FONTE: CAGGIANO, MONICA HERMAN SALEM, UM NAVIO À DERIVA? – BRASIL, 2011.
O ensaio permeia uma tensão assumida entre constitucionalismo e democracia, relacionamento que assume constantemente posições opostas devido sua dialética. Afinal, “o bicho homem é um animal social”, e o conflito faz parte.
Esse relacionamento advindo da conexão como homem e sociedade do constitucionalismo e democracia, esboça a necessidade permeada por uma parada ou ancoragem limpa sobre como definir e aceitar a manutenção da coexistência dessa relação, que vem marcada por dependência (uma da outra); uma está na base da outra, seja pelo poder constituinte, seja pela soberania.
Ocorre porém que este relacionamento entre elas não se opõe reciprocamente, hora essa relação é produtiva configurando uma democracia como uma releitura permanente da Constituição; hora a Constituição se estabelece cotidianamente através de seus intérpretes e destinatários/ usuários, gerando repercussões desagradáveis pelo fato da democracia ser compreendida somente em termos de representação política da vontade popular, diminuindo a força do que é pelo povo e para o povo para quem terá o maior poder em decidir por este povo.
Por um lado, a democracia como representação de governo soberano do povo, do outro o constitucionalismo, a própria Constituição em sua supremacia, o primado da Lei, formando uma fórmula política instituída de princípios de respeito aos direitos fundamentais e à autonomia das pessoas, bem como uma modelo organizacional social estruturado na cooperação de pessoas livres e iguais, qual denomina-se constitucionalismo democrático.
A deriva desse relacionamento se visa pela tensão assumida entre ambas (constitucionalismo e democracia), onde a democracia não é mais entendida como uma manifestação da vontade da maioria, mas como uma manifestação do povo como entidade, o desejo de se terem respeitados seus direitos básicos e que sejam devidamente concedidos. Nessa gangorra, de um lado o princípio ideal por normas e questões elegíveis a todos, valorizando os princípios morais coletivos e os direitos fundamentais das minorias, onde ambas buscam reduzir a desigualdade social e racial por outro, a democracia só se torna legal se os direitos garantidos pela Constituição forem respeitados, visto que neste ponto a vontade da maioria não tem se apresentado como suficiente.
Uma garantia pétrea por vezes utópica, deficiente em sua materialização prática. Uma assinatura dos irmãos Grimm em uma obra de supremacia nacional.
A ânsia pelo poder, pela força da ideia da participação em decidir sobre sua sociedade/comunidade alimenta a luta partidária pelo patrono reinado do estado democrático. Essa ancoragem se torna neblinosa, causando sentimento de direção incerta, quando, como Claude Lefort (LEFORT, 1991:29) aponta, a democracia de forma selvagem por seus usuários, vem marcada por conflitos, não se reduzindo a um sistema de instituições, desde certezas definitivas e indeterminadas que buscam uma redefinição, e sim pelo “Estado Democrático de Direito” que “excede os limites tradicionalmente atribuídos ao Estado de direito”, na medida em que essa sociedade “experimenta direitos que ainda não lhe estão incorporados” (LEFORT, 1987:56).
Em um extremo a força estatal com a união buscam perpassar segurança institucional, lutando contra um maremoto de sentimentos enraizados culturalmente sobre a posição do poder para e pelo povo, que de forma brusca marcam a historicidade eleitoral brasileira; por outro, a democracia como regime, favoritada a elege e célebre força de realização universal, revestida de louvor e desejo pelas gerações descendentes da escravatura europeia/ americana, traz como valores de liberdade e igualdade norteadores da sua venda idealista, uma dicotomia dúbia, sobre até onde se estende este mar de possibilidades no que diz respeito àqueles pensamentos contra a própria democracia, que, ao serem questionados, se utilizam do mesmo artifício libertário sobre poder e o direito à exercer individualmente sua cidadania. Vertentes para situações e fatos de cunho específico tem ganhado espaço para abraçar quem quiser se vestir de democracia em qualquer instância e circunstância social.
A reorientação constitucional, bem como os reparos e o alinhamento de valores para comandar o regime democrático tem colocado em xeque a jugular do brasileiro. A necessidade de se adaptar as constituições à realidade atual tem sido aclamada como transplante em U.T.I. do S.U.S.
A proteção legal e a democracia ainda dependem do antigo governo constitucional, é como se fosse se remediar desnutrição vitamínica com biotônico Fontoura, ou uma lobotomia para induzir em coma uma sociedade efervescida e psicótica.
Um exemplo sobre a efetividade deste relacionamento se dá pela retenção de cotas em universidades e instituições técnicas federais com base em classe social, raça e etnia, e tem sido alvo de inúmeras críticas e protestos desde sua aprovação. A L. nº 12.711/2012 prevê esta retenção; embora tenha sido formulada e aprovada por meio do processo legislativo, qual é considerado estritamente democrático, a própria sociedade brasileira questiona e resiste de forma preconceituosa a existência dessas medidas. Um câncer, ou dicotomicamente parafraseando o ex-Ministro Joaquim Barbosa Gomes, “nossa diplomacia é formada em 99% por brancos” (Geledés, 2014); um país indígena, filho da escravidão, que possui dívidas culturais inestimáveis, é um aprendiz na escuridão sobre se investir em seus ideais democráticos, se tratando de questões basilares de política pública é necessário se especular sobre sua eficácia e sobre soluções para o surgimento de problemas, devendo ser argumentada e solidada as ações afirmativas para cada situação específica vivida atualmente na nova legislação, não sendo mais distinguido se “o quem fará”, irá dissecar sua ação no “para quem”.
Bem como a tragédia de Antígona, o percalço impudico atual noticiado aos 27/08 pp. nos veículos de mídia e informação jornalística pelo Centro de Comunicação Social do Exército, qual se encontra em análise pelo comandante com apoio do Departamento de Educação e Cultura do Exército (Decex) o pedido para pessoa de Laura Bolsonaro.
A soberania de um regime estatal deveria ser o tesouro do sucesso de seu povo; e não um odre descuidado, permitindo seu ideal democrático remar mudando a direção de rumo ao sabor dos ventos partidários.