A Lei nº 14.195/2021 alterou a disciplina jurídica de atividades relacionadas a diversos setores econômicos. Essa alteração visa estabelecer diretrizes normativas mais apropriadas para a regulamentação do mercado e das relações dos agentes econômicos.
A medida faz parte de uma série de esforços do governo brasileiro aplicados ao aprimoramento regulatório dos ambientes negociais.
Compre notar que a mencionada conjugação de esforços resulta do que chamo de giro regulatório das atividades econômicas. Esse giro consiste na mudança de postura do Brasil quanto ao tratamento dos problemas relacionados à burocracia e à inadequação de normas que orientam as atividades empresariais.
O Brasil conscientizou-se que suas estruturas normativas e burocráticas devem ser repensadas, reavaliadas e aprimoradas. Percebe-se que muitas regras e procedimentos, criados com o propósito de conferir segurança jurídica, acabam se transformando em verdadeiras barreiras para o desempenho de certas atividades econômicas. Em alguns casos a incompatibilidade das exigências legais com a dinâmica do mercado é tão acentuada que, em vez de assegurar direitos, acaba por repelir investidores e comprometer negativamente o desempenho econômico do país.
Compreende-se que as regras jurídicas devem ser não apenas válidas e estáveis, mas sobretudo apropriadas à regulamentação eficiente do mercado e do ambiente de negócios. Admite-se que isso é fundamental para que o país seja competitivo e ocupe posições mais vantajosas no cenário econômico internacional. É nesse ponto que o giro se expressa com mais ênfase.
Apoiando-se na convicção de que Estado, em sentido amplíssimo, precisa contribuir para a elevação dos níveis de qualidade dos ambientes negociais, o Governo Brasileiro, com apoio dos demais Poderes da República, passou a desenvolver estratégias nesse sentido, corrigindo falhas, aprimorando procedimentos e aperfeiçoando normas, nos mais variados setores.
A qualidade da disciplina jurídica do ambiente de negócios, a propósito, é fator determinante para obtenção de uma boa colocação no ranking do Relatório Doing Business do Banco Mundial. De maneira simplificada, no Doing Business, a partir do cotejo de certos indicadores, o Banco Mundial avalia as condições dos ambientes de negócios de 190 economias e define um ranking de países, classificados de acordo a qualidade dos seus sistemas regulatórios.
O recolhimento de tributos é um dos dez indicadores[1] considerados pelo Banco Mundial para aferir a qualidade do ambiente de negócios no contexto do Relatório Doing Business. No indicador “pagamento de impostos”, avalia-se a adequação da disciplina normativa: com relação ao volume de pagamentos; com relação ao tempo de cumprimento de obrigações fiscais; com relação à carga tributária total; e com relação ao volume de processos de cobrança.
As modificações da Lei nº 14.191/2021 contribuirão para a elevação dos níveis de qualidade desse indicador.
Observem-se algumas dessas novas diretrizes.
Em primeiro lugar, no âmbito da governança da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, o Poder Executivo Federal recebeu autorização para criar um Sistema Integrado de Recuperação de Ativos (Sira), formado por instrumentos destinados à identificação e à localização de devedores e de ativos. Pretende-se, com isso, em linhas gerais, melhorar as relações com os contribuintes e aprimorar a satisfação de obrigações fiscais.[2]
Mais detalhadamente, os objetivos do Sistema Integrado de Recuperação de Ativos (Sira), entre outros, são os seguintes:[3]
i) promover o desenvolvimento nacional e o bem-estar social que, com o aumento dos índices de efetividade das ações que envolvam a recuperação de ativos, serão favorecidos pela redução dos custos de transação de concessão de créditos;
ii) aumentar a efetividade das decisões judiciais relativas à satisfação de obrigações pecuniárias, com vistas à redução de tempo e de custos operacionais; e
iii) conjugar dados de pessoas físicas e jurídicas para facilitar a concretização de decisões judiciais que versem sobre a recuperação de créditos públicos ou privados.
Os objetivos serão perseguidos sem prejuízo das garantias constitucionais e legais. Naturalmente, além de atenção às diretrizes constitucionais, deverão ser respeitadas as regras de proteção de dados e os parâmetros legalmente estabelecidos para funcionamento do Sistema.[4]
O legislador também definiu princípios para orientar a implementação e manutenção do Sistema Integrado de Recuperação de Ativos (Sira). Nesse sentido, além da natural incidência dos demais princípios constitucionais, como os princípios da legalidade, impessoalidade, publicidade, moralidade e eficiência, o referido Sistema Integrado deverá ser direcionado pelos seguintes:
i) princípios da melhoria da efetividade e da ampliação da eficiência das ações de recuperação de ativos;
ii) princípios da promoção da transformação digital e do estímulo ao uso de soluções tecnológicas na recuperação de créditos públicos e privados;
iii) princípios da racionalização e da sustentabilidade econômico-financeira das soluções de tecnologia da informação e princípio da comunicação de dados[5];
iv) princípios do respeito à privacidade, à inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem (das pessoas e das instituições), conforme assentado na Constituição Federal e na legislação infraconstitucional; e
v) princípios da ampla interoperabilidade e da integração com os demais sistemas utilizados pela Administração, com vistas a favorecer a atuação dos agentes, racionalizar as decisões, e garantir o cumprimento eficiente de ordens judiciais relativas à recuperação de ativos.[6]
As regras gerais sobre compartilhamento de informações, inclusão de dados no sistema, periodicidade de relatórios, procedimentos para requisição informações, acordos de cooperação, entre outras matérias, serão objeto de regulamentação pelo Poder Executivo Federal.[7]
Cadastro Fiscal Positivo (CFP) e o favorecimento à superação consensual de litígios.
A Lei nº 14.195/2021 também autorizou o Poder Executivo Federal a criar um Cadastro Fiscal Positivo (CFP) que, sob a governança da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), entre outros objetivos, deve:
i) criar condições necessárias para instituir e manter um ambiente de permanente confiança entre os contribuintes e a Administração Tributária Federal;
ii) permitir que as medidas da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) sejam previsíveis e garantam segurança jurídica aos contribuintes incluídos no Cadastro Fiscal Positivo (CFP);
iii) contribuir para a redução dos custos e ônus decorrentes da cobrança de créditos inscritos como dívida ativa da União;
iv) oferecer dados que permitam compreender mais adequadamente as particularidades das atividades empresariais e as principais causas dos “gargalos” fiscais;
v) conferir mais eficiência na gestão e avaliação de riscos dos contribuintes inscritos no Cadastro Fiscal Positivo (CFP), inclusive para definir parâmetros mais seguros aos negócios jurídicos processuais; e
vi) colaborar para a superação consensual de conflitos tributários e estimular a redução dos índices de litigiosidade.
Embora o Cadastro Fiscal Positivo (CFP) deva ser criado no âmbito da Administração Tributária Federal, será possível que a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) celebre convênios com as outras Unidades Federativas (Estados, Municípios e Distrito Federal) para compartilhamento de informações.[8]
A despeito das referências indicadas na Lei nº 14.195/2021, a Procurador-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) deverá regulamentar com detalhes a implementação, alimentação e manutenção do Cadastro Fiscal Positivo (CFP).
Além de tratar especificamente do Cadastro Fiscal, entre outros aspectos, o regulamento poderá dispor sobre as formas de atendimento dos contribuintes, o oferecimento de garantias, os prazos para análise de requerimentos, os recursos sobre as decisões proferidas pela autoridade responsável, as imposições de obrigações e os roteiros para a prática de atos de cobrança da Dívida Ativa pela Procuradoria-Geral da Fazendo Nacional (PGFN).
No que concerne preponderantemente aos interesses dos contribuintes, de outra parte, ecomenda-se que a Procuradoria-Geral da Fazendo Nacional (PGFN) promova as seguintes medidas:
i) crie canais exclusivamente destinados ao atendimento diferenciado dos contribuintes inseridos no Cadastro Fiscal Positivo (CFP), com recursos operacionais que permitam o encaminhamento de pedidos de transação e de informações sobre a cobrança da dívida ativa da União, no âmbito administrativo ou judicial, conforme as disposições da Lei nº 13.988/2020 (que regula transações de créditos da Fazenda Pública);
ii) institua regras mais flexíveis, ou flexibilize as regras já existentes, sobre ofertas de garantias, inclusive com possibilidade de substituição de bens por depósito judicial, por seguro-garantia ou por outras garantias juridicamente admitidas, de acordo com as condições especificamente verificadas no caso concreto;
iii) estabeleça critérios que permitam o oferecimento antecipado de garantias para regularização de débitos futuros;
iv) assegure que, nos processos de execução fiscal, a execução de garantias só seja pretendida depois do trânsito em julgado da decisão judicial correspondente; e
v) garanta que o acesso aos dados relativos ao enquadramento no Cadastro Fiscal Positivo (CFP) só seja disponibilizado ao próprio contribuinte[9].
Outras modificações da Lei n 14.195/2021.
1) Lei nº 9.430/1996 (Legislação Tributária Federal e processo administrativo de consulta) e Lei nº 10.522/2002 (Cadastro Informativo dos créditos não quitados de órgãos e entidades federais).
É válido ressaltar que a Lei nº 14.195/2021 também alterou a Lei nº 9.430/1996, que dispõe sobre a legislação tributária federal, as contribuições para a seguridade social e o processo administrativo de consulta, e a Lei nº 10.522/2002, que trata do cadastro informativo dos créditos não quitados de órgãos e entidades federais.
2) Lei nº 9.430/1996.
Assinale-se, em acréscimo, que na Lei nº 9.430/1996, foram alterados os artigos 80, 81, 82, além da inclusão do art. 81-A.
Art. 80. As inscrições no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) serão suspensas quando se enquadrarem nas hipóteses de suspensão definidas pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil.
Art. 81. As inscrições no CNPJ serão declaradas inaptas, nos termos e nas condições definidos pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, quando a pessoa jurídica: I - deixar de apresentar obrigações acessórias, por, no mínimo, 90 (noventa) dias a contar da omissão; II - não comprovar a origem, a disponibilidade e a efetiva transferência, se for o caso, dos recursos empregados em operações de comércio exterior; III - for inexistente de fato, assim considerada a entidade que: [...] IV - realizar operações de terceiros, com intuito de acobertar seus reais beneficiários; V - tiver participado, segundo evidências, de organização constituída com o propósito de não recolher tributos ou de burlar os mecanismos de cobrança de débitos fiscais, inclusive por meio de emissão de documentos fiscais que relatem operações fictícias ou cessão de créditos inexistentes ou de terceiros; VI - tiver sido constituída, segundo evidências, para a prática de fraude fiscal estruturada, inclusive em proveito de terceiras empresas; ou VII - encontrar-se suspensa por no, mínimo, 1 (um) ano.
Art. 81-A. As inscrições no CNPJ serão declaradas baixadas após 180 (cento e oitenta) dias contados da declaração de inaptidão. § 1º Poderão ainda ter a inscrição no CNPJ baixada as pessoas jurídicas que estejam extintas, canceladas ou baixadas nos respectivos órgãos de registro. § 2º O ato de baixa da inscrição no CNPJ não impede que, posteriormente, sejam lançados ou cobrados os débitos de natureza tributária da pessoa jurídica. § 3º Mediante solicitação da pessoa jurídica, poderá ser restabelecida a inscrição no CNPJ, observados os termos e as condições definidos pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil.
Art. 82. Além das demais hipóteses de inidoneidade de documentos previstas na legislação, não produzirá efeitos tributários em favor de terceiros interessados o documento emitido por pessoa jurídica cuja inscrição no CNPJ tenha sido considerada ou declarada inapta.
3) Lei nº 10.522/2002.
Na Lei nº 10.522/2002 houve alteração da redação dos artigos 3º e 19-C, além da inclusão do art. 19-F.
Art. 3º As informações fornecidas pelos órgãos e pelas entidades integrantes do Cadin serão centralizadas em um sistema de informações gerido pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, e será de sua atribuição a expedição de orientações de natureza normativa, inclusive quanto ao disciplinamento das respectivas inclusões e exclusões no sistema.
Art. 19-C. A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional poderá dispensar a prática de atos processuais, inclusive poderá desistir de recursos interpostos, e autorizar a realização de acordos em fase de cumprimento de sentença, a fim de atender a critérios de racionalidade, de economicidade e de eficiência.
Art. 19-F. A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional poderá contratar, por meio de processo licitatório ou credenciamento, serviços de terceiros para auxiliar sua atividade de cobrança.
§ 1º Os serviços referidos no caput deste artigo restringem-se à execução de atos relacionados à cobrança administrativa da dívida ativa que prescindam da utilização de informações protegidas por sigilo fiscal, tais como o contato com os devedores por via telefônica ou por meios digitais, e à administração de bens oferecidos em garantia administrativa ou judicial ou penhorados em execuções fiscais, incluídas atividades de depósito, de guarda, de transporte, de conservação e de alienação desses bens. § 2º O órgão responsável, no âmbito de suas competências, deverá regulamentar o disposto neste artigo e definir os requisitos para contratação ou credenciamento, os critérios para seleção das dívidas, o valor máximo admissível e a forma de remuneração do contratado, que poderá ser por taxa de êxito, desde que demonstrada a sua maior adequação ao interesse público e às práticas usuais de mercado.
Conclusão.
Pelo exposto, é preciso reconhecer que as reformas da Lei nº 14.195/2021 nas áreas mencionadas representam evidentes aprimoramentos das medidas de “arrecadação de tributos”. Todas as alterações favorecerão a qualidade do ambiente de negócios e certamente elevarão a posição do Brasil no ranking do Relatório Doing Busines do Banco Mundial.