Breves apontamentos acerca do Caso dos Exploradores de Cavernas

16/09/2021 às 00:37
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"O Caso dos Exploradores de Cavernas" é um livro escrito por Lon Lucois Fuller, um jurista norte-americano que quis em sua obra focar as formas eficazes de aplicação dos sistemas jurídicos. No artigo, resumo e comento as refloxões jurídicas da obra.

1. Introdução

"O Caso dos Exploradores de Cavernas" é um livro escrito por Lon Lucois Fuller, um jurista norte-americano que quis em sua obra focar as formas eficazes de aplicação dos sistemas jurídicos.

A obra ficcional, no ano de 4300, retrata uma sessão de julgamento na Suprema Corte de Newgarth, na qual quatro exploradores recorrem da decisão do Tribunal de primeira instância de condená-los a morte pelo assassinato de Roger Whetmore. Este, juntamente dos quatro réus, fazia parte de uma organização amadorística de exploração de cavernas, a Sociedade Espeleológica. O grupo estava em uma incursão a uma caverna quando um desmoronamento de terra os deixou presos.

Após trinta dias, sem provisões necessárias e sem condições de receberem alimentos do exterior, Whetmore propôs que tirassem na sorte uma pessoa para ser morta e servir de alimento aos demais, para que assim possuíssem chance de sobrevivência. Após muita discussão, todos aceitaram os termos desse contrato. No momento do sorteio, porém, Roger Whetmore sugeriu que esperassem mais uma semana para realizarem tal prática. Os outros não concordaram e prosseguiram ao sorteio, que teve Whetmore como o selecionado para ser morto e servir de alimento aos demais. Este não teve objeções e então, prosseguiu-se o ato.

Durante o resgate, dez trabalhadores perderam a vida após um novo deslizamento de terra. Após finalmente conseguirem retirar os exploradores da caverna, os quatro sobreviventes foram condenados à forca em primeira instância e recorreram à Suprema Corte. Ao relatar os votos dos ministros, o livro abrange diversos conceitos fundamentais no ramo jurídico, como Direito positivo e Direito natural, bem como a aplicação destes ao caso.

2.Desenvolvimento

2.1 Voto de Presidente do Tribunal - Truepenny, C.J. (FULLER, Lon L. O Caso dos Exploradores de Cavernas. Tradução e introdução por Plauto Faraco de Azevedo. Porto Alegre: Fabris, 1976. p.1-10)

O presidente do tribunal considera os réus culpados a partir da  Lei NCSA  § 12: “quem quer que intencionalmente prive a outrem da vida será punido com a morte” (FULLER, 1976, p. 8). Dessa forma, seguindo a Lei, a condenação aos réus deveria ser mantida.

Apesar de sua posição inicial, o presidente Truepenny diz possuir simpatia devido à trágica situação a qual os quatro exploradores viveram. Por isso, ele sugere que a decisão final pudesse ser dada ao poder Executivo, que teria condições de conceder clemência aos réus condenados sem infringir a lei, debilitando sua letra ou transgredindo seu espírito (FULLER, 1976, p. 10).

2.2 Voto do Ministro Foster, J. (FULLER, 1976, p.10-25)

Foster afirma que a proposição do presidente é simplista. Há mais em julgamento do que o destino dos exploradores: para ele, está sendo julgada a própria lei dessa Commonwealth (FULLER, 1976, p.10). Se a condenação for mantida, a lei será condenada no tribunal do senso comum. Pode-se pensar, a partir dessa conclusão, que a lei não pretende realizar justiça, uma vez que esta implica uma conclusão a qual envergonha os juízes e só é possível escapar desta apelando a uma exceção do Poder Executivo (FULLER, 1976, p.11). A lei, como está escrita, não conduz à conclusão de que os homens são assassinos, mas sim o contrário.

 O jurista parte de duas premissas: o Direito positivado é inaplicável ao caso, e deve ser aplicado o Direito natural, a “lei da natureza”. Essa ideia é trazida diante da impossibilidade da coexistência entre os homens. A  conservação da vida só foi possível a partir da privação da vida (FULLER, 1976, p.13), não havendo possibilidade de que os homens pudessem viver em comunhão, sendo o sacrifício de um deles necessário para a sobrevivência dos outros. Para Foster, os exploradores não se encontravam em um "estado de sociedade civil", mas sim em um "estado natural" (FULLER, 1976, p.14-15). Dessa forma, não poderiam responder às normas previstas no Direito positivado devido à sua situação trágica e única. Assim, coube aos exploradores elaborar uma nova constituição, a partir de um contrato firmado entre os integrantes da Sociedade, já que os princípios usuais eram inaplicáveis.

O ministro continua seu voto afirmando que, em condições usuais, considera-se a vida humana um valor absoluto, sem a possibilidade de trocar uma por outras. Porém, na situação descrita, houve a morte de dez trabalhadores para salvar os cinco exploradores. Em construções, como rodovias e edifícios, é usual que se percam vidas humanas em acidentes, porém acredita-se que o benefício aos sobreviventes seja maior que a perda (FULLER, 1976, p.19). Com esse argumento, a situação de desespero vivida pelos réus é facilmente compreensível.

É necessária a interpretação do propósito da lei, isso é, no que os legisladores pensavam ao criar a norma (FULLER, 1976, p.20). Foster afirma ser possível infringir a letra da lei sem violar a lei propriamente dita. Para ele, um dos mais importantes princípios da lei de homicídio é dissuadir os homens de cometê-lo, o que é inaplicável devido à situação trágica em que ocorreu o assassinato. Seria necessário interpretar a lei de forma coerente. As considerações observadas equivalem a casos de legítima defesa, nos quais as pessoas agem para salvar suas próprias vidas mediante ameaça. O ministro Foster vota pela inocência dos réus.

2.3 Voto do Ministro Tatting, J (FULLER, 1976, p.25-40)

Tatting começa sua argumentação tecendo críticas ao voto do Ministro anterior, dizendo não é possível compreender em que momento ocorre a passagem do “estado de sociedade civil” para o “estado de natureza”. Em sua visão, o Tribunal a julgar possui autoridade para aplicar as leis previstas no país, não possuindo tal autoridade para a lei natural, sendo impossível o julgamento a partir das bases de Direito natural proposto por Foster. Além disso, defende Tatting, o código natural proposto por Foster é macabro, permitindo o canibalismo, com normas inovadoras acerca dos casos de homicídio, sendo também um contrato irrevogável, sendo sua obediência passível de execução a força (FULLER, 1976, p.28-29). Tatting ainda discorda da teoria da legítima defesa, uma vez que o direito a legítima defesa de Whetmore não existia, e esse deveria aceitar passivamente a morte proposta. A intencionalidade do ato deve ser tomada em consideração, sendo a legítima defesa um ato por impulso humano de manter a própria vida. Os réus, para esse jurista, atuaram intencionalmente, pois houve longa discussão a respeito do que poderia ser feito (FULLER, 1976, p.33-34). 

O Ministro Tatting continua suas críticas à sustentação de Foster, afirmando que esta não abrange a possibilidade de uma lei possuir propósitos múltiplos, impossibilitando a interpretação de que a lei deve ser analisada mediante sua proposição.

A jurisprudência possui peso no caso, já que o Tribunal não aceitou a defesa de que a fome fosse justificativa para que se furtasse um pão (caso citado no texto, de Commonwealth v. Valjean), é impossível crer que a fome justificaria o assassinato de um homem. O juiz considera-se incapaz de decidir pelo alto envolvimento emocional, e ao considerar que a acusação de homicídio possivelmente seja equivocada, quando seria mais correto se houvesse a previsão de crime nos casos de “ingestão de carne humana” (FULLER, 1976, p.39). O Ministro se absteve da decisão, recusando-se a participar.

2.4 Voto do Ministro Keen, J. (FULLER, 1976, p.40-54)

O ministro começa seu voto partindo do fato de que a clemência executiva, proposta pelo presidente Trupenny, não é de competência do Tribunal. O dever da Suprema Corte é o de simplesmente emitir a decisão a ser tomada. Keen também enfatiza que não é dever dessa Corte avaliar se ação foi boa ou má por parte dos réus, bem como moralmente justa ou não. Deve-se aplicar o direito do país, excluindo a possibilidade de avaliar o direito natural, como proposto por Foster. A decisão a ser tomada é a respeito de se houve ou não privação intencional da vida de Roger Whetmore, e para Keen, a resposta óbvia é sim (FULLER, 1976, p.42). Adicionando-se a isso, Keen versa que a discussão tão extensa existe por causa dos aspectos morais e da discordância das leis por parte dos Ministros, o que em sua opinião não deveriam afetar o julgamento (FULLER, 1976, p.43). O Poder Judiciário deve apenas aplicar fielmente a lei escrita, com a interpretação em seu significado evidente, não cabendo a este analisar se a lei está certa ou errada. Para Keen, Foster utiliza da revisão judicial, recurso que para ele é incoerente, para criar lacunas na lei, interpretando-as baseado em seu propósito, para preenchê-las da maneira que julgar conveniente (FULLER, 1976, p.45-46). Essa forma de julgar foge da competência do Sistema Judiciário,  pois cabe ao Legislativo elaborar o texto da lei a ser interpretado de forma explícita.

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A visão do caso como legítima defesa é refutada devido ao fato de Whetmore não ter feito ameaça alguma aos réus. Absolvê-los seria criar exceção a lei, o que poderia trazer perigosas consequências. Para Keen, a criação de exceções faz mais mal do que decisões rigorosas contra a opinião pública. O Ministro vota a favor da confirmação da sentença de condenação dos exploradores.

2.5 Voto do Ministro Handy, J (FULLER, 1976, p.54-72)

Para o último Ministro a votar, a questão da natureza jurídica do contrato firmado na caverna é importante. A opinião pública é claramente favorável à absolvição dos réus, e esta deve ser levada em conta a fim de não criar um barreira entre esta e o Poder Judiciário. Há, porém, uma repulsa muito grande em aplicar o senso comum aos problemas governamentais, o que pode ser um erro, devido ao fato de que muitas vezes as perplexidades jurídicas não tem a ver com a questão, sendo o senso comum um possível caminho para melhor análise dos fatos. A questão estudada tem a ver com uma questão de vida ou morte, e a tormenta e desespero vividos pelos réus foram suficientemente grandiosas para penalizá-los (FULLER, 1976, p.65).

O juiz Handy defende o uso de bom senso no julgamento do caso, acreditando que a decisão possa ser mais humana. Para ele, seria necessária a compreensão da situação trágica e desastrosa vivida pelos acusados, não fazendo uma análise seca das leis e de teorias jurídicas. Seu voto é em favor da inocência dos réus e da reformulação da sentança.

2.6 Decisão Final

O Ministro Tatting, que se absteve da votação, é perguntado pelo presidente se deseja alterar sua posição após os dois últimos votos. Tatting reitera sua posição e se diz convicto que não deve participar do julgamento devido ao seu alto envolvimento emocional. Dessa forma, a sessão termina empatada, e com o empate a sentença condenatória do Tribunal de primeira instância é confirmada.

3.Conclusão

A obra "Os exploradores de cavernas" aborda em seus personagens representantes de diversas áreas do Direito, teorias e princípios do ordenamento jurídico. Nos votos de cada jurista, é possível perceber diferentes formas de se posicionar acerca de um mesmo tema partindo de pressupostos teóricos divergentes. Essa exploração da existência de diversas formas de se enxergar o mesmo fato comprova o caráter plurilateral do Direito com suas mais diversas concepções.

O Presidente Truepenny acredita na interpretação literal da lei, sem muita abertura a fatores ou exceções externos. O Ministro Foster, diferentemente, é um representante da ideia de que seja necessário avaliar qual a propósito da norma ao ser criada, além de crer na existência um Direito natural entre os Homens, diferenciado do Direito positivo, explícito, passível de aplicação na situação vivida pelos réus. Tatting discorda da argumentação de Foster nos dois pontos, mas abstêm-se do julgamento, em uma conduta singular não usual, segundo o próprio personagem. Keen é o representante do positivismo, da aplicação de leis como único dever do Judiciário, este concordando ou não com as normas previstas pelo Legislativo. Handy finaliza a sessão argumentando em favor de uma interpretação mais próxima ao senso comum e das demandas populares, partindo da premissa que o ordenamento jurídico não cobre determinadas situações de forma tão eficaz.

Após a análise de todos os votos, é possível concluir que a decisão da Suprema Corte de Newgarth na obra estudada poderia ter sido diferente. Pensando em uma possível situação real da narrativa, seria necessário avaliar que caso não ocorresse a morte de Roger Whetmore e a subsequente prática antropofágica, todos os exploradores teriam chances extremamente reduzidas de sobrevivência. Dessa forma, se não houvesse o contrato com o consentimento de todos, os exploradores já estariam condenados a morte no momento em que houve o desmoronamento de terra que os prenderia por mais de trinta dias. Pode-se argumentar ainda que não seria possível seguir o ordenamento jurídico, em uma aplicação do princípio da inexigibilidade de conduta diversa. Assim sendo, a violação das normas só ocorreu pois não seria possível agir em consonância destas e garantir a sobrevivência dos cinco exploradores.

Referências Bibliográficas 

FULLER, Lon L. "O Caso dos Exploradores de Cavernas". Tradução e introdução por Plauto

Faraco de Azevedo. Porto Alegre: Fabris, 1976.

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