Entre o ser e o nada

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19/09/2021 às 23:14
Leia nesta página:

[1] Eu não sou eu nem sou o outro,

Sou qualquer coisa de intermédio:

    Pilar da ponte de tédio

    Que vai de mim para o Outro.

Mário de Sá-Carneiro, in 'Indícios de Oiro'

[2] O livro foi escrito por Sartre durante 5 ou 6 anos, sendo publicado um ano antes do início da Segunda Guerra Mundial, ou seja, em 1938. Esse contexto histórico-social tem influência em A Náusea, assim como em toda a obra de Sartre, que foi um filósofo francês existencialista (e um dos fundadores do partido comunista em Paris).

Aliás, ele próprio participou da guerra como meteorologista. O livro traz como protagonista o historiador Antoine Roquentin de cerca de 30 anos. Bastante viajado, está vivendo na pequena cidade de Bouville (fictícia) para onde se mudou para estudar a vida do marquês de Rollebon, uma figura pitoresca da França que vivera no século XVIII. Então, o historiador está escrevendo uma biografia sobre o tal marquês quando começa a perceber algumas “sensações”, alguns “estranhamentos” — a que chama de náusea.

Nesses momentos, somos levados a sentir e a perceber tudo o que cerca e o que se passa internamente com Antoine com a descrição dos objetos, por exemplo, ou pessoas que estão à sua volta. É muito interessante como ele consegue desenhar esse cenário externo e interno. Fui completamente levada a Bouville a cada página folheada. Roquentin e sua náusea trazem a criticidade acerca do estilo de vida daquela época, dos burgueses e do proletariado, enfim, das pessoas que causam esse sentimento de repulsa à humanidade no protagonista.

[3] A Náusea e O Muro (coletânea de contos, lançados no mesmo ano) seriam recebidos com aclamação crítica, transformando Sartre na mais promissora figura literária da Rive Gauche. Em 1939 publica O esboço de uma teoria das emoções, que aumenta seu prestígio intelectual, embora não tenha sido recebida com tanto entusiasmo.

[4] O existencialismo foi uma doutrina filosófica e um movimento intelectual surgido na Europa, no final do século XIX, mas ganhou notoriedade no século XX, a partir do desenvolvimento do existencialismo francês. Está pautado na existência metafísica, donde a liberdade é seu maior mote, refletida nas condições de existência do ser.

[5] A angústia de Sartre nada tem a ver com a agonia decorrente do medo, do desespero ou da ansiedade, pois a angústia e medo não podem ser confundidos, dado que aquela diz respeito tão somente a mim, porque aquilo que realizo que realizo depende exclusivamente de mim, já o medo diz respeito ao que pode ocorrer comigo, ou seja, a algo exterior. A angústia em questão deve ser compreendida a partir da relação entre o que seu eu em determinado momento, o que fui anteriormente e o que serei em um tempo futuro.

A angústia consiste então na experiência da descoberta da liberdade, em outras palavras, ela é a consciência da liberdade. No entanto, é preciso esclarecer o seguinte: a angústia mencionada por Sartre só se dá no plano estritamente reflexivo – dimensão da consciência reflexiva. Afinal, enquanto o indivíduo permanece no plano da ação, da urgência do mundo, não se apreenderá como livre em relação àquilo que foi ou ao que será.

[6] A atitude de má-fé aparece sob o fundamento de aniquilação da liberdade, pois rouba a possibilidade de ser sua escolha. Sobre isto, n’O Existencialismo é um Humanismo, declara Sartre: “...se eu nasço covarde, posso viver em perfeita paz, nada posso fazer, serei covarde a vida inteira, o que quer que eu faça; se eu nasço herói, também viverei inteiramente tranquilo, serei herói durante a vida toda, beberei como um herói, comerei como um herói”. Dessa forma, o ser herói ou covarde gruda no ser nadificado, corrompendo com esta nadificação e impossibilitando o homem de ser qualquer coisa a não ser herói ou covarde.

[7] Conceitos do existencialismo: 1. A espécie humana tem livre arbítrio; 2. A vida é uma série de escolhas, criando stress; 3. Poucas decisões não têm nenhuma consequência negativa; 4. Algumas coisas são absurdas ou irracionais, sem explicação; 5. Se você toma uma decisão, deve levá-la até o fim.

[8] É uma análise do ser em sua mais pura essência. Tão pura que só existe para a própria consciência do ser mesmo. Nada escapa à consciência.  Como, por exemplo, para Sartre, você só sabe, se “sabe que sabe", ou seja, se tem consciência daquele saber. Pode parecer uma prisão, pelo contrário, aí é que está o cerne da liberdade. Só que Sartre mostra a liberdade como um fardo, por isso diz que o homem está, então, condenado a ser livre.

[9] Sartre conceitua a liberdade como uma condição intransponível do homem, da qual, ele não pode, definitivamente, esquivar-se, isto é, o ser- humano está condenado a ser livre e é a partir desta condenação à liberdade que o homem se forma. Não existe nada que obrigue o ser humano agir desse ou daquele modo.

[10] Do ser-em-si somente se pode dizer que ele “é aquilo que é”. Isso significa que o “ser-em-si é opaco para si mesmo”, nem ativo nem passivo, sem qualquer relação fora de si, não derivado de nada, nem de outro ser: o ser-em-si simplesmente é. Daí o caráter de absurdo que o ser-em-si carrega como sua determinação fundamental. A densidade opaca, o absurdo do ser-em-si provocaria no homem o mal-estar, que Sartre denomina náusea.

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[11] Para Sartre, a consciência humana é um ‘nada’ – é a única que não pode ser apontada como uma coisa no mundo, diferente de mesas, cadeiras, minhas mãos e pernas. A consciência é consciência de si mesma. É por esta razão que o fenômeno da má-fé se mostra um dilema: se a consciência deve estar sempre consciente de si mesma, então como pode acontecer com as pessoas o tipo de dissonância que Sartre chama de ‘má fé’? Quando uma pessoa mente para outra, a mentira é possibilitada pelo fato de que a consciência do mentiroso é escondida da pessoa que está sendo enganada. Mas como uma pessoa pode realizar o tipo de autoengano necessário para estar em má-fé – para negar, em suma, que a consciência é o que, não é?

[12] Para ajudar a ilustrar o conceito de má-fé, Sartre usa o exemplo de um jovem que tem um emprego como garçom. Um garçom, ao contrário de uma mesa ou uma cadeira, não existe além do abstrato. Certamente, há um conjunto de ações que associamos com ser um garçom, mas não há nada no que é ser um garçom como o que há em ser uma cadeira (que tem quatro pernas e é construída por seres humanos para se sentarem). ‘Um garçom’ não existe e, portanto, não pode ser; mas o jovem faz ‘ser um garçom’ como ‘ser uma cadeira’, e ao fazê-lo trata de experimentar a si mesmo como um objeto. Ao fazer isso, ele nega que a consciência é o que não é, ou seja, que não pode ser qualquer coisa. O jovem molda si mesmo como um garçom, que ele se torna para uma espécie de objeto, e ao fazer isso pratica má fé.

[13] O existencialismo e Sartre se tornaram então, produto francês, tipo exportação. Ambos alcançaram fama em toda a parte. Mas Sartre não se vendeu aos conceitos burgueses de fama e sucesso. Fazia questão de ser imprevisível. Escrevia, escrevia e escrevia, chegando a apelar para a "vida química", que lhe proporcionava a comodidade de manter-se ligado, e desligar-se quando não houvesse mais forças. (Sartre precedeu a Aldous Huxley no uso da mescalina). Nesse caso Simone o levava de férias, ao tempo que Sartre entretinha alguma jovenzinha deslumbrada por seu intelecto. Seu pensamento continua em evolução. Entende que a liberdade do indivíduo, embora seja uma atitude sustentável em termos de filosofia, dificilmente seria plausível em termos sociais.

Em O existencialismo é um humanismo, a compreensão sartriana da liberdade individual se estabelece em termos de responsabilidade social, de engajamento. Isso somado à sua natural antipatia pela burguesia, o aproximou do socialismo, embora ele não de admitisse marxista. Porém em 1952, Sartre torna-se marxista, afirmando que "o marxismo reabsorveu o homem na ideia, e o existencialismo o procura por toda parte onde ele esteja - no trabalho, em casa, na rua". Não ingressou em nenhum partido, pois seu individualismo não o permitiria.

[14] O Ser e o Nada subintitula-se ensaio de ontologia fenomenológica, o que desde o início define a perspectiva metodológica adotada pelo autora A abordagem proposta pretende não confundir o objetivo do livro com as metafísicas tradicionais. Estas sempre contrastaram ser a aparência, essências subjacentes à realidade e fenômenos, o que estaria atrás das coisas e as próprias coisas como suas manifestações.

A ontologia fenomenológica superaria essa dual idade pela descrição do ser como aquilo que se dá imediatamente, ou seja, não propondo explicar a experiência humana por referência a uma realidade extrafenomenal. Nesse sentido, a ontologia fenomenológica seria idêntica a outras espécies de descrições fenomenológicas, como as que o próprio Sartre realizou com relação às emoções e ao imaginário.

Sobre a autora
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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