A lei natural e o poder soberano.

Os fundamentos do contratualismo em Thomas Hobbes

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06/10/2021 às 10:29

Resumo:

Resumo sobre Hobbes


  • Hobbes é frequentemente interpretado de forma distorcida como um teórico que justifica o despotismo e o absolutismo, mas uma leitura cuidadosa revela que sua obra busca fundamentar o poder soberano na necessidade de superar o estado de natureza, caracterizado por conflitos e insegurança.

  • Em sua teoria, Hobbes propõe que o contrato social é uma necessidade lógica para sair do estado de natureza, onde a vida é "solitária, pobre, sórdida, brutal e curta", e entrar em um estado civil que garanta segurança e paz através de um poder soberano.

  • A fundamentação do poder soberano em Hobbes está baseada na lei natural da autoconservação, onde o medo da morte violenta e o desejo de uma vida confortável levam os homens a renunciar a liberdade em troca de proteção sob um estado absoluto, que é capaz de impor leis civis e garantir a paz.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Revisitar autores clássicos da teoria política sempre é uma tarefa bem vinda, mas exige cuidado teórico redobrado para não repetir interpretações distorcidas. Hobbes é um dos autores malditos da modernidade, assim como anteriormente foi Maquiavel, posto que posteriormente fora assumido pelos niilistas, especialmente Nietzsche. As distorções de seu pensamento são amplamente divulgadas – como sua pretensa fundamentação de Estados Absolutistas e despóticos,[1] inclusive acusações de ateísmo[2] e de ser precursor do juspositivismo.[3] Por essa razão, ler Hobbes no século XXI exige cuidado diante de tantas interpretações equivocadas de seu pensamento.

Realizadas as devidas ressalvas, o objetivo do presente ensaio é analisar a fundamentação do poder soberano em Hobbes, no que diz respeito à sua posição a respeito da natureza humana e da lei natural. A hipótese de pesquisa afirma que a fundamentação do contrato social possui seus alicerces na antropologia hobbesiana e na lei natural, a própria autoconservação e busca pela paz. A renúncia da liberdade é uma constante no pensamento de Hobbes, que dessa forma, promove a criação do Estado – o Leviatã.

Dentre as obras analisadas, o referencial teórico circunscreve-se à obra Leviatã e Os elementos de lei natural e política, os quais fornecem as condições para se pensar a fundamentação do poder soberano. A pesquisa é qualitativa, com revisão bibliográfica e técnica de análise de conteúdo, das obras citadas, e de comentadores. Mas por que voltar a Hobbes? O que justifica voltar a um teórico político tão controverso? Hobbes proporciona refletir a respeito dos sentidos de existência do poder soberano, o contrato social erguido sobre o medo da morte. Revisitar um clássico é reler os tempos atuais a partir do olhar do autor – a atualidade de Hobbes é evidente diante da violência brasileira.

1. ESTADO DE NATUREZA E O CONFLITO HUMANO

O conturbado período da vida e obra de Thomas Hobbes não foi marcado apenas pela Guerra Civil Inglesa, os séculos XVI e XVII foram marcados por uma nova maneira de pensar e refletir acerca do mundo natural e da sociedade civil. O mecanicismo cartesiano, as descobertas astronômicas de Galileu e a concepção política de Maquiavel influenciaram o pensamento de Hobbes.

Todos os conceitos em Hobbes, sua concepção política, a forma de compreender a figura do soberano, entre outros pontos importantes de sua teoria, depende da compreensão do estado de natureza. Primeiramente, deve-se ter em mente que a natureza do homem em Hobbes se afasta da tradição grega clássica e cristã medieval. Esta crítica de Hobbes é direcionada especialmente para Aristóteles e seus seguidores, visto que para o filósofo grego existe um fundamento ontológico da política e o homem é percebido através de suas características como sendo um zoon politikon e zoon logikon. No pensamento clássico, o homem se realiza na polis e no convívio com os demais, contudo, para Hobbes essa visão é errada e demasiada superficial[4]. Primeira, se percebe que,

Hobbes considera la naturaleza humana en dos vertientes, una compuesta por las facultades y poderes naturales que pertenecen a la parte animal y la otra constituida por los poderes y facultades naturales que pertenecen a la parte racional.[5]

O homem, segundo Hobbes, faz parte da classe dos corpos vivos. Todo ser vivo realiza um esforço (conatus) para perseverar em seu próprio movimento vital, de modo que os seres calculam racionalmente os seus movimentos de maneira a terem maiores chances de preservação do seu movimento vital. Ou seja, o homem utiliza os meios mais adequados para a manutenção de seu movimento vital, de acordo com seu próprio julgamento interno. Esta vontade de se movimento, forma o conatus de um corpo e sua manifestação física é a percebida através da vontade que os corpos têm em continuarem se movimentando, sobrevivendo.

Duas são as premissas que o autor elenca para iniciar a construção de sua teoria: (1) a natural cupidez que faz com que cada homem exija para si, o uso próprio das coisas comuns, e; (2) a razão natural que faz o homem tentar evitar a morte violenta como mal supremo da natureza. Diante da primeira premissa a natureza humana possui uma tendência à individualização, ao afastamento, ao uso indiscriminado dos instintos para a satisfação dos desejos. Ou seja, a essência humana está repleta de paixões e desejos que apontam apenas para os seus próprios interesses, é uma natureza egoísta e, sobretudo, competitiva. Assim é a condição natural do homem, a guerra de todos contra todos, o caos, a anarquia, a barbárie entre todos os seres humanos que o estado de natureza impõe.

Segundo a premissa dois, os homens apenas se aproximam em razão de uma cobiça recíproca, ou de um medo recíproco, um desejo pelo fim do conflito, o desejo pelo apaziguamento e pelo regramento estatal. A utilização da faculdade racional pelos homens é a impulsionadora da busca pela saída de sua condição natural, a busca da paz e da segurança. Será, portanto, trabalhando com a razão, realizando cálculos, que o homem irá encontrar o caminho para a vida em sociedade, em outras palavras para a construção de um Estado civil que impeça a destruição mútua. “Toda associação, portanto, ou é para o ganho ou para a glória – isto é: não tanto para o amor de nossos próximos, quanto pelo amor de nós mesmos”[6].

Como dito, no estado de natureza existe uma guerra de todos contra todos, que é motivada justamente pela falta de domínio de um homem sobre o outro. O homem natural é livre e igual aos demais, não existe propriedade privada, tudo é comum a todos, o que acarreta, por óbvio, que todos possuem direito a tudo. É justamente a igualdade entre os homens e a não existência de limites à sua liberdade que torna um homem inimigo de seu semelhante. Ou seja, igualdade e liberdade, dois conceitos a priori positivos para a vida humana são circunstância que explicam o porquê de as paixões e os desejos humanos levarem às disputas. Da igualdade provém a desconfiança e desta o conflito, que inicia no exato momento em que eles desejam o mesmo objeto, a qual ambos têm direito e, por isso, se colocam em uma relação de mera força, sem nenhum árbitro externo para propor uma solução pacífica, nas palavras de Hobbes, “o mais forte há de tê-la, e necessariamente se decide pela espada quem é mais forte”[7]. Nesse estado de natureza sem leis civis, todos podem usufruir e, até mesmo, exacerbar o seu direito natural que é a liberdade irrestrita.

Deste estado de guerra de todos contra todos surge uma consequência lógica, que nada pode ser injusto, isto é, as noções de certo e de errado, de justiça e injustiça, não tem lugar no estado de natureza. Onde não há poder comum não há lei e onde não há lei não há injustiça. No estado de bellum omnia omnes, a força e a fraude são as duas virtudes cardeais. A justiça e a injustiça não fazem parte das faculdades do corpo ou do espírito, visto que, se assim fosse, estas poderiam existir em um homem que estivesse sozinho no mundo, do mesmo modo que os seus sentidos e paixões. Contudo, estas são qualidades que pertencem aos homens apenas em sociedade, não na solidão. Outra consequência da mesma condição é que não há propriedade, nem domínio, nem distinção entre o que é de um e o que é de outro, só pertence a cada homem aquilo que ele é capaz de conseguir, e apenas enquanto for capaz de conservar. Logo, é nesta miserável condição que o homem realmente se encontra, por obra da simples natureza, embora com uma possibilidade de escapar a ela, que em parte reside nas paixões e em parte na sua razão[8]. Vale ressaltar que a guerra de todos contra todos, na verdade “não é uma guerra declarada, mas uma permanente disposição para ela, o que causa ainda mais insegurança, iminente, contínua e permanente”[9].

Através da experiência e da observação Hobbes, ao perceber o homem do seu tempo como um indivíduo cada vez mais egoísta, pressupôs que não é da natureza humana ou da essência do homem a vontade de promover o interesse social e o bem comum. Preocupado com as causas desse agir individualista na sociedade burguesa da época, Hobbes aponta que

Na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória. A primeira leva os homens a atacar os outros visando lucro. A segunda, a segurança. A terceira, a reputação. Os primeiros praticam a violência para se tornar senhores das pessoas, mulheres, filhos e rebanhos dos dominados. Os segundos, para defende-los. Os terceiros por ninharias, como uma palavra, um sorriso, uma diferença de opinião e qualquer outro sinal de desprezo, quer seja diretamente endereçado a suas pessoas, quer indiretamente a seus parentes, amigos, nação, profissão ou seu nome.[10]

Urge compreender que a agregação em torno do Leviatã é um acidente do homem, não a sua essência, a figura do homem enquanto parte de uma coletividade é algo artificial, fabricado. As paixões que fazem os homens tender para a paz, para a construção do Estado, são o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável e a esperança de as conseguir por meio do trabalho. E a razão sugere adequadas normas de paz, em torno das quais os homens podem chegar a um acordo. Essas normas são aquelas a que em outras situações se chamam leis da natureza[11]. Assim é necessário concluir que a origem de todas as grandes e duradouras sociedades não provém da boa vontade recíproca que os homens tivessem uns para com os outros, mas do medo recíproco que uns tinham dos outros[12].

2. A LEI NATURAL E O FUNDAMENTO DO PODER SOBERANO

Ao levar em consideração a natureza desejante do homem, Hobbes constata que sua condição natural é tal que a guerra permanece como o horizonte sempre possível. “O egoísmo é constitutivo do ser humano já no estado natural. Cada ser humano se liga ao seu interesse.”[13] O constante estado de insegurança provoca a necessidade de que seja erigido um poder comum, soberano, que tenha a capacidade de conferir segurança aos homens; contudo, o preço a ser pago é a renúncia da própria liberdade.

A questão central para Hobbes é que no estado de natureza todos os homens são iguais em potencial, e uma vez que todos possuem a mesma capacidade para conservar a sua vida há uma permanente e iminente ameaça de conflito e enfrentamento mútuo. A competição, a desconfiança e a glória são para Hobbes as causas da discórdia entre os homens, mas essa descrição das paixões humanas não significa, como no jargão acadêmico, que o homem é mal por natureza, pois ao descrever a condição natural do homem, sem lei e sem direito, não há justiça ou injustiça, nem mesmo bondade ou maldade – em vista que não há qualquer critério que defina bem ou mal.[14]

A partir disso Hobbes pode desenvolver hipoteticamente[15] o estado de natureza como procedimento metodológico necessário à passagem para o estado civil. Assim, é Hobbes quem desenvolve o programa de fundamentação do contratualismo moderno da filosofia política. O contrato social não é para Hobbes uma hipótese, mas uma necessidade lógica – uma dedução.[16] A esse respeito, o “autointeresse implica abandonar a situação de disputa sem limites pelos bens – isto é, de liberdade plena – e, portanto, uma situação de incompatibilidade de interesses, para a confecção de uma situação de compatibilização e de composição de interesses.”[17] Essa nova situação de compatibilização de interesses decorre da condição dos indivíduos de portarem um direito fundamental: a preservação da vida.

O medo da morte violenta é o combustível que move a passagem do homem em estado de natureza para o estado civil. “Sucede que, devido ao medo que sentimos uns dos outros, entendemos que convém nos livrarmos dessa condição, e conseguirmos alguns associados – para que, se tivermos de travar guerra, ela não seja contra todos, nem nos falte algum auxílio.”[18] No estado de natureza é impossível esperar paz duradoura, em razão disso, é um ditame da razão sair do estado de natureza a fim de alcançar a pacificação dos conflitos, e nesse sentido, a busca pela paz é a lei fundamental da natureza.

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Portanto, a verdadeira razão é uma lei certa, que (já que faz parte da natureza humana, tanto quanto qualquer outra faculdade ou afecção da mente) também é denominada natural. Por conseguinte, assim defino a lei da natureza: é o ditame da reta razão no tocante àquelas coisas que, na medida de nossas capacidades, devemos fazer, ou omitir, a fim de assegurar a conservação da vida e das partes de nosso corpo.[19]

A justificação do poder soberano fundamenta-se na lei natural: a autoconservação. Dado que o homem constitui-se de razão e de paixão, as normas de paz são fundamentais para que conserve sua vida – a autodefesa é elemento primordial da fundamentação do poder soberano. Mas o problema fundamental da lei natural é sua ineficácia fora do Estado, pois o respeito à lei dá-se mediante o temor da coação. Em razão disso, apenas a lei natural não basta para conservar a paz, é necessário que seja erguido um Estado Absoluto.

A fundamentação do poder político, isto é, do Estado, constitui-se como ato artificial da razão, fruto do raciocínio geométrico; além de ser, ao mesmo tempo, um ato de transferência de direito, em que os indivíduos aceitam o pacto para sua autopreservação.[20] Para Hobbes, a conquista da paz depende da razão. “Mas a razão não deve ser entendida como um fator originário; antes, cabe reconhecê-la como capacidade de calcular meios adequados para se atingir aquilo que as paixões indicam como fim desejável.”[21]

A saída do estado de natureza para o estado civil é uma necessidade em vista da constante insegurança gerada pelo conflito comum entre os homens; não é possível viver em um estado de natureza permanente, temendo a morte violenta e miserável.[22] A instituição do poder político no Estado permite que, por meio da lei positiva que prevê penalidades, seja assegurada a paz entre os homens. “Pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém.”[23]

Mas ao criar o Estado, o contrato baseia-se da lei natural. Ao final do capítulo sobre a “condição natural do gênero humano”, Hobbes afirma que a “razão sugere adequadas normas de paz.”[24] A esse respeito, é necessário reavivar a dualidade fundamental da natureza humana: a paixão e a razão; como forma de compreender a argumentação hobbesiana. Da paixão surge a necessidade por poder e domínio sobre os outros; a razão, por outro lado, “é a capacidade de discernimento para fazer o que se deve para atingir a paz.”[25]

A única forma de a razão sobrepor-se às paixões é através da fundamentação do poder soberano. Assim, o cálculo racional ou o ato de raciocinar leva à primeira formulação da lei natural, anteriormente citada: “procurar a paz e segui-la.”[26] É através do ato de raciocinar que “descobre-se” a lei natural que fundamenta o contrato e, consequentemente, o poder soberano. A busca e o zelo pela paz é um ditame da razão, cabendo à lei civil – positiva – torna-la eficaz.[27]

A finalidade do Estado é garantir a segurança para os súditos, isto é, para os cidadãos. O Estado deve buscar o “cuidado com a própria conservação e com uma vida mais satisfeita.”[28] A busca pela segurança decorre da própria natureza conflitiva dos homens, como seres desejantes. Para evitar o conflito e estabelecer a paz é necessário, portanto, que exista um Estado – poder político – forte e atuante, que faça cumprir as leis positivas; mas que fundamenta-se em uma lei natural, um ditame da reta razão: a busca pela paz, que se traduz na autoconservação. “Como a razão declara que a paz é uma boa coisa, segue-se, pela mesma razão, que todos os meios necessários para a paz igualmente o são.”[29]

Diferentemente de Rousseau, para o qual o contrato salvaguarda a liberdade e torna cada um mais livre, para Hobbes, o contrato tem a finalidade de segurança a cada um de seus membros; deixa-se de governar para ser governado, ao mesmo tempo em que deixa-se de viver em guerra para viver em paz. A liberdade civil, portanto, é um constante estado de submissão. O Estado tem tal função, como a instituição que ordena o caos, e pacifica a luta de todos contra todos.[30] O poder político existe, fundamentado na lei natural de autoconservação: a busca pela paz.

O contrato social, portanto, é um ato de fundação do poder, e não de limitação do poder soberano. “O Leviatã é exatamente uma criação do individualismo normativo do período moderno. É a criação artificial da soberania à construção possível da paz.”[31] A lei natural constitui elemento fundante para o poder soberano, isto é, o poder político, diante da própria natureza conflitiva do homem.

O Leviatã (Estado) é derivado dos direitos e faculdades de seus súditos que lhe entrega o poder soberano. Desta instituição derivam todos os direitos e faculdades daquele a quem o poder soberano é conferido mediante o consentimento do povo reunido. Isso quer dizer que cada home é o autor do que o soberano fizer ou julgar por bem fazer, pois estão e são obrigados, cada homem perante cada homem, a reconhecer e a ser considerados autores de tudo aquilo que seu soberano fizer e considerar bom fazer. Depois de firmado o contrato e instituído o soberano, não é mais possível argumentar que o soberano possa cometer qualquer injustiça contra seus súditos, visto que os detentores do poder soberano não podem cometer injustiça em sentido próprio. Além disso, como afirmado, todo homem é autor de todos os atos e decisões do soberano instituído, e, portanto, a argumentação de injustiça se dirigiria primeiro a si próprio.

Logo, sob o objetivo da paz, a instituição artificial soberana tem o direito a utilizar todos os meios que julgar necessários para dirimir os motivos das contendas entre os homens e fortalecer a harmonia, visto que o fim último dessa instituição é a paz e a defesa de todos. E visto que quem tem direito a um fim tem direito aos meios, constitui direito de qualquer homem que detenha a soberania o de ser juiz tanto dos meios para a paz e a defesa quanto de tudo o que possa perturbar ou dificultar estas últimas[32].

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como discutido neste trabalho, o homem é um ser de paixões, mas também de razão. Se são aquelas que levam o homem a preferir a paz, através do medo da morte, do desejo das coisas que são necessárias para uma vida confortável e da esperança de consegui-las por meio do trabalho, é esta, a razão que sugere adequadas normas de paz, em torno das quais os homens podem chegar a acordo. Estas normas para a paz são as leis naturais[33]. Além disso, a mesma lei que é natural e moral também é merecidamente chamada divina: tanto porque a razão, que é a lei de natureza, foi outorgada por Deus a cada homem como regra de suas ações[34].

Segundo Hobbes, uma Lei de Natureza (Lex Naturalis) é um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão, através do qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir a sua vida ou privá-lo dos meios necessários para a preservar. Assim se torna preciso distinguir Jus e Lex, o direito e a lei, pois o Direito consiste na liberdade de fazer ou de omitir, ao passo que a Lei determina ou obriga a uma dessas duas coisas[35].

Desse modo, não é absurdo, nem repreensível, nem contraria a verdadeira razão, o fato de um homem usar de todo o seu esforço para preservar e defender seu corpo e membros da morte e dos sofrimentos. Afinal, aquilo que não contraria a reta razão é o que todos os homens reconhecem ser praticado com justiça e direito; pois, pela palavra direito, nada mais se significa do que aquela liberdade que todo homem possui para utilizar suas faculdades naturais em conformidade com a reta razão. Por conseguinte, a primeira fundação do direito natural consiste em que todo homem, na medida de suas forças, se empenhe em proteger sua vida e membros[36]. Logo, é um preceito ou regra geral da razão:

que todo homem deve se esforçar pela paz, na medida em que tenha esperança de a conseguir, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra. A primeira parte desta regra encerra a primeira e fundamental lei de natureza, isto é, procurar a paz, e segui-la. A segunda encerra a súmula do direito de natureza, isto é, por todos os meios que pudermos, defendermo-nos a nós mesmos[37].

As leis de natureza são imutáveis e eternas e, na medida em que obrigam apenas a um desejo e a um esforço, isto é, um esforço não fingido e constante, são fáceis de obedecer. Afinal, uma vez que exigem apenas esforço, aquele que se esforça para as cumprir está a lhes obedecer. E aquele que obedece à lei é justo. E a ciência dessas leis é a verdadeira e única filosofia moral. Porque a filosofia moral nada mais é do que a ciência do que é bom e do que é mau no convívio e na sociedade humana[38].

É, portanto, a lei da natureza que reside a fonte e a origem da justiça. Porque sem um pacto anterior não há transferência de direito, e todo homem teria direito a todas as coisas, o que tornaria, por óbvio no fato de nenhuma ação poder ser considerada injusta. Contudo, depois de celebrado um pacto, rompê-lo se torna injusto. E a definição de injustiça não é outra senão o não-cumprimento de um pacto, ademais, tudo o que não é injusto é justo[39].

Porém, se a lei natural é formulada pela reta razão do indivíduo e, por outro, a lei positiva é a manifestação expressa da vontade do soberano, Hobbes afirma que a lei natural e a lei civil contêm-se uma à outra e têm igual alcance. Pois, as leis de natureza, que consistem na equidade, na justiça, na gratidão e outras virtudes morais destas dependentes, na condição de simples natureza não são propriamente leis, mas qualidades que predispõem os homens para a paz e a obediência. Só depois de instituída a república elas efetivamente se tornam leis, nunca antes, pois passam então a ser ordens da república, portanto também leis civis, na medida em que é o poder do soberano que obriga os homens a elas obedecerem[40].

E segue o autor apontando que a lei de natureza faz parte da lei civil, em todas as repúblicas do mundo. E, também, reciprocamente, a lei civil faz parte dos ditames da natureza. Porque a justiça, ou seja, o cumprimento dos pactos e dar a cada um o que é seu, é um ditame da lei da natureza. A lei civil e a lei natural não são diferentes espécies, mas diferentes partes da lei, uma das quais é escrita e chama-se civil, e a outra não é escrita e chama-se natural[41]. A caráter explicativo Hobbes ensinará que quando uma lei é obrigatória para todos, sem exceção, e não estiver escrita ou de algum outro modo publicada, trata-se de uma lei de natureza. Afinal, tudo o que os homens conhecem como lei, não pelas palavras de outros homens, mas cada um através da sua própria razão, deve ser válido para a razão de todos os homens, o que não pode acontecer com nenhuma outra lei, a não ser a lei de natureza. “Portanto, as leis de natureza não precisam ser públicas nem proclamadas, pois estão contidas nesta única sentença, aprovada por toda gente: Não faças aos outros o que não consideras razoável que seja feito por outrem a ti mesmo”[42].

Contudo, como a maioria dos homens, ainda que eventualmente reconheçam tais leis através da razão, devido a seu perverso desejo de vantagens imediatas se tornam totalmente inaptos para as cumprir. E, caso alguns homens mais humildes que os demais viessem a exercer aquela equidade e disposição de se mostrarem úteis que a razão ordena, certamente não estarão sendo racionais adotando esta atitude caso os outros não se portem da mesma forma. Aliás, estes humildes não conseguirão paz para si mesmos, mas uma certíssima e pronta destruição, e, portanto, quem cumprir a lei natural se tornará presa fácil de quem a viola. Por conseguinte, não se deve imaginar que a natureza (ou seja, a razão) obrigue os homens no estado de natureza a observar todas aquelas leis, se os outros não as respeitarem. Hobbes conclui, então, que a lei de natureza sempre e em toda a parte obriga em foro interno, na consciência, mas nem sempre em foro externo, e neste apenas quando puder ser cumprida com segurança[43].

Uma possível solução para a harmonia entre a lei da razão e a lei do soberano, estaria em imaginar que há um processo de incorporação de uma e outra em curso, o que aparentemente dissolveria uma fonte importante de conflitos do entendimento moral e do agir societário, um processo que não atinge a sua plenitude, mas que permite a elas serem, em alguma medida, reconciliadas[44]. Concluindo, para Hobbes, o sentido negativo de busca de glória, competições, é o que faz garantir a busca da paz. A guerra ganha, desse modo, um sentido positivo na perspectiva de impulsionar à busca da paz. E isso só é possível por um artifício artificial. Dessa forma, viver em sociedade não é algo inato, mas uma virtude a ser adquirida[45].

REFERÊNCIAS

BERNARDES, J. Hobbes e a liberdade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

BOBBIO, N. Thomas Hobbes. Rio de Janeiro: Campus, 1991.

CISNEROS ARAUJO, M. E. La naturaleza humana en Hobbes: antropología, epistemología e individuo. Andamios, México, v. 8, n. 16, p. 211-240, ago. 2011.

HOBBES, T. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. São Paulo: Abril Cultura, 1973.

______. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

______. Do cidadão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

______. Do cidadão. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

MATOS, I. D. de. Uma descrição do humano no Leviathan de Thomas Hobbes. São Paulo: Annablume, 2007.

NODARI, P. C. Ética, direito e política: a paz em Hobbes, Locke, Rousseau e Kant. São Paulo: Paulus, 2014.

POLIN, R. Politique et philosophie chez Thomas Hobbes. Paris: Vrin, 1977.

RIBEIRO, R. J. Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra o seu tempo. 2. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG. 2014.

VILLANOVA, Marcelo Gross. Lei natural e lei civil na filosofia política de Thomas Hobbes. 2004. 135 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2004.

WEBER, T. Hobbes: um positivista ou um jusnaturalista? Quaestio Iuris, Rio de Janeiro. v. 10, n.3, 2017, pp. 1568-1581.

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Sobre o autor
César Augusto Cichelero

Professor e Coordenador do curso de Direito da Faculdade de Integração do Ensino Superior do Cone Sul (FISUL). Doutorando em Ciências Criminais na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com bolsa CAPES. Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) (2018), com bolsa CAPES e integrando o grupo de pesquisa Metamorfose Jurídica. Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) (2016), com bolsa PIBIC/CNPq e integrando o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas Sociais (NEPPPS). Advogado e colunista.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Originalmente publicado em: https://www.ucs.br/site/midia/arquivos/ebook-lei-natural.pdf

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