Golden Share: Livre iniciativa versus soberania nacional, o caso da Embraer

02/10/2021 às 17:36

Resumo:


  • Análise dos fundamentos jurídicos da "golden share" na ordem econômica brasileira

  • Origem e evolução histórica da "golden share" em diversos países

  • Importância da compreensão da "golden share" nos âmbitos do direito administrativo e empresarial

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Análise acerca dos fundamentos jurídicos da “golden share”, com enfoque na colisão entre os princípios fundamentais da Livre Iniciativa e da Soberania Nacional, a partir do estudo de caso da ação prevista no Estatuto Social da Embraer S.A.

Introdução

O presente trabalho tem por objetivo analisar os fundamentos jurídicos da chamada “ação de classe especial” ou “golden share”, sob a ótica da colisão, na ordem econômica, entre os princípios fundamentais da Livre Iniciativa e da Soberania Nacional, a partir do estudo de caso da golden share prevista no Estatuto Social da Embraer S.A.

No ano de 2018, foi anunciado um acordo bilionário envolvendo duas das maiores fabricantes de aeronaves do mundo. Tratava-se da aquisição da Embraer S.A., conglomerado transnacional brasileiro, pela The Boeing Company, corporação multinacional norte-americana. Tal acordo, envolvia a compra de 80% das ações da Companhia brasileira pelo montante aproximado de 5,2 bilhões de dólares, além possibilidade de aquisição dos 20% de ações restantes posteriormente. As negociações para efetivação deste acordo duraram pouco mais de um ano, encerrando-se com a desistência da compra pela Boeing em abril de 2020, com ambos os lados acusando-se, mutuamente, do descumprimento de condições contratuais.

Considerando estes fatos à parte, importa para este trabalho que, durante as negociações, ganhou especial destaque nos veículos de imprensa, a necessidade de autorização do governo brasileiro para que a transação tivesse prosseguimento. (MELO E BRITO, 2018). 

Tal situação se deu, porque a Embraer era uma sociedade de economia mista com controle estatal até 1994, ano em que foi privatizada, e, em seu edital de alienação, foi inserida a exigência de uma golden share, que dava à União poder de veto em uma série de decisões administrativas, entre estas, no caso de transferência de controle acionário, após a desestatização. Em outras palavras, ainda que o Estado brasileiro não possua mais ações com valor nominal na companhia já que a privatizou, pode impedir, se desejar, que esta seja alienada à terceiros.

Diante destes fatos, este trabalho se justifica ante a necessidade de compreensão dos fundamentos que autorizam a existência das golden shares no ordenamento jurídico brasileiro, considerando-se a colisão, causada por estas, entre princípios fundamentais garantidos constitucionalmente. Outrossim, o estudo deste tema é importante nas searas dos direitos administrativo e empresarial, principalmente, no contexto histórico-econômico brasileiro atual, onde a desestatização de empresas públicas e sociedades de economia mista tem sido apontada como um dos principais fatores nas estratégias de superação das crises econômicas recentes. Por fim, o tema se torna relevante no contexto social presente, quando se verifica o crescimento acentuado da participação brasileira no mercado de ações, entendendo-se que tal conhecimento é fundamental para investidores em Companhias oriundas de antigas estatais.

Golden share: Conceito, evolução histórica e aplicabilidade na legislação brasileira.

Conforme ensina Pela (2012), a golden share (“ação dourada” ou “ação de ouro”, em tradução livre), consiste em um mecanismo que dá prerrogativas específicas ao ente desestatizante em companhias oriundas de estatais privatizadas, prerrogativas estas, geralmente associadas ao poder de veto em decisões tomadas por administradores ou em assembleias de acionistas. Em tese, tal ação tem o objetivo de proteger aspectos considerados essenciais em atividades entendidas como estratégicas que, por motivos diversos, o Estado transferiu a execução para a iniciativa privada, tendo sempre em vista, a preservação do interesse público em detrimento ao privado.

Schwind (2017) explica que as golden shares foram criadas no Reino Unido na década de 1980 para atender a algumas demandas econômicas e políticas que surgiram no processo de privatização de empresas estatais, sendo, a partir daí, adaptada em institutos similares em diversos países europeus, como França (action spécifique), Itália (poteri speciali), Alemanha (goldene Aktie e Spezialaktie), Bélgica (action spécifique), Portugal (ações preferenciais), Espanha (regime administrativo de controle específico), entre outros.

No Brasil, tal figura recebeu a denominação de ''ação de classe especial'', cuja primeira previsão expressa, ocorreu com a Lei nº 8.031/1990, que instituiu o Programa Nacional de Desestatização (PND), vigorando entre os anos de 1990 e 1997. Através das normas estabelecidas por esta lei, previu-se a emissão de ações de classe especial em três estatais a serem privatizas no PND, sendo estas, a Companhia Eletromecânica Celma, a Empresa Brasileira de Aeronáutica S.A. (Embraer), e a Companhia Vale do Rio Doce.

Na legislação atualmente vigente no país, a golden share está contemplada no § 7º do art.17 da Lei nº 6.404/1976, comumente denominada Lei das Sociedades por Ações, parágrafo este, inserido pela Lei nº 10.303/2001, cuja redação aduz que “nas companhias objeto de desestatização poderá ser criada ação preferencial de classe especial, de propriedade exclusiva do ente desestatizante, à qual o estatuto social poderá conferir os poderes que especificar, inclusive o poder de veto às deliberações da assembléia-geral nas matérias que especificar”. (BRASIL, 1976).

O caso da Embraer.

No caso da Embraer S.A., no edital de alienação (Edital PND-A-05/94-EMBRAER) que orientou a privatização da estatal no ano de 1994, constava em seu item 2.2.1, a exigência de uma golden share a ser detida exclusivamente pela União, dando a este ente federativo o poder de veto em uma série de decisões administrativas após a desestatização da Companhia. (SCHWIND, 2017). Esta golden share, compõe atualmente o capital social da empresa, nos termos do art. 2º do seu Estatuto Social, no entanto, ela não possui valor nominal. Isto significa que sua existência não dá a União direito à participação nos lucros ou a qualquer outro direito próprio de acionistas, além da prerrogativa de veto nas matérias elencadas no art. 9º do Estatuto Social. (EMBRAER, 2020).

Neste sentido, o art. 9º do Estatuto Social da Embraer S.A., afirma que a ação de classe especial confere à União poder de veto nas seguintes matérias: a) mudança de denominação da Companhia ou de seu objeto social; b) alteração e/ou aplicação da logomarca da Companhia; c) criação e/ou alteração de programas militares, que envolvam ou não a República Federativa do Brasil; d) capacitação de terceiros em tecnologia para programas militares; e) interrupção de fornecimento de peças de manutenção e reposição de aeronaves militares; f) transferência do controle acionário da Companhia; e, g) quaisquer alterações quanto às disposições relacionadas ao art. 9º do Estatuto Social, à organização e funcionamento da Companhia, aos acionistas, ao direito de voto, à representação da União no Conselho de Administração,  aos mecanismos de proteção da Companhia, e, por fim, aos direitos atribuídos pelo Estatuto Social à ação de classe especial. (EMBRAER, 2020).

Conforme se verifica, uma das hipóteses de veto constantes na golden share da Embraer S.A., é aquela que ocorre diante da possibilidade de transferência de controle acionário da Companhia, situação que ocorreria caso a transação com a Boeing se concretizasse. Por esse motivo, tal acordo dependeu de autorização do governo brasileiro.

Quando os primeiros rumores sobre as negociações entre as Companhias se iniciaram, o então Presidente da República Michel Temer, descartou a possibilidade de autorização da União para que tal acordo ocorresse. Foi apenas em janeiro de 2019, após várias tratativas, que o presidente eleito Jair Bolsonaro, autorizou as negociações de venda, argumentando que “a proposta final preservava a soberania e os interesses nacionais”. (BRANDÃO, 2019). A preocupação do governo brasileiro era com a possível perda do polo tecnológico representado pela Embraer, que poderia ser transferido para os Estados Unidos, além, claro, da possibilidade de demissão em massa de funcionários.

A fusão entre as empresas também repercutiu em diversos setores da sociedade civil organizada, provocando uma série de ações judiciais contrárias, propostas por diversas entidades, como o Ministério Público do Trabalho e sindicatos do setor, visto que, segundo o memorando de entendimento entre as duas empresas, a Embraer não teria participação em decisões estratégicas, com todo o controle social e administrativo ficando a cargo da Boeing. (JUCÁ, 2018).

Princípio da Livre Iniciativa versus Princípio da Soberania Nacional

Ao analisar os fatos e conceitos apresentados, percebe-se que as golden shares representam uma forma do ente desestatizante proteger seus interesses em antigas propriedades estatais que, em razão da privatização, fez com que este ente perdesse o controle sobre suas atividades. Tal prática seria, teoricamente, uma afronta ao princípio da Livre Iniciativa, uma vez que o Poder Público, ao privatizar determinada empresa pública ou sociedade de economia mista, está transferindo para a iniciativa privada o controle acionário, os lucros e os riscos da atividade. Mais do que isso, trata-se de um processo de alienação, o que, nas normas do Direito Civil, tem como efeito a perda do alienante dos direitos de propriedade, a saber, o uso, o gozo, a disposição e a reinvindicação. 

O princípio da Livre Iniciativa é, juntamente com os valores sociais do trabalho, um dos fundamentos da República brasileira, nos termos do art. 1º, inciso IV da CRFB/1988 e, conforme ensina Schwind (2017), trata-se da liberdade do indivíduo para o exercício da atividade econômica, de forma a lhe assegurar a existência digna, absorvendo entre outros preceitos, a liberdade de comércio e indústria, facilitada, no que couber, pela não ingerência do Estado. 

Outrossim, faz-se necessário observar o art. 170 da CRFB/1988, cujo texto prediz: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; [...]”. (BRASIL, 1988).

Da leitura do art. 170 da Constituição, percebe-se que os princípios do valor social do trabalho e da livre iniciativa, constantes em seu caput, são os principais fundamentos da ordem econômica nacional. Entretanto, outros princípios, inseridos em seus incisos, atuam como limitadores da atividade econômica, autorizando a interferência do Estado na economia. De acordo com Schwind (2017), dentre os princípios presentes nos incisos do supracitado art. 170, aquele cuja limitação imposta à ordem econômica fundamenta a existência das golden shares no ordenamento jurídico brasileiro, é o princípio da Soberania Nacional.

Segundo Carvalho Filho (2019), o conceito de princípio da Soberania Nacional deve ser considerado em dois aspectos, o interno e o externo. A soberania interna significa que o poder do Estado é o mais alto existente dentro do Estado. A soberania externa significa que, nas relações recíprocas entre os Estados, não há subordinação nem dependência, e sim igualdade. Desta forma, quando analisada a soberania nacional no âmbito interno, a Constituição autoriza o Estado a interferir na ordem econômica afim de garantir a defesa do interesse público.

Outro fundamento a ser observado, de acordo com Carvalho Filho (2019), surge a partir da associação entre o princípio da Soberania Nacional e o princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Privado, sob a prerrogativa de garantia do bem estar social. A associação entre esses dois princípios fundamenta a existência de diferentes instrumentos jurídicos situados no limite entre o Direito Público e o Direito Privado, como, por exemplo, as cláusulas exorbitantes nos Contratos Administrativos, a servidão administrativa, a desapropriação e, claro, a golden share

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Assim, considerando o objetivo deste trabalho, a saber, a análise dos fundamentos jurídicos da golden share, têm-se, portanto, que a existência deste instrumento encontra respaldo jurídico não apenas legal, mas, principalmente, constitucional, a partir do entendimento de que o princípio da Soberania Nacional é um limitador do princípio da Livre Iniciativa no âmbito da ordem econômica, nos termos do art. 170 da CRFB/1988, bem como na aplicação conjunta entre o princípio da Soberania Nacional e o princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Privado.

Considerações finais

Diante do exposto, conclui-se que dois são os fundamentos jurídicos que autorizam a existência das golden shares no ordenamento jurídico brasileiro. O primeiro, diz respeito ao princípio da Soberania Nacional como limitador do princípio da Livre Iniciativa, nos termos do art. 170 da CRFB/1988. O segundo, nasce da associação entre o princípio da Soberania Nacional e o Supremacia do Interesse Público sobre o Privado, tendo em vista a defesa dos interesses coletivos e do bem estar social. A compreensão deste tema é importante tanto para operadores do Direito quanto para a sociedade em geral, visto ser as golden shares um instituto ativo na legislação brasileira, autorizado pela Lei das Sociedades por Ações. Para os operadores do direito, a relevância do tema se dá no âmbito dos direitos administrativo e empresarial, em especial, ante a tendência desestatizante do Estado brasileiro, como forma de superação de crises econômicas. Por fim, para a sociedade em geral, o conhecimento jurídico quanto ao tema se torna notável, principalmente, para investidores, em ações e outros títulos, de Companhias resultantes de antigas estatais. 

Referências

BRANDÃO, M. Bolsonaro diz que não se opõe à fusão entre Embraer e Boeing. Agência Brasil, Brasília, 10 de jan. de 

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988. 

Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.

BRASIL, Lei n. 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Diário Oficial da União, Brasília, 1976. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6404compilada.htm.

CARVALHO FILHO, J. S. Manual de Direito Administrativo. 33 ed. São Paulo: Atlas, 2019.

EMBRAER. Estatuto Social. Aprovado pela Assembleia Geral Extraordinária de 29 de abril de 2020. São Paulo, 2020. Disponível em: https://ri.embraer.com.br/show.aspx?idCanal=Kacx+BqjYTwZmMKBRQu5Yg==. 

JUCÁ, B. Embraer sem poder estratégico na fusão com Boeing levanta temor de demissões. El País, São Paulo, 01 de out. 2018. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/09/26/economia/1537984567_559748.html.

MELO, K; BRITO, D. Temer diz que vetará possível transferência de controle da Embraer para a Boeing. Agência Brasil, Brasília, 29 de jan. de 2018. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2018-01/temer-diz-que-vetara-possivel-transferencia-de-controle-da-embraer-para. 

PELA, J. K. As golden shares no direito societário brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2012.

SCHWIND, R. W. O estado acionista: empresas estatais e empresas privadas com participação estatal. São Paulo: Almedina, 2017.

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