O agronegócio e a agricultura familiar

um estudo interdisciplinar sobre a sustentabilidade e a educação ambiental

06/10/2021 às 10:32
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Publicado originalmente em: https://www.ucs.br/site/midia/arquivos/ebook-ciclo-economico-vol2.pdf;

INTRODUÇÃO

O presente ensaio pretende refletir criticamente a relação entre economia sustentável e direito, no que diz respeito os contornos do sistema agrícola brasileiro e os princípios do Direito Ambiental. Assim, a hipótese sustentada diz respeito à efetivação dos princípios jurídicos da sustentabilidade e da educação ambiental por meio da promoção da agricultura sustentável, com especial atenção para os arranjos produtivos locais (agricultura familiar).

Para atender a esse objetivo a metodologia utilizada será a revisão bibliográfica com análise de conteúdo como técnica de pesquisa. A revisão bibliográfica de diferentes autores tem o intuito de produzir sólida base teórica que sustente as afirmações de necessidade de desenvolvimento sustentável e da educação ambiental na perspectiva da agricultura dos arranjos produtivos locais (agricultura familiar).

O primeiro ponto do trabalho abordará algumas características da agricultura brasileira, por meio de dados empíricos, e visa esclarecimentos gerais acerca das práticas agrícolas no Brasil. Em um segundo momento será realizada a abordagem teórica sobre o desenvolvimento sustentável e educação ambiental com o intuito de demonstrar a necessidade dos usos sustentáveis dos produtos da produção agrícola familiar. Para que no terceiro momento do artigo seja abordada a questão dos arranjos produtivos locais e suas peculiaridades.

1. O SISTEMA AGRÍCOLA BRASILEIRO

Nesse tópico, pretende-se abordar a produção agrícola brasileira, enfatizando como pontos essenciais o uso de transgênicos e agrotóxicos em larga escala. Cabe ressaltar que, no atual panorama, a agricultura não pode ser dissociada dos demais setores econômicos nacionais e exerce papel fundamental na inserção do país mercado externo (MENDES; PADILHA JUNIOR, 2007, p. 45), pois o Brasil “é o primeiro produtor e exportador de café, açúcar, etanol de cana-de-açúcar e suco de laranja. Além disso, lidera o ranking das vendas externas do complexo soja (farelo, óleo e grão).” (MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, 2015).

Nesse sentido, o melhor termo que designa o sistema brasileiro é “agronegócio”, pois a industrialização incorporada à agricultura e o constante emprego de tecnologia nos afasta da concepção tradicional dos processos agrícolas, restritos à propriedade rural. (MENDES; PADILHA JUNIOR, 2007). Consonante a essa ideia, no sítio digital do Ministério da Agricultura do Governo Federal, é possível verificar que o escopo do setor agrícola nacional é o crescimento de modo “competitivo e sustentável, para atender a demanda interna e conquistar e manter espaço de mercado externo, fornecendo produtos e processos de qualidade, com sustentabilidade e a preços competitivos.” (MINITÉRIO DA AGRICULTURA, 2015).

No entanto, ao confrontar essas metas – competitividade e sustentabilidade – a conciliação entre ambas parece questionável. Um exemplo dessa incompatibilidade é demonstrado pelo geógrafo Ricardo Gilson da Costa Silva, em pesquisa que procura compreender a dinâmica geográfica dos conflitos entre os projetos locais e os processos nacionais e globais na Amazônia. O autor pontua que “em duas décadas (1990 a 2010), a área plantada com soja na Amazônia aumentou de 1.573.404 hectares para 6.995.455 hectares, um crescimento de 345%” (SILVA, 2015, parágrafo 49) e entende que esse dado demonstra o avanço do agronegócio na Amazônia brasileira, o que produz fragmentações nas coerências territoriais endógenas, impondo lógicas globais das grandes empresas aos lugares.

É possível afirmar que expressivo crescimento da produção de soja nessa área corresponde a uma tendência brasileira pós-crise dos anos 80 e 90, quando o agronegócio exerceu papel determinante para expansão econômica. Nesse período houve também a primeira aprovação comercial de transgênico no Brasil (COMISSÃO TÉCNICA NACIONAL DE BIOSSEGURANÇA, 1998). A soja Roundup Ready, da multinacional Monsanto, foi inserida ilegalmente no país no fim da década de 90 e não se sabe ao certo o volume de soja que foi plantado clandestinamente. A esse respeito,

embora não se conheça o real volume da soja clandestina cultivada – o que reflete o descontrole sobre a questão pelos órgãos responsáveis por seu encaminhamento –, observa-se que todas as fontes apresentam números extremamente altos. Não existe certeza da origem dessa soja: se contrabandeada da Argentina, se disseminada pelas empresas à revelia do governo, ou mesmo com o seu aval [...]. (MARINHO; MINAYO-GOMEZ, 2004, p. 100).

Tendo em vista o momento econômico da época, o processo de transformação capitalista da agricultura no Brasil foi bem recebido, pois gerou o aumento da produtividade e da eficiência, integração crescente aos capitais industrial, financeiro e comercial, e o estabelecimento dos complexos agroindustriais. (LUIZ; SILVEIRA, 2000, p. 85). No mesmo sentido,

como ocorreu em quase toda a América Latina, as medidas adotadas pelo Estado brasileiro foram as de natureza liberalizantes, nas quais as exportações de commodities constituíram a receita para alavancar a economia e diminuir o déficit público. O agronegócio tornou-se, por conseguinte, a um só tempo, a força política e o motor econômico que vai impor uma transformação geoeconômica e uma agenda geopolítica no espaço rural brasileiro. (SILVA, 2015, parágrafo 27).

Nesse cenário, pode-se afirmar que a sustentabilidade fica comprometida desde o princípio da implantação da agroindústria no Brasil, pois dá-se demasiado valor a uma dos pilares constitutivos do princípio, como será visto no próximo item, o que gera um desequilíbrio. Em detrimento das consequências ambientais da adoção desse sistema, crescem os riscos oriundos da produção agrícola. Como exemplo, pode-se destacar a poluição gerada pelos dejetos animais que antes eram utilizados como fertilizantes e hoje são armazenados e produzem gases que comprometem a qualidade do ar, como metano e amônia, além da contaminação das águas e do solo decorrente do seu vazamento, o que é comum (GUIVANT; MIRANDA, 1999).

Outra característica fundamental na agricultura brasileira é o grande número de transgênicos aprovados. Até 2015, de acordo com a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, 44 variedades de plantas geneticamente modificados foram aprovados para a comercialização no país. (ALLANA, 2016, p. 14). O Brasil tem a 2ª maior área de transgênicos do mundo, com mais de 40 milhões de hectares, estando atrás apenas dos Estados Unidos (SERVIÇO INTERNACIONAL PARA AQUISIÇÃO DE BIOTECNOLOGIA AGRÍCOLA, [2014?]), sendo que a maioria dos países europeus refuta os OGMs. Especialmente na França, a relação risco/benefício é considerada como desfavorável, e há desconfiança nos OGMs e no processo regulador (BONNY, 2005, p. 247). Em 2014, o país proibiu definitivamente o milho transgênico.

Para acompanhar a produção extensiva de commodities agrícolas, o uso de agrotóxicos também aumentou, em tese, para controlar doenças e aumentar a produtividade. Atualmente, “o Brasil é o maior consumidor de produtos agrotóxicos no mundo” (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE, 2015) e as extensas áreas plantadas de soja, milho e cana-de-açúcar apresentam-se como fontes potenciais de contaminação pelo uso de agrotóxicos. Segundo a Agência Embrapa, outras culturas agrícolas, apesar de ocuparem áreas pouco extensas, destacam-se pelo uso intensivo de agrotóxicos por unidade de área cultivada, como as culturas de tomate e batata. (SPADOTTO, 2006, p. 15). Ainda segundo a Agência Embrapa de Informações Tecnológicas (SPADOTTO; GOMES, [2015?]):

O consumo anual de agrotóxicos no Brasil tem sido superior a 300 mil toneladas de produtos comerciais. Expresso em quantidade de ingrediente-ativo (i.a.), são consumidas anualmente cerca de 130 mil toneladas no país; representando um aumento no consumo de agrotóxicos de 700% nos últimos quarenta anos, enquanto a área agrícola aumentou 78% nesse período.

Como consequência da política do agronegócio há um enfraquecimento da agricultura familiar, ou da agricultura sustentável, pois o produtor é capaz de inserir-se apenas parcialmente nesse sistema, por insuficiência de capital ou pela assimetria nas condições de competitividade. Dessa forma,

A modernização da agricultura brasileira estabeleceu uma invasão de insumos e equipamentos que atendiam aos interesses industriais, e que também eram demandados por agricultores com algum grau de capitalização. Em consequência, provocou uma inversão na racionalidade tecnológica da agricultura tradicional capaz de modernizar-se, bem como a determinação de novos padrões de troca, na direção das necessidades da indústria processadora de produtos agrícolas, ou seja, a adesão à lógica do mercado. (LUIZ; SILVEIRA, 2000, p. 85).

O fato dos pequenos agricultores sofrerem com esse modelo com a perda da sua autonomia econômica tem impulsionado a criação de políticas públicas que incentivem a agricultura familiar, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar - PRONAF. A dinâmica da agricultura familiar atende a uma racionalidade econômica diferente da capitalista e atua principalmente “em contraste com o paradigma técnico-científico homogeneizante da monocultura, intimamente relacionado a uma série de danos ambientais, o conhecimento da operação de sistemas diversificados” (LUIZ; SILVEIRA, 2000, p. 86). No entanto,

Não havendo igualdade de chances nas oportunidades que se oferecem, verifica-se que as políticas públicas convencionais (tipo crédito agrícola, por exemplo, ou estímulo à formação de cooperativas) não superam a discriminação e a desigualdade entre uns e outros, como caboclos, indígenas, negros dos quilombos, por exemplo. Estes são portadores de racionalidades centradas em outros valores éticos sobre a reprodução socioeconômica e as relações sociais e com o meio natural. Nos exemplos citados, priorizam-se os valores de convívio e de sustentabilidade em detrimento aos de competitividade. (GEHLEN, 2004, p. 101).

Logo, por mais que o incentivo a um modelo de agricultura minimamente sustentável esteja na agenda política e formal, é difícil subverter a ordem estabelecida, o que culmina, entre outras consequências, em anos de engavetamento do projeto de reforma agrária. Nesse sentido, “qualquer política de transformações estruturais no rural constitui uma interface perturbadora de interesses oligárquicos e geradora de profundas transformações nas relações, alianças, conflitos e contradições, tanto na sociedade local quanto na regional e/ou nacional”. (GEHLEN, 2004, p. 101).

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Face a insuficiência das políticas públicas que tem o intuito de impulsionar a agricultura sustentável e da flexibilidade da legislação ambiental no registro de agrotóxicos e na aprovação de transgênicos, se reconhece que “[...] o fenômeno jurídico, por meio de subterfúgio da neutralidade, tende a negar a compreensão dos fatos e fenômenos sociais que alimentam a prática do direito” (BANDEIRA; FILHO; LUSTOSA, 2014, p. 125), ou seja, provavelmente tende a fornecer instrumentos que não coloquem em cheque os pilares da ordem hegemônica capitalista, pois são desses pilares que retiram a sua legitimidade.

No entanto, pretende-se buscar nas ferramentas ofertadas pelo Direito, no princípio da sustentabilidade e na educação ambiental, pressupostos para a construção de uma agricultura sustentável, no sentido de uma transposição do modelo do agronegócio. A interdisciplinaridade necessária encontra-se na relação entre a esfera econômica e o campo jurídico, o qual busca agregar valores ecológicos às práticas econômicas. Dessa forma, os tópicos seguintes tratarão dos conceitos legais e doutrinários dos princípios citados e do entendimento dos autores acerca da agricultura sustentável.

2. PRINCÍPIOS DO DIREITO AMBIENTAL: A EDUCAÇÃO AMBIENTAL E A SUSTENTABILIDADE

Não sem razão as relações entre economia e natureza são de contrastes e contradições. Enquanto o modelo econômico de mercado vislumbra a necessidade de crescimento quantitativo, destaca-se a busca de acumulação sob o signo da lei do valor de mercado como regra geral. A lógica subjacente à lei do valor está contida na ideia de racionalidade instrumental, é dizer, como mero cálculo situacional de custos e benefícios – a busca por comprar mercadorias por valores abaixo do valor de venda. A ideia, portanto, é de conseguir o maior lucro em taxa de juros suportável.

Os fenômenos naturais, igualmente são regidos por leis, ditas naturais. Tomando como exemplo a produção agrícola, desde a plantação até a colheita é necessário um período determinado. Contudo, a economia, orientada por valores como a eficiência, competitividade, lucratividade, acumulação, age sobre a natureza na intenção de minimização de custos e maximização de benefícios. Ao agir sobre a natureza, alterando seus ciclos, leis e sistemas de operacionalidade, o pensamento econômico torna-se agente de degradação e coautora da crise ambiental.

Com a popularização dos debates acerca do ecodesenvolvimento com a Conferência de Estocolmo em 1972, a economia foi percebida como a grande causadora dos desequilíbrios ambientais. (FOLADORI, 1999, p. 31). Posteriormente, com o Informe Brundland de 1984, o discurso do ecodesenvolvimento foi suplantado pelo do desenvolvimento sustentável, que ganhou corpo nos debates ambientalistas, onde traz a ideia de equilíbrio harmônico entre desenvolvimento econômico e sustentabilidade ambiental. Porém, foi na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, no Rio de Janeiro de 1992, que o discurso de desenvolvimento sustentável foi legitimado e difundido. No discurso de sustentabilidade, está a ideia diametralmente oposta ao crescimento econômico quantitativo, paradigma predominante até a década de 1960, rechaçava qualquer preocupação de cunho ambiental. Preocupava-se com a quantidade de produção, e não com a qualidade.

A produção qualitativa foi implementada com a diversificação da produção e com a melhoria da produtividade, no emprego de tecnologia e alteração da estrutura de produção. O desenvolvimento sustentável, portanto, surge como alternativa para a crise ambiental, segundo Leff (2004. p. 14) como critério normativo de reconstrução da ordem econômica, como conciliação entre economia e natureza. As estratégias do desenvolvimento sustentável, nesse sentido, transitam através de novas formas de desenvolvimento condizentes com as potencialidades dos ecossistemas; destarte, Leff (2004, p. 16) destaca que a escassez de recursos estendeu-se globalmente, e o progresso técnico de substituição de recursos escassos por recursos abundantes não solucionará a problemática ambiental definitivamente.

No que tange ao âmbito jurídico, o princípio do desenvolvimento sustentável encontra-se no caput do artigo 225 da Constituição Federal:

Art. 225. Todos têm direito ao ambiente ecologicamente equilibrado [...], impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

O desenvolvimento econômico não pode fechar os olhos para os limites materiais do ambiente, não a moral, ou a religião ou qualquer ordem axiológica, mas o próprio Direito positivo que assim determina. Conforme Fiorillo (2011, p. 83) o princípio do desenvolvimento sustentável, nesse sentido, tem por objeto a proteção das bases condicionantes da vida, isto é, das bases de produção e reprodução do homem; além disso, a proteção do ambiente para que as futuras gerações tenham, se não as mesmas condições de existência, as mais favoráveis possíveis. Com isso, a noção de desenvolvimento econômico desregulado não mais encontra espaço na sociedade contemporânea.

Enquanto o paradigma liberal do século XX afirma a não intervenção do Estado do mercado, o século XXI passa a exigir um papel ativo do Estado na proteção dos bens ambientais. A noção de sustentabilidade converge três elementos básicos, o planejamento entre desenvolvimento econômico, a utilização de recursos naturais e o desenvolvimento social. (FIORILLO, 2011, p. 90). Não se trata de hostilizar o desenvolvimento econômico, uma vez que ele é fundamental para a sociedade, trata-se de repensá-lo de um ponto de vista ecológico, ou seja, de levam em consideração suas qualidades e seus defeitos.

O legislador constituinte de 1988 percebeu a necessidade de limitações à livre iniciativa econômica. Limitações de ordem ambiental que não poderiam mais ser renegadas ao ostracismo. Redigiu o texto constitucional priorizando o desenvolvimento sustentável, a preservação do meio ambiente passou a estar em pauta na agenda do legislador, a ser prioridade muito em vista da íntima vinculação entre economia e ambiente. A livre iniciativa, afirma Fiorillo (2011, p. 90), passou a ter outro sentido, mais restrito e ao mesmo tempo mais amplo. Mais restrito em virtude da própria limitação material do crescimento, e mais amplo, pois abarca a dimensão ambiental.

Enquanto a Constituição Federal em seu artigo 170 caput estabelece que a ordem econômica será regrada pela justiça social, fundamenta-a na livre iniciativa e na valorização do trabalho humano. E ainda, estabelece que a ordem econômica deverá observar a defesa do meio ambiente, conforme inciso VI do mesmo artigo.[i] Nesse sentido, a livre iniciativa e articula-se com a defesa do meio ambiente, pois um é condição de existência do outro. O escopo fundamental da proteção do meio ambiente, segundo Fiorillo (2011, p. 91), é assegurar a existência digna por meio da qualidade de vida. Ao contrário de barrar o desenvolvimento econômico, o princípio da sustentabilidade procura minimizar a degradação ambiental, em razão de que afirmar o oposto é afirmar que não poderá mais haver produção industrial que degradem o meio ambiente, o que não é o sentido do dispositivo jurídico.

O objetivo do texto constitucional é garantir a proteção ao meio ambiente, minimizando sua degradação e não combater o desenvolvimento econômico em si, mas mantê-lo em níveis razoáveis de crescimento harmônico com a preservação ambiental. De outro lado, Canotilho (2010, p. 8) afirma que o princípio da sustentabilidade deve ser considerado elemento estrutural do Direito Constitucional. Ao lado dos outros princípios estruturantes do Estado Constitucional, tais como a liberdade, juridicidade, democracia e igualdade. O princípio da sustentabilidade incorporaria o rol de princípios estruturantes e determinaria que os humanos devessem organizar os seus comportamentos de forma a não viverem: a) à custa da natureza; b) à custa de outros seres humanos; c) à custa de outras nações; d) à custa de outras gerações. (CANOTILHO, 2010, p. 8)

Ainda segundo Canotilho (2010, p. 8) o princípio da sustentabilidade comporta em seu âmbito jurídico-político três dimensões distintas: a) a sustentabilidade geracional que determina parâmetros de equidade entre diferentes grupos etários da mesma geração; b) a sustentabilidade intergeracional que determina parâmetros de equidade entre as pessoas vivas no presente e as que nascerão no futuro; c) sustentabilidade interestatal que determina parâmetros de equidade entre países pobres e países ricos. Sustentabilidade, a partir de tais dimensões, é a proteção e a manutenção a longo prazo de recursos por meio da racionalização e economia de seu uso. A taxa de uso dos recursos não pode ser maior que a taxa de regeneração, a emissão de poluentes não pode ultrapassar quantitativa e qualitativamente a capacidade de regeneração do ambiente, os recursos não renováveis seja utilizados racionalmente como poupança para que as gerações futuras possam também dispor deles.

A sustentabilidade, acima de tudo, está se tornando um lugar-comum no discurso jurídico, muito em virtude dos debates na sociedade civil e mesmo entre governos. A percepção de que a sustentabilidade é condição de existência da própria economia está gestando uma nova consciência ecológica, de preservação do ambiente. A educação ambiental entra em cena justamente no momento de conscientização e reeducação para a perspectiva ambiental. Entrelaçada entre os campos da pedagogia e da ecologia, a educação ambiental ajuda no combate à desinformação e construção de uma consciência comum acerca da preservação do meio ambiente. (TREVISOL, 2003, p. 93).

Vista com pouca eficácia, a educação ambiental, contudo, demonstra seu potencial de alteração de comportamentos justamente quando bem empregada na modelagem de valores ambientais na formação do indivíduo. Enquanto as contradições entre valores de consumo e reificação são disseminados ideologicamente, a educação ambiental constitui como valor a preservação ambiental e seu uso racional dos recursos justamente para que haja sustentabilidade e permanência da espécie.

3. OS ARRANJOS PRODUTIVOS LOCAIS DA VITIVINICULTURA NA SERRA GAÚCHA COMO FORMA DE PROMOÇÃO DA AGRICULTURA SUSTENTÁVEL

Diante do panorama da agricultura anteriormente confeccionado e enfatizando-se a dificuldade enfrentada pelos pequenos produtores frente à sobrevivência da agressividade do agronegócio, onde a existência de um programa governamental que os incentive se demonstra insuficiente para o mantimento e desenvolvimento desta atividade, torna-se imprescindível que haja uma organização sinérgica da sociedade como um plano de contingência no combate à extinção da modalidade agrícola familiar. É desta forma que merecem destaque os arranjos produtivos locais (APL), conceituandos da seguinte forma:

Arranjos produtivos locais são aglomerações territoriais de agentes econômicos, políticos e sociais - com foco em um conjunto específico de atividades econômicas - que apresentam vínculos mesmo que incipientes. Geralmente envolvem a participação e a interação de empresas - que podem ser desde produtoras de bens e serviços finais até fornecedoras de insumos e equipamentos, prestadoras de consultoria e serviços, comercializadoras, clientes, entre outros - e suas variadas formas de representação e associação. Incluem também diversas outras organizações públicas e privadas voltadas para: formação e capacitação de recursos humanos, como escolas técnicas e universidades; pesquisa, desenvolvimento e engenharia; política, promoção e financiamento. (LASTRES; CASSIOLATO, 2003. p. 3).

Segundo o Portal APL,[ii] desenvolvido pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), as cidades situadas na região da Serra Gaúcha constituem uma área de APL Vitivinicultora, enfatizando como centro de concentração a cidade de Bento Gonçalves. Todavia a participação de cidades como Caxias do Sul, Flores da Cunha, Antônio Prado, Garibaldi e outras da região é que constitui e melhor exemplifica o conceito supracitado de APL, tornando fática a sua existência como meio de incentivo econômico de culturas agrícolas familiares e sustentáveis.

A composição dos agentes produtores desta área específica é feita por inúmeras vinícolas de pequeno e médio porte, muitas delas sendo vinícolas familiares, que processam os produtos das safras colhidas através do trabalho braçal dos indivíduos do núcleo familiar. Ainda, as famílias que não possuem uma vinícola, fornecem sua safra para alguma unidade familiar que possua, fortificando o laço econômico e social existente nessas comunidades.

Todavia, a atividade agrícola da vitivinicultura, mesmo que oriunda da agricultura familiar, por si só não representa uma forma de agricultura sustentável. É preciso desenvolver-se por meio da produção orgânica. Nessa seara, surge o produto denominado “vinho orgânico” o qual segue as premissas de que as uvas sejam cultivadas sem tratamento de agrotóxicos, além de também não possuir aditivo de conservantes no processo produtivo da bebida.

É notória e sabida a era de disseminação da “mentalidade orgânica” que vem adquirindo cada vez mais adeptos que buscam alimentar-se e ingerir apenas produtos não industrializados, geridos pelos preceitos naturais de nosso meio ambiente. Mesmo que em muitos campos científicos não haja factível comprovação dos efeitos colaterais gerados nos seres humanos pela ingestão deliberada de componentes químicos industriais aplicados aos alimentos, apontando-se um nexo causal explícito, o entendimento de que uma alimentação orgânica apresenta menores riscos à saúde de seu adepto, já se constitui como uma verdade para o senso comum. Desta forma, a conclusão sobre uma agricultura que apresente menores riscos aos seus destinatários, não se configura de forma adversa à de uma agricultura sustentável.

Ao retomarmos o conceito dos APL, nota-se que ainda não fora abordado no presente artigo o prisma do agente político desta relação. O papel mais característico deste agente certamente está caracterizado pela obrigação de dar conexão a todos os outros agentes. Isto porquê, o agente político promove e oportuniza eventos sociais, econômicos e culturais que trazem notoriedade à especificidade da APL. Aplica-se como exemplo a Festa Nacional da Uva, realizada a cada biênio na cidade de Caxias do Sul, onde a temática presente no próprio título do evento oportuniza o grau de visibilidade em âmbito nacional das festividades em torno da produção de uva e seus derivados na região da Serra Gaúcha, havendo espaço também para divulgação de produtos orgânicos. Neste tipo de evento, dá-se maior significância ao produtor de uvas, sem haver discriminação por sua eficácia produtiva, rentabilidade econômica, valoração mercadológica ou qualquer outro índice econômico tão pertinente e intrínseco na atividade da exploração do agronegócio voltado à exportação.

Outro exemplo característico da fundamental relevância do agente político do APL em parceria com entidades privadas está relacionado ao incentivo turístico das áreas que compõem o nicho do APL. Destaque para a rota turística do Vale dos Vinhedos, da cidade de Bento Gonçalves, onde o legado cultural enraizado no povoado mistura-se com o desenvolvimento do cultivo de videiras, engajando os vitivinicultores a estarem sempre modernizando-se no aspecto tecnológico e comportamental da sociedade. Também merece atenção a Rota dos Vinhos dos Altos Montes das cidades de Flores da Cunha e Nova Pádua, onde além da interação do público alvo com as diversas vinícolas da região, presenciando a cultura preservada da imigração italiana, também recebe a oportunidade de acompanhar o desenvolvimento de pesquisas vitivinícolas que qualificam-se como outro aspecto dos APL.

Portanto, é inequívoco o entendimento de que os arranjos produtivos locais constituem uma útil ferramenta de subsistência e desenvolvimento das atividades relacionadas à agricultura sustentável. Seja pela possibilidade de prover economicamente os recursos necessários para o mantimento de seu processo produtivo, seja pela interação dos agentes na divulgação e aprimoramento dos conceitos e técnicas da agricultura orgânica ou ainda pela valorização do agricultor familiar, que não contribui com a larga escala de danos dos grandes latifundiários e industriários do agronegócio.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A maneira brasileira de desenvolver os processos agrícolas ainda está muito atrelada ao desenvolvimento econômico, face ao subdesenvolvimento histórico-político do país. Não é possível pensar os problemas ecológicos gerados pelo uso de OGMs e agrotóxicos, por exemplo, descolando desse modelo as questões referentes à acumulação de riqueza, à exploração dos países subdesenvolvidos e à produção em massa.

A agricultura sustentável, em que pese sua concepção equívoca, pode ser uma alternativa para repensar esse modelo, transferindo a centralidade da produção para a convivência. No entanto, o caminho para sua consecução perpassa por uma revolução política e ambiental, apta a promover transformações sociais e a romper com os pilares do sistema de produção vigente. Com relação à efetivação dos princípios de direito ambiental da sustentabilidade e da educação ambiental, demonstra-se efetivos do tocante aos arranjos produtivos locais muito em virtude da estruturação comunitária dos arranjos.

Nesse sentido, o desenvolvimento do ensaio a partir das análises da agricultura brasileira, passando pela análise dos princípios ambientais até culminar com as análises dos Arranjos Produtivos Locais demonstra como tais Arranjos destoam do modelo industrial de larga escala do agronegócio, realizando, embora de maneira ainda tímida, os princípios do desenvolvimento sustentável e da educação ambiental.

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TREVISOL, Joviles Vitório. A educação em uma sociedade de risco: tarefas e desafios na construção da sustentabilidade. Joaçaba: UNOESC, 2003.


[i] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação.

[ii] Disponível em: <http://portalapl.ibict.br/apls/index.html#RS>. Acesso em: 25 jul. 2017.

Sobre o autor
César Augusto Cichelero

Professor e Coordenador do curso de Direito da Faculdade de Integração do Ensino Superior do Cone Sul (FISUL). Doutorando em Ciências Criminais na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com bolsa CAPES. Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) (2018), com bolsa CAPES e integrando o grupo de pesquisa Metamorfose Jurídica. Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) (2016), com bolsa PIBIC/CNPq e integrando o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas Sociais (NEPPPS). Advogado e colunista.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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