O princípio da primazia da realidade é o instrumento capaz de viabilizar o confronto entre aquilo que se encontra disposto no contrato e aquilo que de fato ocorre no dia a dia laboral.
São diversas as situações em que o princípio pode ser aplicado, inclusive em favor do empregador, posto que as relações são pautadas na boa-fé objetiva, mas também na mudança de rotina de trabalho que, por muitas vezes, não são incluídas no contrato inicial.
Como exemplo, podemos citar situação na qual o empregado exerce função diversa da contratada, ou até mesmo quando as horas trabalhadas extrapolam o limite estipulado e não são devidamente remuneradas com a finalidade de sonegar impostos ou até mesmo usurpar direitos do trabalhador.
O artigo 468 da CLT assim dispõe:
“Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia.”
Portanto, quando ocorre alteração da função exercida pelo empregado, função esta diferente da qual fora contratado, temos o chamado desvio de função.
Contudo, o princípio da primazia da realidade é definido pela doutrina como a supremacia dos fatos em relação à verdade formal.
De acordo com Américo Plá Rodriguez:
“(...) em caso de discordância entre o que ocorre na prática e o que emerge de documentos ou acordos, deve-se dar preferência ao primeiro, isto é, ao que sucede no terreno dos fatos.” (PLÁ RODRIGUEZ, 2015, p.339).
Em uma síntese de palavras, este princípio na seara do Direito do Trabalho assegura a veracidade dos fatos concretos, mesmo que não estejam corretamente dispostos em documentos e registros.
Vale destacar a súmula 12 do TST que determina:
“as anotações apostas pelo empregador na Carteira de Trabalho do empregado não geram presunção juris et de jure, mas apenas juris tantum.”
Ou seja, mesmo que estiver disposto na carteira de trabalho que a função do empregado é de recepcionista de um posto de gasolina, mas é constatado evidentemente que o mesmo trabalha como frentista, por exemplo, é admitida prova contrária para que o empregado seja ressarcido de todos os eventuais prejuízos sofridos.
Luciano Martinez, Doutor e Mestre em Direito pela USP, argumenta que este princípio milita em favor da parte hipossuficiente da relação processual, não se limitando apenas ao trabalhador, vale dizer, o princípio pode ser empregado em favor do contratante, com o intuito de assegurar a verdade real e a obtenção de uma justa decisão.
Como bem assevera Vólia Bomfim:
O que importa é o que aconteceu e não o que está escrito. (…). O princípio da primazia da realidade destina-se a proteger o trabalhador, já que seu empregador poderia com relativa facilidade, obriga-lo a assinar documentos contrários aos fatos e aos seus interesses. Ante o estado de sujeição permanente que o empregado se encontra durante o contrato de trabalho, algumas vezes submete-se às ordens do empregador, mesmo que contra sua vontade. (BOMFIM, 2017, p. 187).
Conforme se depreende do excerto abaixo, esse é também o entendimento da moderna jurisprudência:
HORAS EXTRAS. CARTÃO DE PONTO. PRINCÍPIO DA PRIMAZIA DA REALIDADE. Os registros de ponto são, por excelência, os documentos aptos a comprovar a jornada de trabalho do empregado. Contudo, demonstrada a ausência de fidedignidade de tais documentos, adotam-se outros elementos de prova que apontam a jornada efetivamente cumprida, já que o contrato do trabalho se rege pelo princípio da primazia da realidade.
(TRT-3 - RO: 00100463120215030187 MG 0010046-31.2021.5.03.0187, Relator: Des. Gisele de Cassia VD Macedo, Data de Julgamento: 08/06/2021, Segunda Turma, Data de Publicação: 09/06/2021.).
Dessume-se, portanto, do presente artigo que o princípio da primazia da realidade é um instrumento eclético, pois se presta ao processo e às partes e não à um único ator da demanda, seu destinatário é o Estado/juiz, cujo objetivo é alcançar a verdade real, ainda que seja necessário desconsiderar qualquer meio documental.
BIBLIOGRAFIA
BOMFIM, Vólia. Direito do Trabalho. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense. São Paulo: Método, 2017.
MARTINEZ, Luciano. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2010. p.92.
PLÁ RODRIGUEZ, Américo. Princípios de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2015.
RODRIGUEZ, Américo Plá. (Coord). Estudo sobre as fontes do direito do trabalho: Grupo das quartas feiras. São Paulo: LTr, 1998.