Resenha do texto “Controle de constitucionalidade e democracia: algumas teorias e parâmetros de ativismo”.

12/09/2021 às 10:54
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SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Controle de constitucionalidade e democracia: algumas teorias e parâmetros de ativismo. In SARMENTO, Daniel (coord). Jurisdição constitucional e política. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

Referência completa: 

SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Controle de constitucionalidade e democracia: algumas teorias e parâmetros de ativismo. In SARMENTO, Daniel (coord). Jurisdição constitucional e política. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

Na obra resenhada, os autores iniciam com uma abordagem sucinta do papel do STF na Constituição de 1988, afirmando que a política assumida pela Corte tem como fundamento “o exercício mais frequente e ativista da jurisdição constitucional” (p. 74). Considerando que as críticas desse fenômeno passam pela sua definição como antidemocrático e que significaria o excesso nas atribuições dos poderes dos magistrados, a obra passa a analisar a expansão da jurisdição constitucional e suas respectivas correntes doutrinárias, bem como propor alguns parâmetros para controle do ativismo judicial em sede de jurisdição constitucional. 

Ao analisar a expansão da jurisdição constitucional, os autores atribuem o fenômeno à mudança de foco das constituições, que deixaram de ser meras proclamações políticas para concentrar direitos concretos para o cidadão. Ressaltaram que a maioria dos países só passou a contar com mecanismos de controle de constitucionalidade a partir da segunda metade do Século XX, pois esses eram considerados antidemocráticos, que permitiam um governo de juízes. Paulatinamente, a Europa passou a aderir a constituições mais substanciais e, consequentemente, a permitir maior controle de constitucionalidade. Atualmente, existe uma “tendência global à adoção de um modelo de constitucionalismo em que as constituições são vistas como normas jurídicas autênticas, que podem ser invocadas perante o Poder Judiciário e ocasionar a invalidação de leis ou outros atos normativos” (p. 76).

O Brasil desde a República conta com sistema de controle de constitucionalidade, inicialmente difuso e concreto, passando a ser também concentrado e abstrato por meio da EC 16/1965. O controle abstrato obteve relevo com a CF 1988, que aumentou o rol de legitimados para a propositura das ADIN, bem como pela maior conscientização dos cidadãos quanto aos direitos nela estampados. O fenômeno de expansão da jurisdição constitucional vem sendo denominado de judicialização da política.

A jurisdição constitucional leva ao problema da dificuldade contramajoritária, uma vez que a interpretação da constituição acaba relegada aos juízes e não aos representantes eleitos do povo. A crítica rebate que “a decisão sobre a interpretação mais correta da Constituição deve caber ao próprio povo ou aos seus representantes eleitos, e não a magistrados” (p. 78). Nesse sentido, “a dificuldade contramajoritária reside no reconhecimento de que, diante da vagueza e abertura de boa parte das normas constitucionais, bem como da possibilidade de que elas entrem em colisões, quem as interpreta e aplica também participa do seu processo de criação” (p. 79). Na França, historicamente rejeita-se o controle de constitucionalidade pelo Judiciário, e na Alemanha, Carl Schimitt entendia que a indeterminação das normas constitucionais deveria ser resolvida pelo Chefe de Estado, pois entregar tal função aos juízes ensejaria politização da justiça. 

Há quem simplesmente negue a dificuldade contramajoritária, negando, em verdade, que o Poder Judiciário, ao exercer controle de constitucionalidade, aja contra a maioria popular, uma vez que os julgamentos frequentemente seriam de acordo com a opinião pública. Os autores entendem que esse é um argumento interessante para o Brasil, em razão do que denominam “crise da democracia representativa” (p. 82). Afirmam que o STF geralmente reflete melhor a opinião pública do que as medidas adotadas pelo Legislativo. Quem recuse a dificuldade contramajoritária também afirma que a ela teria sido superada pela democratização da jurisdição constitucional, com o aumento do rol de legitimados para exercê-la. Ainda, afirma-se que “a democracia não equivale à mera prevalência da vontade das maiorias, mas corresponde a um ideal político mais complexo, que também envolve o respeito aos direitos fundamentais e valores democráticos” (p. 83). Por fim, também se aduz que o exercício da jurisdição constitucional seja conveniente para os órgãos representativos, que evitam decisões que podem indispô-los com o eleitorado. Os autores concordam em parte com essas afirmações. 

Historicamente, entendem que o controle de constitucionalidade e a democracia floresceram juntos, mas que o exagero desse controle pode se revelar antidemocrático por “cercear em demasia a possibilidade do povo se autogovernar” (p. 84). Passam, então, a analisar teorias sobre o papel da jurisdição constitucional na democracia: a) constitucionalismo popular, b) procedimentalismo e c) neoconstitucionalismo. 

“O constitucionalismo popular tem como característica central sustentar a ilegitimidade do controle jurisdicional da constitucionalidade” (p. 85). Dessa forma simples, não se aceita o controle de constitucionalidade pois a constituição tem objetivo de inspirar os cidadãos e, quando surge a controvérsia sobre direitos, possível em uma sociedade democrática, são os representantes do povo que devem dar a palavra final, não os juízes – esse é o pensamento de Waldron. Os autores também citam o posicionamento de Tushnet, para quem as questões constitucionais “devem ser retiradas das cortes e restituídas ao povo” (p. 87), uma vez que a supremacia judicial promove a irresponsabilidade dos legisladores pois eles relegariam as decisões importantes aos tribunais. Para Tushnet, até as crises políticas graves não devem ser entregues ao Judiciário, pois ele seria “incapaz de superá-las” (p. 87). Citam ainda Kramer, que entende a supremacia judicial “está assentada em uma atitude preconceituosa das elites em relação ao povo” (p. 88), uma vez que torna o direito constitucional complexo demais para ser entendido pelo cidadão comum. 

Os autores levantam a importante contribuição do constitucionalismo popular ao defender que a constituição não seja um documento técnico impossível de ser compreendido pelo povo nem apenas aquilo que dizem os tribunais. Porém, não coadunam com a proposta, principalmente no Brasil, onde a jurisdição constitucional vem sendo encarada como “principal mecanismo para resgate das promessas emancipatórias de nossa Constituição” (p. 89). Para os autores, o constitucionalismo popular idealiza o processo político que, na realidade, possui falhas e vicissitudes que comprometeriam a melhor interpretação da constituição. 

O procedimentalismo estaria em uma linha intermediária entre a negativa total da jurisdição constitucional e sua aceitação plena. Para os procedimentalistas, “o papel da constituição é definir as regras do jogo político” (p. 89) e, portanto, entendem que “decisões substantivas sobre temas controvertidos no campo moral, econômico, político, etc. não devem estar contidas na constituição” (p. 89). Nesse sentido, a jurisdição constitucional deve atuar exclusivamente para garantir o funcionamento da própria democracia como, por exemplo proteger o direito de que todos possam atuar em debates públicos. Assim, decisões substanciais devem ser tomadas pelos representantes do povo e não juízes – nesse sentido, apresentam o pensamento de John Hart Ely e Jürgen Habermas. 

Habermas defende que o debate público é que “racionaliza e legitima o processo decisório democrático” (p. 93), e elenca alguns direitos que, caso violados pela decisão majoritária, devem ser objeto de controle de constitucionalidade pelo Judiciário, na função de “guardião da democracia” (p. 94). Os autores criticam o procedimentalismo no sentido de que ele “não parece suficiente para assegurar garantia robusta a direitos fundamentais extremamente importantes” (p. 94), como direitos fundamentais que representem imperativos éticos. Considerando que a CF 1988 é “pródiga da consagração de valores materiais” (p. 95), o que obrigaria aos juízes brasileiros, caso adotassem o procedimentalismo, a ignorar ou superar valores constitucionalmente garantidos. 

O neoconstitucionalismo é a proposta claramente aceita pelos autores da obra. Trata-se da corrente doutrinária que defende a constitucionalização do Direito, com a interpretação de toda norma à luz da constituição. Considerando a abertura e indeterminação das normas constitucionais, comumente surgem dúvidas ou dificuldades de interpretação quanto à sua aplicabilidade e conteúdo, o que leva o Poder Judiciário a decidir, cada vez mais, questões constitucionais propostas por grupos políticos que tenham ‘perdido’ na seara legislativa. Nessa seara, o neoconstitucionalismo se dedica à discussão de métodos ou teorias da argumentação que permitam a busca da melhor resposta para os “casos difíceis” do Direito” (p. 98). Seria o “protagonismo judicial em defesa dos valores constitucionais” (p. 98), em que “as fronteiras entre Direito e Moral não são abolidas, mas elas se tornam mais tênues e porosas, na medida em que o próprio ordenamento incorpora, no seu patamar mais elevado, princípios de Justiça” (p. 99). Críticas ao neoconstitucionalismo estão do excesso de expectativas quanto ao Judiciário e possível “anarquia metodológica” que alimentaria um “decisionismo judicial” em razão do predomínio de técnicas de ponderação e argumentação em detrimento de regras. O positivismo possui carga negativa, no Brasil, recebendo críticas que, segundo os autores, não se sustentam. De qualquer forma, apesar da preferência dos autores pelo neoconstitucionalismo, eles esclarecem que não é possível que se substitua toda e qualquer invocação de normas por princípios, que não necessariamente condizem com o caso em análise, sob risco de se colocar em xeque a própria democracia e a divisão de poderes. 

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Entendo a relevância da jurisdição constitucional, porém acreditando que o exagero no ativismo judicial pode prejudicar a democracia, os autores apresentam alguns parâmetros que norteariam a autocontenção judicial. O primeiro parâmetro leva em conta a legitimidade democrática do processo de elaboração da norma judicialmente questionada. Em razão do valor dado a democracia, não se pode desprezar a dificuldade contramajoritária, o que ensejaria mais cuidado na análise da inconstitucionalidade de normas com maior participação democrática (como aquelas decorrentes de iniciativa popular ou referendadas por plebiscitos). O segundo parâmetro considera que devem ser protegidos os pressupostos da democracia, em consonância com a proposta do procedimentalismo. Os autores entendem que o Judiciário deve atuar ativamente para proteger a democracia e seus pressupostos. Outro parâmetro situa-se na atuação judicial para a proteção de minorias, uma vez que elas teriam reduzida voz no processo democrático e o ativismo judicial, nesse sentido, impediria a sua opressão pelas maiorias dominantes. Os autores também defendem que o Judiciário deve atuar mais energicamente na análise de “normas que restrinjam direitos básicos” (p. 105), pois elas possuem “presunção de constitucionalidade relativizada” (p. 105). Assim, o Judiciário seria relevante para “a garantia das condições básicas de vida e a proteção das liberdades essenciais” (p. 106). 

Deve-se considerar também, na autocontenção judicial na jurisdição constitucional, a competência técnica do Judiciário para decidir em determinadas áreas. Os autores se posicionam contrários a um “juiz Hércules” como o previsto por Dworkin e seguem o pensamento de Gustavo Binenbojm no sentido de que “quanto maior for o grau de tecnicidade da matéria, objeto de decisão por órgãos dotados de expertise e experiência, menos intenso deve ser o grau de controle judicial” (p. 109). Outro parâmetro deve ser o período em que o ato normativo contestado foi proferido, para saber se ele reflete interesses populares já superados, por exemplo. Os autores também discorrem sobre a “inconsistência temporal” como parâmetro de guia para a autocontenção, considerando que o povo tende a preferir resultados imediatos a propostas que reflitam resultados de longo prazo, sem que haja uma reflexão racional sobre essa escolha. “A jurisdição constitucional pode funcionar como instrumento de compensação desse déficit de racionalidade da ação coletiva orientada pela política majoritária” (p. 111). 

Concluindo, os autores definem que a constituição não é mais concebida como um instrumento exclusivamente para ditar regramentos políticos para os Estados, e que o Judiciário não pode mais ser compreendido como uma zona neutra de qualquer influência ideológica ou política. A jurisdição constitucional representa, para o Brasil, um relevante instrumento para efetivação de direitos fundamentais, porém “não é nem deve ser concebida como protagonista da narrativa constitucional da Nação” (p. 113). Com essa ressalva, deve-se pensar o ativismo judicial dentro de uma proposta de autocontenção, ou arrisca-se o processo democrático e a representatividade da própria constituição. 

Sobre a autora
Tatiana Mareto Silva

Doutora em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV, Mestre em Políticas Públicas e Processo pela FDC/UNIFLU, Pós-graduada em Processo Civil pela FDV, Professora do Curso de Direito do Centro Universitário São Camilo-ES.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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