmonia com a Constituição e com os demais dispositivos e prazos de inelegibilidade estabelecidos na Lei da Ficha Limpa é reconhecer a autoridade da decisão colegiada como marco idôneo a desencadear a contagem do prazo de oito anos e, consequentemente, admitir-se o abatimento do prazo de inelegibilidade de oito anos posteriores ao cumprimento da pena, do período de inelegibilidade decorrido entre a condenação não definitiva (decisão colegiada) e o respectivo trânsito em julgado. Essa a melhor interpretação trazida pelo ministro Nunes Marques.

Sendo assim deve-se admitir que, do prazo de inelegibilidade de oito anos “posteriores ao cumprimento da pena”, seja deduzido o período de inelegibilidade decorrido entre a condenação por órgão colegiado, ou transitada em julgado, e o fim do cumprimento da pena criminal, de tal modo que a correspondente inelegibilidade não supere os 8 (oito) anos desde o início da sua eficácia.

Em sendo assim ficam espancadas eventuais interpretações que levam a desproporcionalidade da pena que deve ser aplicada pela chamada “Lei da Ficha Limpa”, admitindo-se a chamada interpretação conforme. 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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