Violação de correspondência, correspondência comercial, divulgação de segredo, violação de segredo profissional e invasão de dispositivo informático no Código Penal

Uma discussão do artigo 151 aos artigos 154-A e 154-B do Código Penal brasileiro

Leia nesta página:

À luz da doutrina consultada, nomeadamente as obras de Cezar Bitencourt e Rogério Greco, realizamos uma apresentação das considerações dos dois autores acerca de cada um dos crimes do Código Penal brasileiro entre os artigos 151 e 154-A e 154-B.

Introdução

No presente artigo, trataremos dos crimes previstos entre os artigos 151 e 154-A do Código Penal Brasileiro, a saber, (1) a violação de correspondência e a (2) violação de correspondência comercial, (3) a divulgação de segredo, (4) a violação de segredo profissional e (5) a invasão de dispositivo informático.

Os autores escolhidos da doutrina de Direito Penal para nossa consulta foram Cezar Bitencourt com seu Tratado de Direito Penal 2: parte especial - dos crimes contra a pessoa e Rogério Greco com o Curso de Direito Penal: parte especial, volume II: introdução à teoria geral da parte especial: crimes contra a pessoa.

Nosso intuito foi o de, à luz da doutrina referida, através de cuja consulta realizamos nossa pesquisa, realizarmos uma apresentação das considerações dos dois autores acerca de cada um desses crimes, sem, contudo, sermos exaustivos em nossas exposições. 

     

1. A violação de correspondência no artigo 151 do Código Penal

Nesta primeira seção do presente artigo, trataremos do art. 151 do Código Penal e seus respectivos parágrafos e incisos. Antes de mais nada, há de se considerar a evolução histórica desse artigo e o porquê de estar presente no nosso código penal até os dias atuais.

Sabe-se que a Revolução Francesa foi um dos grandes marcos históricos da civilização ocidental e tinha como ideal a manifestação da liberdade individual, influenciando não apenas a Europa, mas também diversos outros países, como o Brasil. Sendo assim, em 1824, a Constituição brasileira em seu art. 179, §27, garantiu ao indivíduo a inviolabilidade de correspondência, sendo incluída também no Código Penal como crime em 1830. Já no século XX, a Lei nº 6. 538 de 1978 revogou tacitamente o caput do art. 151 e seu §1º, I do Código Penal. Em termos práticos, essa revogação implicou na mudança da definição do crime, antes tido com um crime de conteúdo variado, passou a ser um crime de conduta única.

Sobre o bem jurídico tutelado nesse artigo, Cezar Roberto Bitencourt diz:  

 

O bem jurídico protegido, neste artigo, é a inviolabilidade do sigilo da correspondência, das comunicações telegráficas e das comunicações telefônicas. A importância desse bem jurídico, na garantia da liberdade de expressão, fundamentou, inclusive, a necessidade de garanti-lo constitucionalmente, elevando-o à condição de garantia constitucional individual (art. 5º, X e XII). (BITENCOURT, 2020, P. 1436 e 1437)

O sujeito ativo tem como única restrição não ser o remetente ou o destinatário da correspondência, porque é impossível autoviolar o sigilo da própria correspondência. Enquanto isso, os sujeitos passivos são justamente o remetente e o destinatário, pois são aqueles que podem sofrer o dano da violação.

Segundo a doutrina alemã, enquanto a correspondência não chega ao destinatário apenas o remetente é titular do bem jurídico tutelado. Sendo assim, o destinatário somente passa a ser titular quando recebe a correspondência.

Em relação à prescrição, nosso ordenamento adotou o entendimento parecido com aquele citado da doutrina alemã em seu art. 11 da Lei nº 6.538/78: “os objetos postais pertencem ao remetente até a sua entrega a quem de direito.”

O caput do art.151 protege a inviolabilidade do sigilo da correspondência, utilizando o termo “devassar” na sua redação, que significa “descobrir” ou “olhar indevidamente” correspondência alheia fechada, total ou parcialmente.

Para consumação do crime, não é necessária a abertura da correspondência, basta que o indivíduo, por qualquer meio, tome conhecimento do conteúdo. Além disso, temos como elemento normativo desse tipo penal a devassa ilegítima, que significa que o crime é praticado sem autorização do sujeito que deveria receber a correspondência. Não constitui crime, portanto, as hipóteses de o agente ter aberto a correspondência com a autorização dos sujeitos passivos e se o agente apenas se limitar a ler correspondência aberta, sem apossar-se, sonegá-la ou destruí-la.

Por fim, o Código Penal não define o que é correspondência, mas, modernamente entendemos que pode ser considerado correspondência todo e qualquer meio de comunicação. Sendo assim, há de se frisar que o fundamental nesse tipo penal é que, para cometer o crime, é necessário que a correspondência esteja fechada, pois isso demonstra o caráter sigiloso e o desejo de que seja conhecida apenas pelos sujeitos passivos (remetente e destinatário).

Como dito anteriormente, a redação do art. 151, §1º, inciso I, o qual equipara a sonegação de correspondência à violação, foi alterada tacitamente pela Lei 6.538/78. Contudo, ao contrário do que vimos no caput do art.151, é irrelevante se a correspondência está aberta ou fechada e que o sujeito ativo tenha ou não conhecimento do seu conteúdo no §1º, I, do art.151. Assim, o que importa nesse caso é o agente se apossar de correspondência alheia com o objetivo de sonegá-la ou destruí-la, total ou parcialmente.

A redação do art. 151, § 1º, I, do Código Penal, a partir de 1978, pode ser interpretada desse modo: “Incorre nas mesmas penas quem se apossa indevidamente de correspondência alheia, embora não fechada, para sonegá-la ou destruí-la, no todo ou em parte” (art. 40, § 1º). Logo, se o agente, sem se apossar de correspondência alheia, a sonega ou a destrói, não pratica esse crime, pois a conduta incriminada é somente “apossar-se” de correspondência alheia. (BITENCOURT, 2020, p. 1447)

O inciso II traz como condutas tipificadas os verbos “divulgar” no sentido de dar publicidade, “transmitir” significando comunicar, em tese, a um número indeterminado de pessoas e, por último, “utilizar” como explorar.

No caso deste inciso, apesar se usarmos a expressão “número indeterminado de pessoas”, isto não quer necessariamente dizer que seja imprescindível para configuração do tipo penal que uma pluralidade de pessoas tome conhecimento, pois o que é punido é a transmissão a outrem. Sendo assim, é suficiente para configuração do crime que apenas uma pessoa tome conhecimento do conteúdo da comunicação:

Pode-se dizer que, na definição desse fato delituoso, o legislador abusou do direito de usar elementos normativos na descrição típica; essa “anormalidade” amplia o espectro da definição típica, diminui a garantia do tipo fechado, dificulta a defesa e, implicitamente, viola o princípio da taxatividade da tipicidade, pois implica juízos de valores, que demandam a intervenção de outras áreas do conhecimento humano para encontrar o verdadeiro sentido de referidas elementares. (BITENCOURT, 2020, P. 1449)

 

De acordo com art. 5º, XII, da Constituição Federal, cabe exceção ao princípio da inviolabilidade do sigilo das comunicações se feito “por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”. Cabe salientar que o crime de interceptação telefônica não está mais tipificado no Art.151, §1º, II do Código Penal, mas está presente no Art. 10 da Lei nº 9.296/96.

O inciso III do §1º art. 151 traz em sua redação o verbo “impedir” no sentido de “barrar” ou “não permitir por qualquer meio” a comunicação ou conversação referidas no tipo penal. Esse inciso de difere dos outros citados no §1º, porque não há exigência expressa de elemento normativo:

Na verdade, não há no tipo penal em exame a exigência de nenhum elemento normativo especial. Contudo, ninguém pode impedir a comunicação referida no dispositivo se não houver previsão legal; mas essa circunstância decorre da regra geral, segundo a qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, II, da CF). Assim, mesmo que não houvesse a previsão legal em análise, o impedimento de comunicação ou conversação poderia tipificar o crime de constrangimento ilegal previsto no art. 146 do CP. (BITENCOURT, 2020, P.1453)

 

O inciso IV do §1º art. 151 tem como verbos do tipo penal “instalar” e “utilizar”, sendo assim, trata-se de um crime de ação múltipla, portanto, se o indivíduo instala “telecomunicações” e, logo após, as utiliza, ele pratica um único crime. Desse modo, somente o fato de o sujeito instalar ou utilizar sem a devida licença constitui crime.

            No tocante ao crime de violação de correspondência do art.151, caput, do Código Penal, a consumação do crime ocorre quando o sujeito ativo toma conhecimento do conteúdo da correspondência, seja total ou parcialmente. Além disso, como apontado por Bitencourt, o conteúdo não precisa ser necessariamente um segredo, isto é, basta saber independentemente de qual seja o conteúdo.

            Nesse caso, é permitido a tentativa, como explicado por Leonardo Greco na seguinte passagem: “a tentativa é admissível quando, por exemplo, o agente é impedido de tomar conhecimento do conteúdo da correspondência fechada, quando já havia posicionado o estilete para abri-la.” (GRECO, 2015, p. 578)

            Enquanto isso, o crime do art.151, §1º, I, é um crime formal, logo, não precisa ocorrer a sonegação ou destruição para a consumação do crime, sendo necessário apenas que o agente se aposse da correspondência com o fim de sonegar ou destruir. Assim, a Lei n° 6.538/78, que mudou a caracterização do crime de material para formal, determina que a consumação do crime ocorre com o mero apossamento, sendo a sonegação ou destruição apenas elementos subjetivos especiais do tipo:

 

É suficiente, portanto, o ato de se apossar com o intuito de sonegar ou destruir a correspondência alheia. Caso consiga efetivamente o seu intento, por exemplo, na hipótese de destruição da correspondência, tal fato será visto como mero exaurimento do crime, em face de sua natureza formal, sendo considerado, de acordo com a redação típica, como um delito de consumação antecipada, bastando a prática da conduta prevista no núcleo do tipo para que a infração penal reste consumada. (GRECO, 2015, P.568)

 

            A tentativa também é permitida no caso do crime de apossamento, como, por exemplo, quando o agente é interrompido por um terceiro antes de conseguir se apossar da correspondência.

            Em relação aos incisos II e II do § 1 do Art. 151, acontece a consumação quando o sujeito ativo divulga, transmite a outrem, utiliza abusivamente ou impede a comunicação, sendo permitido tentativa em todos os casos.

            Por fim, o crime do inciso IV do Art.151 consuma-se quando o agente instala ou utiliza telecomunicações, sem a devida observância da Lei n° 4.117/62 e outros dispositivos legais. Ademais, é possível tentativa nesse caso também.

 

            O crime de violação é um crime comum, pois pode ser praticado por qualquer agente, não precisando ter condição especial. É um crime instantâneo, tendo em vista que sua consumação ocorre com o recebimento da correspondência pelo agente. É um crime comissivo, porque é impossível que seja praticado pela modalidade da omissão. E, por último, é um crime doloso, não tendo uma modalidade culposa.

            O autor Cezar Roberto Bitencourt acredita que a violação de correspondência pelo cônjuge do destinatário, apesar de não constituir crime, seria errado, pois o casamento ou a união estável não justificam a violação da correspondência alheia. Desse modo, o sujeito passivo só teria direito a eventuais danos morais ou materiais, os quais podem ser objeto de demanda judicial futura tendo em vista a possível separação ou divórcio do casal. Em conclusão, a devassa da correspondência não estaria abrangida pelos deveres conjugais estabelecidos no art. 1.566 e incisos do Código Civil.

            No entanto, segundo Leonardo Greco, essa violação não seria crime, porque não pode haver segredos dentro da relação conjugal, sendo necessário que tudo seja compartilhado entre os cônjuges, mesmo que não isto não esteja explicitamente disposto em lei.

            O art.151, § 2º, do CP, estabelece uma majorante especial no caso de ocorrer dano para alguém, seja material ou moral. Nesse caso, se ocorrer dano, a pena é aumentada pela metade da pena anterior. Contudo, é mister que esse dano seja relevante e provado nos autos.

            A respeito do § 3º desse artigo, temos uma qualificadora, devido à previsão de uma nova pena-base de 1 a 3 anos de detenção caso o crime seja praticado por funcionário da empresa postal, telegráfica ou radiográfica que abusa de sua função.

Nessa perspectiva, essa qualificadora só incide quando forem esses agentes e tiver abuso de seu dever funcional, como explicado por Bitencourt no seguinte trecho:

 

Não responderá pela qualificadora se, a despeito de ser funcionário da empresa, sua função não for usada com infringência de dever funcional, ou não lhe facilitar a prática do crime, como, por exemplo, um motorista, faxineiro, office-boy; enfim, mais que a condição de funcionário, é fundamental a violação de dever funcional por parte do sujeito ativo. (BITENCOURT, 2020, p. 1460)

 

            A violação de correspondência será um crime subsidiário caso a devassa não seja um fim em si mesmo, mas apenas um meio ou elemento de um crime mais grave. Um exemplo em que esse crime deixa de ser autônomo seria o caso de o agente violar a correspondência alheia para praticar crime de extorsão, respondendo apenas pelo último crime.

O Art.10 da Lei n° 6.538/78 estabelece algumas hipóteses de exclusão de ilicitude no caso de violação de correspondência, além daqueles excludentes do art.23 do Código Penal. Assim, a abertura de carta para pessoa com o mesmo nome e mesmo endereço ou a abertura de carta que tenha como conteúdo o pagamento de tributos são excludentes de ilicitude admitidos pela Lei Postal.

Todavia, Cezar Bitencourt aponta dúvidas em relação à constitucionalidade desse artigo, devido a previsão constitucional no Art. 5º, inciso XII, da CF, que não admite exceção à inviolabilidade da correspondência.

            No caso dos crimes contidos no caput e no § 1º, inciso I a IV, do art.151, a pena é de até 6 meses ou pagamento de 20 dias-multa. Na redação original do artigo, a pena era de 1 a 6 meses, porém o art.40, caput, da Lei Postal, revogou isso e determinou que fosse uma pena de detenção de até 6 meses.

            A falta de um limite mínimo para a pena permite que o agente seja condenado apenas por um dia, não podendo ser menor apenas porque o art.11 do Código Penal determina que as frações de dia sejam desprezadas.

            O crime de interceptação telefônica tem pena de reclusão de 2 a 4 anos e multa, segundo o Art.10 da Lei n° 9.296/96. Enquanto isso, o crime de instalação ou utilização ilegal de estação ou aparelho radioelétrico tem pena de detenção de 1 a 2 anos.

Além disso, temos a causa de aumento de pena no caso de dano que incide sobre o caput e os incisos do § 1° desse artigo e a qualificadora que aumenta a pena de detenção para 1 a 3 anos.

            Finalmente, em relação ao § 4º, do art.151, esse crime será de ação penal pública condicionada à representação, com exceção do § 1º, IV, e do § 3º que são de ação penal pública incondicionada. Desse modo, apenas o remetente e o destinatário serão titulares do direito de representar e somente eles poderão ir a juízo devido à violação de sua privacidade individual. Cabe apontar por último que esse crime é de dupla subjetividade, assim, não é limitado a apenas um representante, podendo os dois representarem conjunta ou separadamente.

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2. A violação de correspondência comercial no art. 152 do Código Penal

Nesta seção, trataremos do artigo 152 do Código Penal, que estabelece uma detenção de 3 meses a dois anos para o crime de “abusar da condição de sócio ou empregado de estabelecimento comercial ou industrial para, no todo ou em parte, desviar, sonegar, subtrair ou suprimir correspondência, ou revelar a estranho seu conteúdo” (art. 152, CP), crime que só se procede mediante representação (art. 152, p.u., CP), sendo, portanto, uma ação penal pública condicionada.

Veremos, nesta seção, qual bem jurídico é tutelado neste artigo, quais são os sujeitos ativo e passivo, a adequação típica, a consumação e tentativa deste crime e a classificação doutrinária e pena, nos apoiando em Bitencourt (2012) e Greco (2015). Afinal, trata-se de dispositivo que dá um tratamento diferenciado à violação de correspondência no âmbito comercial, estendendo os conceitos do art. 151, CP, para a correspondência comercial, mas com especialidades que limitam, ampliam ou modificam as figuras analisadas quando tratamos do art. 151, conforme reitera Cezar Bitencourt. Por sua vez, Greco destaca ainda que a violação de correspondência comercial se trata da última espécie de delitos contra a inviolabilidade de correspondência.

No que diz respeito ao bem jurídico tutelado, conforme afirma Cezar Bitencourt, é importante nos atermos às duas condições especiais em relação ao artigo anterior: na hipótese do art. 152 o sujeito ativo apenas pode ser o “sócio ou empregado” e o destinatário da correspondência é limitado a “estabelecimento comercial ou industrial”, sem haver limitação à correspondência que contenha “segredos”, estes sendo tutelados nos artigos 153 e 154, CP. Bitencourt também reitera haver elevação da sanção penal na hipótese do art. 152, quando comparada à sanção penal do art. 151, tendo o legislador considerado superiores os interesses protegidos no art. 152, segundo o autor.

Já Greco afirma que esta correspondência comercial pode ser constituída por contas, faturas, cartas{C}[1] etc. E que devemos entender por “estabelecimento comercial ou industrial” qualquer lugar que realize tais atividades, como escritórios, lojas, fábricas etc. Para Greco, o que atribui particular reprovabilidade ao fato, justificando a severidade da punição, é o abuso (valer-se indevidamente) da condição de sócio ou empregado, apoiando tal incriminação a possibilidade de dano à empresa ou a terceiro, com desvio, sonegamento, subtração ou supressão de correspondência comercial ou industrial ou revelação de seu conteúdo a estranho. Aliás, para Greco, sustendando-se em Aníbal Bruno, somente um comportamento que tiver potencialidade de dano à empresa comercial ou industrial, portanto, poderá ser considerado típico, não sendo qualquer revelação de correspondência que deverá ser entendida como criminosa, por exemplo, revelar uma correspondência com um anúncio imobiliário.

O crime previsto no art. 152 é um crime próprio: seu sujeito ativo somente pode ser quem reunir as condições exigidas pelo tipo penal, neste caso, apenas o sócio ou empregado de estabelecimento comercial ou industrial, o que não inclui acionistas, investidores, colaboradores, vendedores anônimos, etc, salvo se agir ao abrigo do concurso de pessoas, conforme pondera Cezar Bitencourt. Do mesmo modo, não podem responder por este crime os sócios ou empregados de estabelecimentos que não sejam comerciais ou industriais, como prestadores de serviços, cooperativas, sociedades civis, etc. Já o sujeito passivo é exatamente o estabelecimento comercial ou industrial (e não estabelecimentos de outra espécie) e seus sócios, ou demais sócios, caso um deles seja o sujeito ativo. As mesmas considerações são feitas por Rogério Greco.

            O núcleo do tipo é alternativo: desviar, sonegar, subtrair, suprimir ou relevar a estranho o conteúdo de correspondência, conforme destaca Bitencourt. Também se trata de crime próprio, como já salientamos acima, e as condutas descritas no art. 152 caracterizam crime de ação múltipla. O crime se caracteriza mesmo que a conduta do agente venha a atingir o conteúdo da correspondência apenas em parte. Segundo Bitencourt, a tipificação das condutas está limitada ao uso abusivo da condição de sócio ou empregado, praticando indevidamente qualquer uma das condutas referidas, em desacordo com a condição de empregado ou sócio. Sem abuso dessa condição do sujeito ativo, não haverá crime, de acordo com o autor. O estranho a quem o sujeito ativo revelar correspondência comercial ou industrial poderá responder como coautor ou partícipe, a depender das circunstâncias e da natureza da participação.

            No que se refere ao elemento subjetivo, trata-se, conforme Bitencourt, do dolo constituído pela vontade livre e consciente de violar sigilo da correspondência comercial. O sujeito ativo deve ter conhecimento de que a correspondência se destina ao estabelecimento comercial ou industrial e que tem o dever de zelar por sua inviolabilidade e não revelar seu conteúdo a nenhum estranho. O dolo pode se dar de forma direta ou eventual. E não há modalidade culposa para este crime previsto pelo art. 152, portanto não há responsabilização criminal se o agente praticou culposamente uma conduta prevista (Rogério Greco dá como exemplo desta hipótese um empregado que destrua uma correspondência importantíssima negligentemente, ao permitir que a brasa de seu cigarro caia sobre ela). Greco, por sua vez, apoiado em Damásio esclarece que, além do dolo, é necessário que o sujeito ativo pratique o fato com um elemento subjetivo do tipo específico contido na expressão “abusar”, conforme já reiteramos.

            O crime do art. 152 é consumado com a prática efetiva das ações de desviar, sonegar, subtrair ou suprimir a correspondência ou, na segunda modalidade, revelar seu conteúdo a estranho, conforme destaca Bitencourt. A prática de mais de uma dessas condutas não configura concurso de crimes, devendo o agente responder por apenas uma figura delitiva (pois é crime de ação múltipla). A tentativa é admissível se as condutas admitirem fracionamento, permitindo a identificação da interrupção da fase executória. Greco e Bitencourt sublinham que se trata de crime plurissubsistente e por isso a tentativa é admissível (Greco dá como exemplo a hipótese de empregado impedido de jogar no fogo, a fim de queimar, uma correspondência comercial dirigida ao estabelecimento comercial de que fosse funcionário).

Por fim, em relação à classificação doutrinária, como vimos, Bitencourt aponta que a violação de correspondência comercial é crime próprio (só pode ser praticada por sócio ou empregado de estabelecimento comercial ou industrial, portanto, de acordo com Greco, se trata de crime próprio quanto ao sujeito ativo bem como ao sujeito passivo). E Bintencourt também aponta, sobre o crime do art. 152, que há dupla subjetividade ativa (duas espécies de sujeitos ativos: sócio ou empregado), que é instantâneo (se consuma no momento que o agente pratica qualquer uma das condutas nucleares do tipo), que é comissivo (sendo impossível praticá-lo através de omissão) e que é doloso (não havendo previsão de sua modalidade culposa). Greco, por sua vez, ainda o classifica como crime de ação múltipla (o agente pode praticar várias condutas previstas no tipo e só responderá por uma infração penal), de forma livre e plurissubsistente, admitindo ainda que possa ser omissivo impróprio (no caso do agente gozar do status de garantidor). A modalidade omissiva do crime do art.152 é um ponto de divergência, portanto, entre Bitencourt e Greco. O exemplo de Greco para a hipótese, retirado de Damásio, é o de alguém com obrigação de zelar por arquivo de correspondência comercial que, prestes a se perder estando próxima a uma janela aberta em uma ventania, no centro de uma grande cidade, nada faça para evitar que caia e se perca na multidão e no trânsito de veículos.

Sua pena é privativa de liberdade, com detenção de três meses a dois anos, superior à pena cominada ao crime de violação de correspondência do art. 151, CP, salvo as formas qualificadas. Para Bitencourt essa desproporcionalidade é paradoxal diante da importância dos direitos da personalidade, da privacidade e da intimidade, protegidos constitucionalmente. Porém, o legislador de 1940 não estava sob a ótica da CF-88, conforme explica o autor. A ação penal, por fim, é pública condicionada à representação e os titulares do direito de representar serão tanto a pessoa jurídica quanto os sócios, ou a pessoa jurídica e os demais sócios, no caso do sujeito ativo ter sido um dos sócios. Sócios e pessoa jurídica podem, assim, representar conjunta ou separadamente, sem que a renúncia de qualquer um deles prejudique o direito dos demais. A competência inicial, salienta Greco, é do Juizado Especial Criminal, diante da pena máxima cominada, onde se aplicará os institutos como a transação penal e a suspensão condicional do processo.

 

3. A divulgação de segredo no art. 153 do Código Penal

Em um retrospecto aos códigos do passado, em um exercício de resgate histórico de referências originais do crime de divulgação de segredo, no Código Criminal do Império e no Código Penal de 1890, respectivamente, a revelação de segredo de ofício (art. 164) e a publicação pelo destinatário do conteúdo da correspondência, sem consentimento do remetente, e que lhe causasse dano (art. 191), foram tipificações de nosso passado jurídico que possuem significativas aproximações – guardando certa analogia ao crime em questão neste tópico discutido – com o texto do art. 153 do Código Penal vigente no Brasil desde 1940.

O que há, no entanto, para se destacar comparativamente como diferença nos tipos do passado com o tipo do presente, como afirma Bitencourt (2012), é que “os referidos diplomas legais somente criminalizavam a revelação ou divulgação arbitrária do conteúdo de correspondência alheia. O atual Código Penal de 1940 foi que ampliou a tutela penal para abranger a revelação de documento particular.” (BITENCOURT, 2012: 1200).

Para além da preservação da liberdade, do direito de inviolabilidade nas comunicações, o código penal de 1940 veio garantir extensão deste direito, ampliando-o também para a proteção da manutenção de “segredos” e “confidências” em condição “natural” de permanência como tais, cominando penalmente aqueles que vierem a violar tal bem jurídico, ou seja, aqueles que vierem a divulgar informações sigilosas de atos, fatos ou aspectos da vida profissional e particular de outrem sem a devida autorização para tal. Sugere Bitencourt (2012), que a proteção da liberdade não seria completa se não fosse assegurado ao indivíduo o direito de manter em sigilo” aqueles assuntos “cuja divulgação possa produzir dano pessoal ou a terceiros.”

Deste modo, o tipo penal descrito no art.153 disciplina em exclusividade sobre a violação de segredos que afetam circunstâncias da liberdade individual dos sujeitos, no que tange à vida pessoal destes e afetam diretamente os direitos da personalidade, o direito à honra, à privacidade, ao sigilo.

O bem jurídico em questão é a inviolabilidade dos segredos, a preservação do sigilo de atos e/ou fatos secretos ou confidências, o direito de preservar-se de indevida indiscrição dos outros sobre particularidades de sua vida privada. No entanto, salienta Bitencourt (2012), que “a proteção penal, porém, limita-se a documentos particulares ou correspondências confidenciais” reveladas. Mesmo entendimento que o de Greco (2015).

Nesta relação, o sujeito ativo será sempre o destinatário ou detentor (independente da natureza legítima ou ilegítima da detenção) de documento particular ou correspondência confidencial, de conteúdo sigiloso, que divulga tais informações sem autorização do autor ou remetente do conteúdo e sem causa justa. Se por acaso tal detentor for ilegítimo, poderá também tipificá-lo em concurso de crimes no art. 151, contudo, sendo este um crime-meio, recomenda-se somente a punição do crime-fim, segundo Bitencourt (2012). Ainda afirma o presente autor que

Não pratica o crime quem, não sendo destinatário ou detentor, recebe a informação ou vem a ter conhecimento do segredo em razão da divulgação feita pelo agente, ainda que saiba de sua origem ilícita, a menos que tenha concorrido de algum modo para a prática do crime (art. 29 do CP). Igualmente, não o comete quem o propala por ouvir dizer ou ter visto o documento ou correspondência. (BITENCOURT, 2012, p. 1203).

 

            Neste mesmo sentido, Greco (2015) cita Luiz Regis Prado na seguinte passagem: “advirta-se, porém, que, em se tratando de detenção ilegítima, o crime-fim (violação de segredo - art. 153 CP) absorve o crime-meio (apossamento de correspondência - art. 40, § 111, L ei nª 6 .538/ 78), por força do princípio de consunção.” (GRECO, 2015: p.586).

Em outro polo, como parte passiva, encontra-se o autor do conteúdo ou remetente do documentou ou correspondência, que sofre dano mediante a divulgação do conteúdo sigiloso ou confidencial. Há situação em que o destinatário também adere ao polo passivo, e.g., se o detentor é o divulgador da informação sigilosa, e outras também em que a revelação é feita por terceiro que possua dever profissional de confidência, mas que ainda assim divulga a informação que lhe foi compartilhada pelo detentor ou destinatário. O que nos evidencia que a figura do sujeito passivo não se confunde necessariamente com a figura do sujeito prejudicado, pois, ainda que, em regra, normalmente, o seja, ainda assim há casos extraordinários em que o prejudicado é o destinatário, que prefigurará no processo como testemunha, na intenção, por vezes, de salvaguardar sua honra. Para clarificar esta diferença que perfila entre sujeito passivo e o prejudicado, quando a situação concreta os difere em pessoas, a doutrina dispõe nos seguintes termos:

o sujeito passivo é o titular do direito de representar criminalmente contra o sujeito ativo, detém a faculdade de autorizar a revelação do segredo, além de ter o direito da reparação ex delicto; ao prejudicado, por outro lado, resta-lhe o direito de postular a reparação do dano sofrido. (BITENCOURT, 2012, p.1205)

 

Objetivamente a conduta aqui é expressa pelo verbo divulgar. Sendo assim, se trata de divulgar algo, um conteúdo que gere dano real ou potencial, obtido através de meios específicos, “de documento particular ou de correspondência confidencial, isto é, [a conduta tipificada é] tornar público ou do conhecimento de um número indeterminado de pessoas” tal conteúdo confidencial ou sigiloso e de dano potencial ou efetivo ao sujeito passivo e prejudicado pela exposição, conforme Bitencourt (2012). Em acordo, aparece também em Greco (2015) que “não exige a lei penal, como se percebe, o dano efetivo, mas tão somente a possibilidade de dano, ou seja, o dano potencial.” (GRECO, 2015, p. 586). E esta divulgação pode ocorrer por meios diversos, tais quais: imprensa, rádio, televisão, Internet, exposição ao público, obras literárias, dentre outros.

São elementos constitutivos deste tipo penal: (a) documento particular ou correspondência confidencial; (b) divulgação do seu conteúdo pelo destinatário ou detentor; (c) ausência de justa causa e (d) possibilidade de dano a terceiro. Até aqui, estão elementos apresentados tanto em Bitencourt (2012) quanto em Greco (2015), já o elemento subsequente é item destacado apenas por Bitencourt: (e) dolo, como seu elemento subjetivo (único elemento que não é de caráter objetivo).

i) Documento particular: qualquer escrito, instrumento ou papel - que não seja documento de caráter público, ainda que em seu bojo haja segredos, tal qual, v.g.. testamento cerrado. Vide Bitencourt (2012). A chancela de secreto ou confidencial de documento não é o critério de segredo atribuído ao tipo, o segredo tem de ser da esfera da privacidade pessoal e capaz de gerar dano.

Há divergência doutrinária em relação ao uso de transmissão de dados orais com ressalva de sigilo, tanto Bitencourt (2012) quanto Greco (2015) apresentam a argumentação de Rocco e evidenciam que o tipo penal legislado deixa à margem da proteção os segredos e confidências obtidas oralmente. Contudo, Greco (2015) afirma ser esta forma de transmissão de segredo e seu pedido de sigilo de difícil comprovação material, o que, portanto, deixa maior possibilidade de hesitação. Ainda afirma o autor ser a traição de confiança, no caso da divulgação de conteúdo de documento material, mais grave do que a de conteúdo oral, em função da existência de um corpus no primeiro caso, que comprova o conteúdo de que o detentor ou o destinatário violou o sigilo.

ii) Segredo: “é algo que não deve ser revelado, sendo necessária a preservação do sigilo, não podendo sair da esfera da privacidade pessoal” (BITENCOURT, 2012). Para tipificar o segredo tem que ter possibilidade de gerar dano ao remetente ou a terceiro.

iii) Correspondência confidencial: “confidencial significa que deve ter um conteúdo realmente secreto, isto é, que deve chegar ao conhecimento de determinada pessoa ou de limitado número delas, apenas.” (BITENCOURT, 2012).

iv)  Destinatário: deve ser entendido como “aquele para o qual fora endereçado o documento particular ou remetida a correspondência confidencial.” (GRECO, 2015, p. 586).

v) Detentor: “aquele que, mesmo não sendo o destinatário, por algum motivo, seja lícito ou ilícito, detém o documento particular ou a correspondência confidencial consigo.” (GRECO, 2015, p. 586).

No texto penal aparece a expressão “sem justa causa” – elemento jurídico normativo da ilicitude ou antijuridicidade – que tira a objetividade do tipo, tornando-o aberto, o que exige um juízo de valor para complementar a análise da tipicidade. Afirma Bitencourt (2012) que somente a divulgação injusta, contra legis, caracterizará o crime.

Como situações em que a divulgação não se faz antijurídica sendo, por sua vez, atípica,v podemos citar: (a) delatio criminis (art. 5º, § 3º, do CPP); (b) exercício de um direito (exibição de uma correspondência para comprovar judicialmente a inocência de alguém; não há infração na conduta de quem, na defesa de interesse legítimo, junta aos autos de interdição documento médico de natureza confidencial); (c) estrito cumprimento de dever legal (apreensão de documento em poder de alguém— art. 240, § 1º, letra f, do CPP); (d) o dever de testemunhar em juízo (art. 206 do CPP); (e) consentimento do ofendido (trata-se de direito disponível) e, finalmente, (f) ou qualquer excludente de criminalidade ou mesmo dirimentes de culpabilidade. (BITENCOURT, 2012, p. 1212).

Os mesmos critérios supracitados aparecem reforçados em Damásio (DAMÁSIO apud GRECO, 2015) e, configurada alguma das situações acima ou qualquer outra que torne o fato atípico, “constitui constrangimento ilegal o indiciamento do agente em inquérito policial, sendo passível de habeas corpus.” (BITENCOURT, 2012, p.1212).  Sobre a situação existencial de “justa causa”, Greco (2015) diz: “se houver justa causa na divulgação do segredo, ou seja, se o agente atua amparado, por exemplo, por alguma causa de justificação, a exemplo do estado de necessidade, não há falar em crime.” (GRECO, 2015,p.585).

O dolo é o fator subjetivo que se representa pela livre vontade e consciente de divulgação de conteúdo particular, documental, sigiloso e sem justa causa. Sem qualquer elemento subjetivo especial.

O crime se consuma no ato de divulgar, mesmo que o dano seja só potencial. Contudo, se a divulgação é restrita a uma pessoa ou a um número pequeno de pessoas, tal comunicação se faz insuficiente para tipificar, portanto, faz-se necessária uma difusão extensiva. Para configuração de tentativa deste crime, a situação tem que configurar um ato de divulgação que se faz interrompido em seu decurso. A exemplo, fixação de cartazes com a divulgação do segredo em logradouro público, mas que é interceptado antes que cause o dano considerável.

O crime de divulgação de segredo é classificado como crime próprio e que exige sujeito ativo especial: a divulgação precisa ser feita pelo destinatário ou detentor da informação (documento). Portanto, em caso da divulgação por terceiro, este só responde pelo crime se configurado o concurso de agentes. No polo passivo o crime é classificado como comum, “uma vez que qualquer pessoa pode vir a ser prejudicada com a divulgação indevida.” (GRECO, 2015, p. 586).

O crime é formal, pois se consuma com a simples conduta de divulgar; instantâneo, pois se consuma no instante em que o agente divulga o segredo; comissivo, sendo impossível praticá-lo de maneira omissiva – contudo, sobre este assunto, uma ressalva aparece em Greco (2015, p. 588), que declara haver conduta omissiva na situação em que o detentor ou destinatário, na posição de garantidor do sigilo, em ciência do risco de terceiros acessarem o documento, v.g, não cuida para que suas visitas tenham acesso ao documento sigiloso e seu conteúdo, falhando em sua condição de garantidor; e, por fim, doloso, não havendo a modalidade culposa para tal crime.

A lei 9.983 de 2000 dispõe sobre a modalidade de “divulgação de segredo” que afete e gere dano para a Administração Pública. No texto, § 1º, tem-se a atualização para contemporaneidade, à era informatizada, “ao referir-se aos ‘sistemas de informações ou bancos de dados’ da Administração Pública” (BITENCOURT, 2012, p.1217).

O texto faz referência a informações sigilosas ou reservadas, e segundo Bitencourt (2012), tais conceitos devem se entendidos como:

Informações são dados, detalhes, referências sobre alguma coisa ou alguém. Sigiloso é algo que não deve ser revelado, confidencial, limitado a conhecimento restrito, não podendo sair da esfera de privacidade de quem o detém. Reservado, por sua vez, é dado ou informação que exige discrição e reserva das pessoas que dele tomam conhecimento. (BITENCOURT, 2012)

 

Por fim, a tipificação se faz quando a divulgação é de informações objeto de lei, em sentido estrito. O que não torna necessária a potencial produção de dano da divulgação que aparece no art. 153 (CP, 1940).

Para este crime a categoria da pena é alternativa, com detenção de um a seis meses, ou multa. Tal crime não pode se afastar da competência de Juizados Especiais Criminais, e dificilmente, em concreto, terão sanção diferente de multa.

A ação penal é pública condicionada à representação, e o início da ação depende de provocação do indivíduo. Contudo, em caso de prejuízo a ação pública, a ação penal será incondicionada.

 

4. A violação de segredo profissional no art. 154 do Código Penal

Historicamente, o Código Penal francês de 1810 foi o primeiro a criminalizar a conduta de violação de segredo profissional, o que levou a, posteriormente, outros diplomas legais adotarem o mesmo entendimento. No Brasil, por exemplo, tal conduta passou a ser tipificada no Código Penal de 1980 (no art. 192).

O bem jurídico tutelado é a liberdade individual sob o aspecto da inviolabilidade de segredo profissional, cuja divulgação é passível de causar dano a outrem. Segredos esses, por sua vez, relacionados aos de atividades da vida privada, já que a proteção do sigilo ou segredo da função pública são tratados pelos arts. 325 e 326 do Código Penal.

            Ademais, a tipificação dessa conduta é justificada pela confiança que os cidadãos depositam em determinada categoria profissional, como médicos e advogados, e, dessa forma, a lei protege, além da liberdade individual, a privacidade e segurança dos indivíduos. Para que a conduta seja atípica, é necessário que haja justa causa prevista direta ou indiretamente por norma jurídica

            Consoante Cezar Bitencourt, trata-se de crime próprio, já que exige sujeito ativo especial – sendo esse o profissional que tiver ciência de segredo em razão do cargo que ocupa – para poder responder por esse crime, a não ser que incorra nas possibilidades de concurso de pessoas (art. 19 e §§). O sujeito passivo, por sua vez, é o titular do segredo, podendo ser pessoa física ou jurídica, sendo esse diferente do sujeito ofendido, que pode apenas buscar reparação do dano em esfera cível.

Ainda, é crime formal, já que, para estar consumado, basta a mera ação de revelar segredo, não necessitando verificar se houve dano. Consoante a doutrina, ademais, revelar é transmitir a qualquer pessoa, bastando uma, tal segredo. O nexo causal para tipificar o crime consiste entre o exercício da atividade (sujeito ativo próprio) e o conhecimento do segredo.

Apesar de difícil configuração, a doutrina admite a possibilidade de haver tentativa desse crime, principalmente se for plurissubsistente e feito por meio escrito, onde teoricamente seria possível constatar fracionamento dos atos iter criminis e verificar a modalidade de tentativa, mas não consumação do crime por não haver conhecimento de terceiros.

É crime instantâneo, consumando-se no instante em que o segredo é divulgado pelo agente. É doloso, por não haver modalidade culposa do crime. Quanto às modalidades comissivas e omissivas, enquanto o Cezar Bitencourt alega que só pode ocorrer de forma comissiva, Rogerio Greco admite que possa ocorrer de forma omissiva “desde que, nesta última hipótese, o agente seja considerado garantidor da guarda do segredo que lhe é revelado em razão de função, ministério, ofício ou profissão”. (GRECO, 2015, p. 598)

            A pena do crime é alternativa, pois é dada por meio de detenção ou multa. A ação penal é pública condicionada à representação, ou seja, depende da provocação do indivíduo, nos termos do parágrafo único do art. 154.

 

5. A invasão de dispositivo informático nos arts. 154-A e 154-B do Cód. Penal

Com os avanços da modernidade, foi necessário que a lei se adaptasse e passasse a prever crimes que passaram a ocorrer com o mau uso dos novos aparatos tecnológicos e da internet que foram surgindo e que, eventualmente, podem gerar situações que caracterizem violação de bem jurídicos relevantes. Conforme Lucrecio Rebollo Delgado, os delitos praticados através de meios informáticos e da internet possuem três características que os tornam peculiares aos demais: (a) celeridade e distância no tempo e no espaço – as ações são feitas em tempo real e não há impedimentos geográficos –, (b) facilidade de encobrimento e (c) dificuldade probatória.

A Lei nº 12.737, de 30 de novembro de 2011l2, conhecida popularmente como Lei Carolina Dieckmann, foi a primeira que passou a prever no Brasil a tipificação de crimes ocorridos em ambiente virtual. A motivação da criação dessa lei foi a situação em que a atriz passou em sua vida pessoal, quando teve fotos íntimas e conversas copiadas de seu computador pessoal e divulgadas na Internet sem seu consentimento.

            Na esteira dessas mudanças legislativas propulsionadas pelas relações e situações dadas pelo ambiente virtual, foi criado o artigo 154-A, que prevê o crime de invasão de dispositivo informático. Como os demais artigos dessa seção do código penal, os bens jurídicos protegidos pelo art. 154-A são o da liberdade individual e o direito à intimidade.

Tal artigo exige, para que haja tipificação da conduta como delito de invasão de dispositivo informático, a presença de determinados elementos. Tais elementos são explicados por Roberto Greco: (a) o ato de invadir; (b) dispositivo informático alheio: qualquer dispositivo capaz de receber, tratar e armazenar dados que não pertença ao do agente que está invadindo; (c) conectado ou não à rede de computadores: entende-se aqui que a internet como amplo sistema de comunicação conecta inúmeras redes de computadores; (d) mediante violação indevida de mecanismo de segurança: viola qualquer tipo de meio que evite amplo acesso, por exemplo, quando há login e senha; (e) com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do dispositivo: com autorização, a conduta é atípica; (f) ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita: por exemplo, por meio de malwares.

            Segundo a doutrina de Greco, o crime é comum (pode haver qualquer sujeito no polo ativo, que invade, ou passivo, proprietário do dispositivo informático), doloso, comissivo, formal (já que a conduta que contenha os elementos previstos no caput já caracteriza o crime, independentemente do resultado), de dano (o bem jurídico deve ter sido violado), instantâneo e plurissubsistente (devem ocorrer os diversos atos previstos no caput).  Por ser plurissubsistente, Greco afirma, ademais, que é possível fracionar o iter criminis e caracterizar tentativa para esse crime.

            O §1º prevê uma modalidade equiparada, onde as condutas descritas devem ser feitas com a finalidade de permitir a conduta definida no caput. A lei, portanto, quis punir aquele que auxiliasse um terceiro a praticar o crime do caput do art. 154-A de forma independente.

            O §3º, por sua vez, traz a modalidade qualificada do crime, que se caracteriza se o agente obtém conteúdo de comunicações eletrônicas privadas ou se são obtidos segredos comerciais ou industriais ou informações sigilosas, tratando-se a última parte de norma penal em branco, já que depende de definição legal sobre o que é tal tipo de informação.

            Os §§ 2º, 4º e 5º, por fim, tratam de causas de aumento de pena. Respectivamente, no caso de, nas condutas previstas no caput e §1º, haver prejuízo econômico para a vítima; quando, na hipótese do §3º, há comercialização de dados; e se, nos casos previstos pelo caput, §1º ou §3º, forem praticadas contra autoridades dos poderes públicos previstas.

Nos termos do art. 154-B, a ação penal será pública condicionada à representação, a menos que seja cometido contra administração pública direta ou indireta de qualquer dos Poderes dos entes federativos ou contra empresas concessionárias de serviços públicos, quando será ação penal pública incondicionada.

 

Referências bibliográficas

 

BITENCOURT, Cezar. Tratado de Direito Penal 2: parte especial - dos crimes contra a pessoa. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

 

_________________. Tratado de Direito Penal 2: parte especial - dos crimes contra a pessoa. São Paulo: Saraiva, 2012.

 

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, volume II: introdução à teoria geral da parte especial: crimes contra a pessoa. Niterói: Impetus, 2015.

 


{C}[1] Ao detalhar este aspecto, Bitencourt (2012) se refere também a outros exemplos, além de contas e faturas, como fax, notas, avisos, memorandos, duplicatas, dossiês, instruções, perícias, balancetes e levantamentos.

Sobre os autores
Carlos Eduardo Oliva de Carvalho Rêgo

Advogado (OAB 254.318/RJ). Doutor e mestre em Ciência Política (UFF), especialista em ensino de Sociologia (CPII) e em Direito Público Constitucional, Administrativo e Tributário (FF/PR), bacharel em Direito (UERJ), bacharel e licenciado em Ciências Sociais (UFRJ), é professor de Sociologia da carreira EBTT do Ministério da Educação, pesquisador e líder do LAEDH - Laboratório de Educação em Direitos Humanos do Colégio Pedro II.

Vinicius Cavalcanti Ferreira

Professor e Mestre em Geografia, atualmente graduando em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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