CPI da pandemia: os fins justificam os meios?

27/09/2021 às 11:47
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A atuação de todo e qualquer órgão de investigação deve ser pautada na obediência aos princípios constitucionais. Será que sob a alegação de interesse público e em momentos de excepcionalidade como o da pandemia mundial de Covid 19 isto ainda é válido?

O famoso escritor inglês Aldous Huxley afirmou que os fins não podem justificar os meios, porque os meios usados determinam a natureza do fim que é alcançado.
Por mais que escolher o caminho correto e seguir princípios morais possa ser mais trabalhoso e desafiador, não podemos perder de vista que o tipo de escolha é que trará resultados duradouros.
O Brasil tem acompanhado de perto o desenrolar da chamada “C.P.I. da Pandemia”, instalada em 27 de abril do corrente ano e que tem como objetivo apurar as ações e omissões do Governo Federal no enfrentamento da Pandemia da Covid-19 no Brasil.
Neste ponto, é de todo importante destacarmos que toda e qualquer ação ou omissão de natureza criminosa deve ser veementemente rechaçada por todos os brasileiros e seus responsáveis devidamente submetidos a ação da Justiça para sua completa responsabilização, o que torna a existência da C.P.I. uma atitude bastante louvável ao demonstrar que qualquer malversador das finanças públicas deve sofrer os rigores da lei.
Mas o ponto fulcral no presente artigo guarda relação não com a instauração desta apuração, algo que, repita-se, é necessário, e sim com a forma como vem sendo utilizada para a coleta da materialidade delitiva e ao menos indícios suficientes de autoria, base legal de qualquer procedimento criminal, motivo pelo qual vale a pena indagar se os fins realmente justificam os meios empregados.
Importante frisarmos que toda investigação criminal tem como objetivo principal justamente a coleta de prova da materialidade delitiva (não de indícios), bem como de ao menos indícios de autoria (não prova).
Exatamente por esta razão e para melhor compreensão do que será exposto, necessário buscar o fundamento legal de qualquer Comissão Parlamentar de Investigação.
O artigo 1º da Lei Nº 13.367, de 05 de dezembro de 2016, estabelece o quanto segue:

“Art. 1º As Comissões Parlamentares de Inquérito, criadas na forma do § 3º do art. 58 da Constituição Federal, terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com ampla ação nas pesquisas destinadas a apurar fato determinado e por prazo certo.”

Resta, assim, evidenciado o fato de que as Comissões Parlamentares de Inquérito estão investidas em poderes investigativos atribuídos aos Magistrados quando no desempenho de suas atribuições legais, estendendo-se a todos os seus membros todas as prerrogativas e deveres decorrentes deste tipo de atuação excepcional.
Milita em favor desta conclusão o que se encontra estabelecido no artigo 2º da Lei Nº 13.367, de 05 de dezembro de 2016, do seguinte teor:

“ Art. 2º No exercício de suas atribuições, poderão as Comissões Parlamentares de Inquérito determinar diligências que reputarem necessárias e requerer a convocação de Ministros de Estado, tomar o depoimento de quaisquer autoridades federais, estaduais ou municipais, ouvir os indiciados, inquirir testemunhas sob compromisso, requisitar da administração pública direta, indireta ou fundacional informações e documentos, e transportar-se aos lugares onde se fizer mister a sua presença.”

É cediço que parlamentares exercem atividades constitucionalmente estabelecidas relacionadas à elaboração de leis e fiscalização dos demais poderes, sendo esta a sua atividade principal e coroando o equilíbrio entre executivo, legislativo e judiciário, através da separação dos poderes que busca assegurar os ideais democráticos, respeitando as diferentes áreas de atuação e proporcionando um sistema mais justo.
Trata-se da consagração mais ampla da separação dos poderes, a qual tem como objetivo assegurar os ideais democráticos, respeitando as diferentes áreas de atuação especializada de cada poder, o que proporciona um sistema mais justo.
O delineamento dos poderes e limites de uma C.P.I. tem o objetivo de evitar o despotismo dos parlamentares, permitindo assim a mais lídima aplicação da justiça em futura ação judicial.
Já no que tange à instrumentalização do trabalho desenvolvido pelas Comissões Parlamentares de Inquérito, é importante destacarmos que a natureza jurídica do inquérito parlamentar é “sui generis”, o que pode ser explicado pelo fato de o mesmo se diferenciar substancialmente dos demais inquéritos por seu caráter eminentemente político.
E é justamente como consequência do acima exposto que no desenvolvimento dos trabalhos de uma Comissão Parlamentar de Inquérito sempre restarão assegurados o contraditório, a ampla defesa, a motivação suficiente, a assistência do advogado, o controle jurisdicional e a publicidade, justamente pelo fato de que a negativa destas garantias implicaria na consumação de arbitrariedades em detrimento dos direitos constitucionais dos investigados.
A não observância destes princípios constitucionais acaba por tornar uma Comissão Parlamentar de Inquérito num verdadeiro Tribunal de Exceção, onde garantias constitucionais básicas são simplesmente espezinhadas.
Fato é que o inquérito parlamentar tem a característica de um sistema acusatório por excelência, motivo pelo qual distingue-se do inquérito policial, em que prevalece o sistema inquisitório.
No entanto, a finalidade de ambos os inquéritos é quase a mesma, sendo que o inquérito parlamentar tem como objetivo principal apurar irregularidades para providências pelo órgão acusatório, além de ter como objetivo secundário permitir a elaboração de legislação posterior mais eficiente.
Neste ponto é bastante oportuno lembrarmos que o artigo 6º da Lei 1.579/52, que dispõe sobre as CPI, impõe que "o processo e a instrução dos inquéritos obedecerão ao que prescreve esta Lei, no que lhes for aplicável, às normas do processo penal".
Destaca-se, ainda, que os Regimentos Internos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, respectivamente, nos artigos 36, parágrafo único e 153, também estabelecem expressamente a subsidiariedade do Código de Processo Penal, o que implica na aplicação das regras ali contidas em todas as atividades desenvolvidas por uma Comissão Parlamentar de Inquérito.
Feitas estas considerações, resta inquestionável o quanto as ações desenvolvidas pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia têm sistematicamente infringido as mais básicas regras do direito processual penal e desrespeitado princípios constitucionais básicos.
E pior: mencionada C.P.I. da pandemia tem se mostrado apenas um espetáculo circense sob os holofotes da mídia, num verdadeiro palco em que os parlamentares só demonstram interesse em obter projeção nacional, prestígio e futuros votos.
São inúmeras as situações de embate injustificado entre parlamentares, inclusive com várias ofensas pessoais proferidas e até situações de quase prática de vias de fato.
O que se viu até agora, são cidadãos convocados para depor como testemunhas ou investigados submetidos a chacota, ao escárnio e a ridicularização por parte de parlamentares, com o agravamento de que tal situação tem transmissão televisiva pública, expondo todos os inquiridos ao julgamento antecipado dos que assistem as audiências realizadas, sem um mínimo de conhecimento dos fatos apurados ou das provas até ali colacionadas.
Jamais se pode perder de vista que se aplicam as disposições do Código de Processo Penal relativas ao interrogatório do acusado, estabelecidas nos artigos 185 a 196 daquele diploma legal, sem esquecermos que o interrogatório de um acusado foi erigido pela legislação como meio de prova.
E mais: o artigo186 do C.P.P. dispõe, “in verbis” que depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas, acrescentando o parágrafo único que o silêncio do mesmo não importará em confissão e nem poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.
A aplicação dos dispositivos destacados, mesmo com menção ao Juiz de Direito, alcança a atuação dos parlamentares de uma C.P.I., devendo os mesmos serem rigorosamente observados, sob pena de tornar nosso diploma adjetivo penal em letra morta.
E temos ainda o fato de que o artigo 210 do C.P.P. define que as testemunhas serão inquiridas individualmente, de maneira que uma não saiba nem ouça os depoimentos das outras, algo absolutamente impossível de ser observado pela forma como a C.P.I. da Pandemia tem norteado os seus trabalhos e tornado público todas as inquirições que realiza, proferindo inclusive juízos de valor sobre o conteúdo das informações colhidas.
Neste ponto é oportuno mencionarmos que a transmissão televisiva de inquirições não tem qualquer tipo de amparo na legislação pátria atual, configurando-se, salvo melhor juízo, numa ação abusiva e despropositada.
Não podemos esquecer que a publicidade dos atos judiciais é uma garantia para o indivíduo acusado da prática de algum crime, bem como para a sociedade, pois o princípio da publicidade está umbilicalmente ligado à humanização do processo penal acusatório, contrariamente ao procedimento secreto, característico do sistema inquisitório.
Traçando um paralelo a situação exposta, recentemente em brilhante artigo  (https://www.observatoriodaimprensa.com.br/jornal-de-debates/_ed725_a_transmissao_de_julgamentos/), o eminente professor Dalmo de Abreu Dallari, afirmou que “a transmissão dos julgamentos dos tribunais feita ao vivo, pela televisão, tem grande possibilidade de influir sobre a atitude dos julgadores e, em última análise, sobre o próprio resultado do julgamento, podendo ser responsável pelo comprometimento da equidade da decisão”.
Segundo Dalmo Dallari, pesa o fator humano, ou seja, o fato do julgador saber que está sendo visto e avaliado por milhões de pessoas, muitas vezes influenciadas por uma persistente e tendenciosa campanha de imprensa, que transmite a ideia de que só será justa uma decisão condenatória.
Outro argumento comum, também desfavorável é de que a transmissão atenta contra a dignidade do Poder Judiciário, transformando julgamentos penais numa espécie de “reality show”.
E é justamente idêntica situação que se tem visto nas audiências da C.P.I da Pandemia, onde cada integrante da Comissão busca apenas os holofotes proporcionados pela transmissão televisiva.
E de uma forma muito pior, o direito de imagem de cada um dos inquiridos é desrespeitado, na medida em que lhes é negada a possibilidade de se insurgir contra a sua participação numa transmissão deste tipo.
O Direito de Imagem está diretamente ligado ao Direito da Personalidade, haja vista que a imagem, juntamente com o nome, a honra, a liberdade, a privacidade e o corpo, é um dos Direitos da Personalidade, que objetivam a proteção do ser humano e das origens de seu próprio espirito.
O artigo 20 e parágrafo único do Código Civil tutela expressamente o direito à imagem e os direitos a ele conexos, ao prescrever, “in verbis”:

“Art. 20 Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.”

Assim, cada inquirido é forçado a participar de um verdadeiro “reality show” que em nada lhe favorece ao exercício de seu direito de defesa e que despreza o principado da presunção de inocência.
Uma coisa é tornar uma audiência pública e assegurar o Princípio da Publicidade com a possibilidade de acesso a cada um que entender ser de seu interesse, outra é submeter um inquirido ao julgamento público sem a menor chance de defesa através da análise pelos telespectadores do conjunto probatório que alicerça considerações de responsabilização penal.
Que não seja perdido de vista que o princípio da publicidade implica numa sessão a portas abertas, acessível a quem quiser e puder participar; mas de forma alguma implica na exigência de auditório e muito menos de plateia.
E nem mesmo a invocação de eventual clamor público que justifique a transmissão televisiva pode ser utilizada para justificar tal exposição de testemunhas e acusados, pois via de regra, casos considerados de repercussão, só se tornam assim em virtude de uma imprensa, preocupada em divulgar estes casos como “histórias espetaculares”, visando exclusivamente obter mais e mais audiência.
E podemos ir além: normalmente casos de repercussão são escolhidos de forma totalmente aleatória, em decorrência da mídia tomar conhecimento dos mesmos, o que implica em dar ainda mais poder à mídia leiga, que ao invés de colaborar com o processo democrático, busca seu inverso, ou seja um direito penal extremamente intervencionista e draconiano, como a única solução para os problemas sociais.
Em brilhante artigo sobre a transmissão de audiências do Tribunal do Júri pela televisão (https://claudiosuzuki.jusbrasil.com.br/artigos/121941238/a-transmissao-televisiva-do-julgamento-do-tribunal-do-juri-em-casos-midiaticos-fere-principios-constitucionais), o nobre Professor e Advogado Claudio Suzuki, menciona:

“Numa perspectiva psicossocial, observamos que a opinião pública, bombardeada continuamente pelos meios de comunicação social com noticiário aterrador sobre crimes terríveis, sente-se insegura e acaba por aplaudir o espetáculo de desconhecimento jurídico e criminológico divulgado nos meios de comunicação de massa que constitui o eixo principal da denominada "Criminologia midiática", que explora a exaustão o "catastrófico", o "aberrante", o "sanguinário”, havendo como dito, amplo apoio popular a essa absurda hiperdimensão de fatos determinados, com a edição de imagens impressionantes, que incrementam a cultura do medo e da violência.”

Todo o exposto até aqui torna muito claro o desrespeito e a ilegalidade na transmissão das audiências para inquirição de testemunhas e de acusados por uma emissora comandada exclusivamente pelo próprio Senado Federal, responsável pela C.P.I. da Pandemia.
É necessário que seja levado em consideração que a exibição da imagem de acusados e mais ainda de testemunhas deve ser rigorosamente controlada, tudo no mais absoluto respeito ao princípio constitucional da presunção de inocência.
O respeito ao mencionado princípio constitucional, na situação ora exposta, está na necessidade imperiosa de resguardar a vida privada, a honra e a dignidade de um investigado, visando a proibição de exposição evitar que a população não forme um juízo de culpabilidade sem que haja elementos e indícios de autoria delitiva, em especial porque não é raro de acontecer a exposição midiática de acusados e no decorrer da instrução probatória não ficar comprovada a sua responsabilidade, causando-lhe prejuízos imensuráveis.
A proibição está na antecipação do juízo de culpa antes de concluídas as apurações e formalizada à acusação, pois a formalização da acusação só ocorre com a conclusão das investigações mediante o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público e seu recebimento pelo judiciário.
Somente com o recebimento da denúncia ofertada pelo ministério público o investigado passará a ser formalmente acusado ou réu.
Da história recente do país, podemos constatar, inúmeros casos de pessoas que foram acusadas de crimes e que tiveram suas imagens amplamente expostas, sendo humilhadas, pré-julgadas, e em seguida, mesmo quando conseguiram provar a inocência, as consequências daquela exposição negativa não puderam mais ser revertidas.
Tem sido comum assistirmos a reportagens na televisão narrando casos semelhantes, sendo que este tipo de situação apenas faz com que o suspeito tenha sua dignidade desacreditada.
Ninguém pode negar que a mídia tem trabalhado em muitos momentos baseada em hipóteses e suposições, uma vez que, através de divulgação das imagens dos acontecimentos, a mesma expõe o suspeito do crime à execração pública, sem o menor pudor, antes mesmo de este ter sido condenado em um processo judicial transitado e julgado.
Necessário que a sociedade esteja mais atenta e perceba que a divulgação da imagem de acusados e presos na mídia serve somente para estigmatizá-los ainda mais, e de forma irreparável, prejudicando-lhes sensivelmente, mostrando-se bastante maléfico, sobretudo para a sua ressocialização.
E não se negue que este tipo de situação e pouco reversível, pois a sociedade não irá se preocupar se aquele acusado ou preso foi ou não inocentado da acusação a ele feita e nem mesmo a mídia irá se preocupar em divulgar a absolvição.
Além disso, a notícia divulgada ao cidadão que assiste aos noticiários tem peso de uma sentença definitiva, porquanto chega ao telespectador como uma verdade absoluta, incontestável, e isso é que fica marcado para toda a sociedade.
Milita em favor deste posicionamento o entendimento do jurista Sidney César Silva Guerra ("A liberdade de imprensa e o direito à imagem", 2.ed. São Paulo: Renovar, 1999, p.145):

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"Constata-se, lamentavelmente, segundo uma realidade histórica, que sempre houve falta de respeito ao direito à imagem, por parte da imprensa que, sem o menor cuidado com os preceitos legais ou conceitos éticos, expõe à execração pública a imagem e particularidades da vida de pessoas que, antes de qualquer possibilidade de defesa, se veem às voltas com o fato de terem que provar que não cometeram um determinado ato ou que as informações passadas não são plenamente verdadeiras, sendo, muitas vezes, condenadas, pela opinião pública, induzidas por materiais facciosas, sempre incompletas que impingem tão-somente vergonha e prejuízos morais e materiais a quem é acusado."

A lei considera a inocência de todos até que eventual condenação seja transitada em julgado, sendo que durante todo esse período, o averiguado tem todos os seus direitos e garantias fundamentais tutelados por lei.
Todo o processo tem que caminhar dentro do “due process of law” e, mesmo após trânsito em julgado, o condenado somente será apenado dentro do que a lei prevê.
A presunção de inocência é parte vital da democracia onde, por princípio, todos são iguais perante a lei, devendo todos serem nivelados pelo lado mais positivo, a inocência, não podendo haver precipitação no momento de decidir o futuro do réu, pois, assim como o ser humano é passível de erros a ponto de praticar um delito, assim também poderá sê-lo no julgamento.
E dentro de um verdadeiro “show de horrores televisivos”, bordões são proferidos pelos Senadores inquisidores, tais como “vai vendo Brasil” após a manifestação por parte de pessoas inquiridas, o que demonstra sem sombra de dúvida um posicionamento prévio e indesejável por parte daqueles que deveriam demonstrar a mais absoluta imparcialidade na coleta de provas.
Também é absolutamente inexplicável como documentos que deveriam ser mantidos sobre o mais absoluto sigilo, em consonância com o que é determinado pela legislação são exibidos indiscriminadamente no curso das audiências, tais como prontuários médicos e informações de quebra de sigilos.
Também é notório que o depoimento testemunhal não depende apenas das circunstâncias presentes no momento da percepção de um fato, ele também será o resultado das condições proporcionadas à fluência da narrativa, ou seja, o depoimento de testemunhas dependerá também do comportamento daquele que realiza a sua tomada.
A forma como são realizadas as perguntas e o modo como são conduzidas as audiências criminais são fatores cruciais para um testemunho com qualidade.
Numa audiência criminal, a testemunha será chamada para narrar as suas percepções de fatos passados a respeito de um suposto delito, circunstâncias ou suposta autoria.
No entanto, ao mesmo tempo em que é o meio de prova mais utilizado no processo penal, a prova testemunhal é o mais perigoso, frágil e pouco confiável.
O perigo que envolve a prova testemunhal é evidente, uma vez que qualquer um pode ser acusado de um crime que não cometeu baseado unicamente nas declarações de uma testemunha que acaba por convencer o juiz.
Neste ponto, não podemos esquecer que as perguntas em audiências criminais decorrem das intencionalidades possíveis em cada situação e dos papeis psicossociais protagonizados pelas partes no processo judicial.
O uso de técnicas inadequadas para a tomada de informações que estão contidas na memória das testemunhas poderá ser fatal para a qualidade dos depoimentos, sendo notório que o fato da testemunha distorcer premeditadamente a fidelidade de seu relato pode decorrer em razão de perguntas sugestivas ou capciosas, realizadas por um interrogador pouco preparado para desempenhar tecnicamente a sua função.
Existem diversos modos de um interrogador interagir com a testemunha e, consequentemente, influenciar no relato feito.
No questionamento às testemunhas, o interrogador deve encontrar um ponto de equilíbrio entre o processo de cognição dos fatos e as garantias constitucionais fundamentais, isso porque, no testemunho obtido por interrogatório, há sempre um tensionamento entre o que o indivíduo sabe, de um lado, e o que as perguntas que se lhe dirigem tendem a fazê-lo saber, por outro lado.
As perguntas às testemunhas em audiências criminais poderão ser abertas ou fechadas, sendo que as perguntas abertas permitem que a pessoa que está respondendo dê mais informações (e.g. “o que você viu quando entrou na loja?), ao passo que as perguntas fechadas propiciam que o entrevistado responda apenas sim/não ou escolha entre uma alternativa (e.g. era manhã, tarde ou noite quando o crime aconteceu?).
As perguntas fechadas poderão colocar a testemunha em uma situação de ter de escolher uma resposta entre as alternativas veiculadas na própria pergunta.
Por isso, em relação às perguntas fechadas, deve-se ter especial cuidado para não induzir a resposta de modo manipulativo, o que faz lembrar a clássica pergunta: “qual era a cor do cavalo branco de Napoleão”?
A prova testemunhal “não é “check list”: sim e não. Perguntas no estilo: o acusado atirou, né? A arma era um 38? Havia 34 petecas de crack? São perguntas abusivas.
As perguntas com as quais deve-se ter o maior cuidado nas inquirições são aquelas do tipo afirmativo por presunção, pois tais perguntas poderão ser formuladas simplesmente para corroborar uma informação/decisão já pré-concebida por aquele que que realiza a inquirição; apresentando um viés apenas confirmatório.
O perigo que envolve essa classe de perguntas está justamente na pressuposição de uma lembrança na mente da testemunha, antes que ela seja verificada.
Tal situação poderá ocorrer de forma semelhante com perguntas disjuntivas parciais, nas quais a testemunha é colocada diante de uma situação de ter de escolher entre duas possibilidades, excluindo outras.
O que mais se vê nas audiências de inquirição realizadas pela C.P.I. da Pandemia é justamente o questionamento dos inquiridos através de perguntas capciosas e sugestivas, inclusive com restrições a uma livre manifestação daqueles sobre os fatos que estão narrando e uma exacerbada tentativa de se obter respostas que vão de encontro ao ponto de vista dos inquiridores.
Não é raro momentos em que os senadores mostram inconformismo com as respostas ofertadas pelas testemunhas e chegam até mesmo a força-las a responderem nos exatos termos que vão de encontro as suas posições pessoais.
Também é prática corriqueira por parte dos Senadores integrantes da C.P.I da Pandemia a submissão dos inquiridos a longas manifestações de suas posições pessoais, chegando alguns parlamentares a mencionar insistentemente a possibilidade de prisão das mesmas pelo crime de falso testemunho em que pese a necessidade de apenas ocorrer tal menção no início da oitiva.
Outra constante das inquirições são perguntas que não guardam qualquer tipo de relação com os fatos apurados e inclusive solicitações para que os inquiridos apresentem as suas percepções pessoais sobre algum fato.
Outro aspecto que tem se repetido à exaustão nas audiências de inquirição de testemunhas e acusados na C.P.I. da Pandemia e o desrespeito a incomunicabilidade das testemunhas, fato agravado pela transmissão televisiva das mesmas.
A incomunicabilidade impera antes e durante a audiência, de modo que a testemunha que já prestou depoimento não pode ter contato com a que ainda vai depor, algo não observado pelo simples fato de futuras testemunhas terem acesso irrestrito a tudo o que foi mencionado pelas testemunhas que lhe antecederam, o que fere frontalmente o disposto no artigo 210 do C.P.P..
Qualquer telespectador das audiências realizadas pela C.P.I da Pandemia pode constatar que na maioria das vezes os inquiridos são impedidos de apresentar de forma fluida as suas informações, ocorrendo interrupções constantes e seguidas principalmente de inconformismo ou ironias sobre aquilo que foi apresentado.
A coleta de provas e de indícios deve ser levada a cabo de forma absolutamente imparcial e de forma alguma utilizada apenas para reforçar o ponto de vista e as posições defendidas por aquele que a realiza.
Neste ponto é importante lembrarmos que imparcialidade é atributo exclusivo do juiz, no processo penal, e do delegado, na investigação criminal, pois são os órgãos que atuam na persecução penal sem interesse prévio no indiciamento ou não indiciamento, sem ambição anterior na condenação ou absolvição.
Assim sendo, todas as decisões devem ser tomadas exclusivamente com base nos elementos de convicção colhidos, e não fundadas em concepção pré-constituída.
Em sede de investigação criminal, é necessário que as pessoas tenham um tratamento digno, inerente à natureza humana, o que somente ocorrerá com a garantia de uma apuração/investigação prudente, proporcional, racional.
Nunca é demais lembrarmos que num estado democrático de direito, como objetiva a Constituição Federal de 1988, o processo está associado a princípios, direitos e garantias individuais inerentes a qualquer indivíduo que esteja sob o crivo da persecução penal.
Um desses direitos é o de ser julgado de forma equânime e imparcial, em decorrência da opção constitucional brasileira pelo sistema processual penal acusatório.
Desta forma, restando asseguradas aos integrantes de uma Comissão Parlamentar de Inquérito os mesmos poderes assegurados aos Juízes de Direito, fato é que esta prerrogativa implica também na observância das mesmas obrigações impostas aos magistrados, dentre as quais a total imparcialidade na coleta de provas e indícios.
Apesar de expressiva divergência doutrinária, converge-se a doutrina majoritária no sentido de que a ordem constitucional brasileira de 1988 acolheu o sistema processual penal acusatório, argumentando os defensores que, ainda que não seja de forma pura e ideal, há uma efetiva separação entre as funções de acusar, defender e julgar, bem como a observância de princípios intrínsecos a esse sistema, quais sejam: o contraditório, a oralidade, a presunção de inocência, a publicidade, o juiz natural e a iniciativa das partes.
A imparcialidade é abalizada como preceito de grande magnitude, tendo em vista o enfoque direcionado pelos tratados internacionais protetivos de direitos humanos e o apreço demonstrado pelos sistemas jurídicos democráticos à sua concretização e manutenção.
O tratamento imparcial destinado ao indivíduo, na ótica dos direitos humanos, nada mais é que o reconhecimento da sua condição humana como pressuposto suficiente à aplicação de um processo pautado pela equidade e pela própria noção de justiça.
No ordenamento penal brasileiro, não há espaço para juízes “justiceiros”, encorajados, muitas vezes, pela busca da verdade real, onde os mesmos se transformam em verdadeiros inquisidores, tomando para si a competência atribuída às polícias e ao Ministério Público, imiscuindo-se na pretensão punitiva, em prejuízo da serenidade, da imparcialidade e do equilíbrio a estes reservados.
Não por isso o grande Rui Barbosa, o patrono da advocacia brasileira, em aula de direito constitucional, com enfoque nas legislações romanas e hebraicas, a respeito do julgamento de Cristo, assim se manifestou:

“Por seis julgamentos passou Jesus e, em nenhum, teve um juiz (…). Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de estado, interesse supremo, como quer que te chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos”, que condenou diga-se, o maior dos inocentes. Não há, em verdade, coisa pior do que o juiz tomar partido, ainda que seja contra o pior dos criminosos, haja vista que é a obediência à ética profissional, ao devido processo legal, ao tratamento igualitário entre as partes, dentre outros requisitos incontornáveis, que garante a santidade das decisões e a certeza de que, num estado democrático de direito, todos terão um julgamento justo.” (A imprensa, Rio, 31 de março de 1899, em Obras Seletas de Rui Barbosa, vol. VIII, Casa de Rui Barbosa, Rio, 1957, págs. 67-71.)

Finalizando, não podemos deixar de destacar a importância do trabalho que desenvolve uma Comissão Parlamentar de Inquérito na medida em que promove o esclarecimento pleno sobre questões da mais alta importância para o país, trazendo luz a questões obscuras que escondem vis interesses e maculam o pleno funcionamento das instituições brasileiras.
Mas não é subvertendo as mais comezinhas regras e normas da legislação brasileira que a Justiça será feita, pois ao contrário do que se deseja criminosos deixarão de serem responsabilizados pelos seus atos simplesmente por encontrar-se a prova de seus crimes maculada na sua coleta.
Desta forma, absolutamente inafastável que os fins não justificam os meios, pois, com toda certeza, são os meios que determinam os fins.
Ao contrário, é a metodologia que acabará por definir o objeto final, uma vez que os meios ilegais desaguam em métodos ilegais e, então, produzirão fins corrompidos.

Sobre o autor
José Mariano de Araujo Filho

Delegado da Polícia Civil do Estado de São Paulo; Professor da Academia de Polícia Civil de São Paulo; Professor Universitário; Especialista na Investigação de Cibercrimes e Crimes de Alta Tecnologia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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