Considerações Iniciais
O tema deste capítulo é como a teoria crítica de Axel Honneth percebe as relações de consumo. Abordar essa temática significa que buscar-se-á, primeiramente, compreender de que forma Honneth entende o conceito de liberdade social e, na sequência, por meio de sua teoria crítica, como é possível ver a esfera de consumo como esfera de realização da liberdade social. Esse objetivo pretende ser alcançado por intermédio de sua construção histórico-normativa baseada na premissa de liberdade individual como finalidade social. Em 2011, com o lançamento de sua nova grande obra sistemática, O Direito da Liberdade, Axel Honneth abandona o jovem Hegel estudado por ele anteriormente, e passa a considerar de forma mais profunda a obra Princípios da Filosofia do Direito, entendendo que a liberdade individual é o elemento norteador da sociedade.
Para tanto, neste trabalho será adotado o método dialético. Deve-se ter em mente que ao utilizar como base um método de análise crítica, é necessária a compreensão de que não existe uma teoria crítica definitiva. Afinal, um dos pressupostos da crítica e da dialética é que estas possam, constantemente, ser revisadas e possuírem mecanismos de autocrítica. Dessa forma, é possível uma constante atualização e evolução do método dialético crítico, constituindo-se este, então, como um aliado para aqueles que buscam uma alternativa no pensar jurídico além da visão positivista. O procedimento instrumental a ser utilizado é, essencialmente, a pesquisa bibliográfica, desenvolvida com base nas produções de livros e artigos científicos agregadores do arcabouço teórico-metodológico definido.
Axel Honneth é um teórico ligado a Escola de Frankfurt, este termo, Escola de Frankfurt, é utilizado para descrever tanto um grupo de intelectuais quanto uma teoria social. Ele buscava, inicialmente, designar uma série de trabalhos de marxistas não ortodoxos alemães da década de 1920. Entretanto, sabe que o termo somente passou a ser utilizado na década de 50. Além disso, como adverte Assoun (1991, p. 6), a expressão não deve ser reduzida a uma escola filosófica, nem a um discurso sociológico e nem a um movimento político. Nas palavras do autor, a Escola de Frankfurt,
É assim a etiqueta que serve para marcar um acontecimento (a criação do Instituto), um projeto científico (intitulado “filosofia social”), uma atitude (batizada de “Teoria Crítica”), enfim uma corrente ou movimentação teórica ao mesmo tempo contínua e diversa (constituída por individualidades pensantes). Sendo isso tudo, é mais do que isso: um fenômeno ideológico que produz curiosamente os seus próprios critérios de identificação através do seu processo criador: é pelo menos a validade desta aposta crítica que é preciso examinar (ASSOUN, 1991, p. 19).
A Escola de Frankfurt, segundo Nobre (2004, p. 20), foi, especialmente, uma forma de intervenção política e intelectual, ainda que não partidária, no debate público alemão no período entre guerras. O posicionamento crítico da Escola de Frankfurt, portanto, está ligado a sua base marxista, e busca permanentemente ser renovada, além de realizar uma autocrítica constante, não sendo possível fixar um conjunto de teses imutáveis. Segundo Nobre (2004, p. 23), tomar a obra de Marx como fundamento não significa aceitar sua teoria como acabada e completa, mas levar em conta os problemas e as perguntas do marxismo a cada vez em diferentes constelações históricas específicas, ou seja, conforme Matos (2005, p. 23), significa levar em conta muito mais o “espírito” do que sua “letra” da doutrina marxista. Nesse sentido, o termo Escola de Frankfurt ou a concepção de uma “teoria crítica” sugerem uma unidade temática e um consenso epistemológico teórico e político que pouco existia entre os membros do Instituto. O que une estes intelectuais é a sua capacidade crítica, sua reflexão dialética, sua competência dialógica e os questionamentos radicais dos pressupostos de cada posição.
Diante disso, vale a pena ressaltar que Honneth é o principal nome da chamada terceira geração da Escola de Frankfurt. O ponto desencadeante da obra de Axel Honneth é a carência no âmbito social que ele identifica na teoria de seu professor, Jürgen Habermas, esta carência Honneth denomina “déficit sociológico”. A obra de Axel Honneth pode ser sintetizada em três fases, a saber, a primeira fase é marcada pela obra Luta por Reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais, originalmente publicada em 1993, nesta obra, Honneth dá novas direções para a Teoria Crítica, orientando-se nos processos de formação de identidade pessoal e coletiva. Para isso, Honneth (2003) faz uso das análises hegelianas do reconhecimento (Anerkennung), em especial das obras do jovem Hegel do período de Jena. Obras como “Maneiras científicas de tratar o direito natural” de 1802, “Sistema da eticidade” de 1802/1803, e “Sistema da filosofia especulativa” ou “Realphilosophie de Jena” de 1805/1806. A partir de tais textos Honneth interpreta a formação da intersubjetividade em Hegel através do conceito de reconhecimento e conflito. A segunda fase de Honneth é marcada pelas discussões e críticas em torno da teoria produzida na fase anterior, em especial no livro que Honneth pública juntamente com a filósofa americana Nancy Fraser, Redistribution or Recognition? A Political-Philosophical Exchange (2003). Por fim, a terceira fase da teoria de Axel Honneth é identificada pela publicação da obra O Direito da Liberdade, originalmente em 2011.
A obra, O Direito da Liberdade, consiste em uma tentativa do autor em organizar de forma sistemática a sua teoria. Uma simples leitura do sumário da obra é suficiente para perceber que o foco da obra é uma atualização da Filosofia do Direito de Hegel. Essa atualização é evidente na metade final da obra que é estruturada em três partes, como no livro de Hegel, a seção sobre família de Hegel torna-se uma parte sobre relações pessoais, a seção sobre sociedade civil corresponde a que discorre sobre o mercado e a seção sobre o Estado, em Honneth, aborda o Estado democrático. Esta atualização de Honneth não deve ser compreendida como “meras analogias formais” (PINZANI, 2012), afinal para o autor o que se torna importa é a utilização do método hegeliano, a reconstrução normativa. Segundo Honneth (2015, p. 107-8),
Hegel [...] vale-se de um método que deve produzir um equilíbrio entre circunstâncias sócio-históricas e considerações racionais: na evolução da comparação corretiva entre reflexões sobre quais objetivos os indivíduos devem racionalmente seguir e determinações empíricas de socialização de necessidade na modernidade, deverão emergir progressivamente os fins que os sujeitos devem seguir com realismo para se consumar nas circunstâncias dadas. Podemos caracterizar tal método de busca de equilíbrio entre conceito e realidade histórica como um processo de “reconstrução normativa”.
Dessa forma “reconstrução normativa” é o processo pelo qual se procura implantar as intenções normativas de uma teoria da justiça mediante a teoria da sociedade, já que valores justificados de modo imanente são, de maneira direta, tomados como fio condutor da elaboração e classificação do material empírico (HONNETH, 2015, p. 24). A partir dessa perspectiva, Honneth posiciona-se contra as teorias que tem seu ponto de partida em normas, princípios ou procedimentos ideais – por exemplo, Rawls – e não observação e descrição dos fatos nas sociedades concretas (PINZANI, 2012). É necessário abordar, também, que Honneth (2015, p. 109) entende que “o método escolhido por Hegel se mantém mesmo quando longe do pano de fundo de sua metafísica do espírito”.
Isto posto, entende-se que, de certo modo, o objetivo de Honneth é contrapor ao “construtivismo kantiano”, de Rawls, uma “reconstrução normativa” com fundamento hegeliano. Em outras palavras, o que ele busca é vincular a preocupação de garantia de liberdades típicas do liberalismo-igualitário à dimensão ética de autorrealização individual, e, ao mesmo tempo, fazer uma apropriação das questões normativas de justiça no quadro referencial da teoria crítica com o propósito de apontar os obstáculos e os potenciais existentes em sociedades modernas para a realização plena da liberdade. (MELO, 2013, p. 320).
Ainda que sujeito a críticas, Honneth apresenta logo no início da obra a ideia que será o norte de sua teoria, para ele “entre todos os valores éticos [...] apenas um deles mostra-se apto a caracterizar o ordenamento institucional da sociedade de modo efetivamente duradouro: a liberdade no sentido da autonomia do indivíduo” (HONNETH, 2015, p. 34). Assim, na visão de Honneth, “os valores legítimos característicos das sociedades liberal-democráticas modernas se fundiram em um único, a saber, na liberdade individual nos seus sentidos plurais” (PINZANI, 2012). Deve-se entender, no entanto, que essa escolha pela liberdade individual não decorre de uma compreensão metafísica desta, como possuindo em si essa característica de superioridade aos demais, mas, na visão de Honneth, essa escolha se dá em virtude da observação das sociedades ocidentais que elevaram esse valor ao longo da história.
A proposta do autor, então, é realizar uma análise das instituições da sociedade moderna utilizando como referencial a perspectiva de como e quanto estas contribuem para a liberdade individual dos sujeitos. Em última instância, Honneth busca desenvolver uma teoria da justiça que coloca a liberdade como o critério ético nas diferentes esferas da vida. Nas palavras do autor,
Na sociedade moderna vemos que a exigência de justiça só pode se legitimar se, de um modo ou de outro, a autonomia da referência individual for mantida. Não é a vontade da comunidade ou a ordem natural que se constituem pedra fundamental normativa de todas as ideias de justiça, mas a liberdade individual. (HONNETH, 2015, p. 37).
Ou ainda,
Como ponto de referência normativo de todas as concepções de justiça na modernidade, podemos considerar a ideia da autodeterminação individual: deve valer como justo o que garante a proteção, o incentivo ou a realização da autonomia de todos os membros da sociedade. (HONNETH, 2015, p. 39-40).
2. Da concepção social da liberdade
Para se compreender o que significa a liberdade em Axel Honneth é necessário fazer o mesmo caminho que ele e retornar a Hegel que, em sua Filosofia do Direito, desenvolveu sua própria concepção de liberdade que se denomina de liberdade social. Assim,
Evidencia-se que Hegel gostaria de chegar a um terceiro modelo de liberdade, [...] no qual também a esfera objetiva da liberdade se submete ao critério de liberdade: não só as intenções individuais deveriam satisfazer ao padrão de ter surgido sem nenhuma influência estranha de sua parte, mas também se deve poder apresentar a realidade social externa livre de toda heteronomia e de toda coerção (HONNETH, 2015, p. 84).
. Para Hegel a ideia da liberdade social seria entendida como produto de um esforço teórico para compreender que os critérios da liberdade reflexiva se ampliam até às esferas institucionais. Ocorre que a pura e simples menção dessa intenção demonstra a dificuldade que seria satisfazê-la. Honneth afirma que no cotidiano, os sujeitos não possuem critérios suficientes para serem capazes de se distinguirem entre livres e não livres, sendo assim, completamente carentes de intuições. Hegel já afirmara, também, em sua Filosofia do Direito que a amizade e o amor fornecem um exemplo para a liberdade na esfera externa do social. Por conseguinte, a chave da concepção da liberdade social de Hegel:
Está contida na formulação do “estar consigo mesmo no outro”, utilizada para esse fim; ele se baseia numa ideia de instituições sociais que, assim sendo, permite aos sujeitos se relacionarem uns com os outros, já que eles poderiam compreender sua contraparte como outro de si mesmos (HONNETH, 2015, p. 85).
Para Hegel, a categoria do “reconhecimento recíproco” é essencial para a sua concepção de ideia de liberdade social. O sujeito isolado, reflexivo, kantiano, está separado do mundo exterior das instituições sociais; por mais que ele através da razão escolha os objetivos, sua realização é incerta na realidade objetiva. Entretanto, através do “reconhecimento recíproco” ocorre, em um primeiro momento, apenas a experiência recíproca do indivíduo se ver confirmando nos desejos e nas metas da contraparte, uma vez que a existência desta experiência é condição necessária para a realização dos próprios desejos e fins. A alegação aqui é a de que, sob a condição de que ambos os sujeitos reconheçam a necessidade de complementaridade de seus respectivos fins, eles visualizam na contraparte o outro de seu si mesmo, e a liberdade, até então reflexiva, se amplia para se converter em uma liberdade intersubjetiva. (HONNETH, 2015, p. 85-6).
Hegel vai além e estabelece a ligação com o conceito de instituição ao conceber a existência de práticas de comportamento padronizadas como uma condição social de tal reconhecimento da complementaridade de fins e desejos,
Os dois sujeitos devem ter aprendido tanto a articular de maneira compreensível seus respectivos fins como também a entender adequadamente as enunciações desses fins antes de poder reconhecer-se reciprocamente em sua dependência um do outro (HONNETH, 2015, p. 86).
Então, segundo a teoria hegeliana, a garantia de “reconhecimento recíproco” é proporcionada pelas instituições de reconhecimento. Estas são entendidas como um conjunto de práticas de comportamento padronizadas que se deixam entrelaçar. Entretanto, uma vez que a aspiração para a liberdade do indivíduo só é realizada no interior ou através das instituições, para Hegel, um conceito “intersubjetivo” de liberdade se amplia para o conceito “social” de liberdade – o sujeito só é livre quando, no contexto de práticas institucionais, ele encontra outro sujeito com o qual se une por uma relação de reconhecimento recíproco. É por meio desta relação que o sujeito percebe uma condição para realizar seus objetivos. Dessa forma, quando se pensa no “ser em si mesmo no outro” se faz referência a instituições sociais, uma vez que somente práticas harmonizadas e consolidadas fazem com que os indivíduos que compartilham estas instituições possam se reconhecer reciprocamente como outros de si mesmos. E somente essa forma de reconhecimento é a que possibilita ao indivíduo implementar e realizar seus fins obtidos reflexivamente (HONNETH, 2015, p. 86-7).
Honneth (2015, p. 87-8) considera que Hegel acreditava em poder explicar a unidade ética das sociedades modernas através da vinculação emocional dos sujeitos, dessa forma, Hegel entende a estrutura social da liberdade segundo o modelo do amor entre homem e mulher. Na relação amorosa os sujeitos se reconhecem reciprocamente entendendo-se como seres dependentes um do outro. Honneth também afirma que Hegel faz menção, já na esfera do amor, como instituição pensada como condição social, onde só assim pode existir a relação de reconhecimento.
Hegel amplia sua teoria de reconhecimento ao perceber que a estrutura das sociedades de sua época caracteriza-se sempre por uma esfera independente do mercado econômico. Assim, não é possível compreender a unidade ética somente a partir da relação amoroso, pois, através dessa perspectiva não seria possível explicar o surgimento do assentimento moral de grandes camadas da sociedade, sendo assim, o mercado também abriga seu próprio potencial de liberdade. Então, Hegel entende que o mercado econômico constitui uma instituição de reconhecimento, “conceber o mercado como uma forma nova e indireta do “em-si-do-si-mesmo no outro” significa aprender a entender que essa instituição cria uma relação de reconhecimento pela qual os indivíduos podem ampliar a sua liberdade” (HONNETH, 2015, p. 89).
Entende-se assim (HONNETH, 2015, p 93-95), que em Hegel existem duas tarefas diferentes que são assumidas pelas instituições nas quais as relações de reconhecimento são postas de forma duradoura: (1) primeiramente, como tarefa de mediação, as instituições fazem que determinadas classes de manifestações de comportamentos dos participantes possam ser reciprocamente entendidas como intimação para que imposições de fins complementares sejam realizadas em conjunto. Através dessa base de regras e símbolos conectados de maneira intersubjetiva os sujeitos expressam um assentimento geral, uma vez que se identificam uns com os outros e realizam de modo recíproco seus fins. Desse modo, as instituições de reconhecimento são vistas como apêndices ou condições externas de liberdade intersubjetiva, afinal, sem elas, os indivíduos não são capazes de compreender a dependência recíproca de uns em relação aos outros, e, em vez disso, constituiriam o princípio e os locais de realização daquela liberdade. (2) Por outro lado, essas mesmas instituições – e, junto a elas, os indivíduos – de algum modo são capazes de um entendimento intersubjetivo de suas liberdades, pois somente por intermédio da adaptação a práticas cujo sentido está na realização comum de fins complementares eles aprendem a se entenderem como membros autoconscientes de comunidades garantidoras da liberdade. Diante dessa perspectiva, Hegel conclui que os sujeitos só podem vivenciar e realizar a liberdade quando participam de instituições sociais caracterizadas por práticas de reconhecimento recíproco.
Assim, em Hegel, os sujeitos podem ler, nas práticas harmonizadas da estrutura institucional, quais contribuições devem fornecer para que se realizemos seus objetivos de maneira, possíveis somente em sua comunalidade. Por isso, Hegel não pode admitir qualquer instituição como componente de seu conceito de liberdade, em outras palavras, ele deve se limitar as instituições nas quais são fixadas as relações de reconhecimento, que possibilitam uma forma duradoura de realização recíproca de objetivos individuais. A categoria de reconhecimento, portanto, é também fundamento decisivo para as instituições: uma vez que o propósito de tais complexos de comportamento normativamente regulado deve ser proporcionar aos sujeitos modelos sociais de realização recíproca, eles próprios devem constituir formas cristalizadas do reconhecimento recíproco. Por esse motivo, as instituições chegam à ideia de liberdade somente pela forma de valorização de materializações duradouras da liberdade intersubjetiva (HONNETH, 2015, p. 102).
A partir do exposto, Honneth entende que a ideia de liberdade social hegeliana está em condições de fundamentar uma nova perspectiva sobre a questão de um ordenamento justo. Hegel “gostaria de equivaler o ordenamento justo diretamente à soma das instituições sociais, necessárias para a realização da liberdade intersubjetiva” (HONNETH, 2015, p. 107). Assim, somente em instituições socialmente justas, que garantam a liberdade dos sujeitos, estes podem adquirir a liberdade individual que seria necessária para tomar parte no reconhecimento. Assim, toda a teoria da justiça de Hegel decorre de uma apresentação de relações éticas, de uma reconstrução normativa daquele ordenamento escalonado de instituições, nas quais os sujeitos podem realizar sua liberdade social experimentando o reconhecimento recíproco. Dessa forma, o que Honneth indica é que, primeiramente, deve estar desenhada a estrutura de instituições de reconhecimento nas quais os indivíduos possam realizar sua liberdade social antes que essas instituições, momento posterior, possam ser postas no papel de tomar posição diante do ordenamento arquitetado. Portanto, o reconhecimento intersubjetivo tem de anteceder a liberdade do sujeito individualizado e a liberdade dos que agem discursivamente. Afinal, quanto maior for a compreensão que os indivíduos possuem de que seus objetivos são apoiados e, mesmo, assumidos por outros indivíduos com quem possuem uma interação frequente, maior a tendência dos indivíduos perceberem o seu ambiente como espaço de expansão de sua própria personalidade. (HONNETH, 2015, p. 110-5).
Nessa perspectiva, para os indivíduos dependentes de relações com seus iguais, a experiência de tal interação não coercitiva entre o sujeito e o ambiente intersubjetivo representa o padrão de toda a liberdade individual. Liberdade significa, na visão hegeliana, a experiência de uma falta de coerção pessoal e de uma ampliação que resulta da promoção de objetivos de um indivíduo mediante os objetivos do outro. Acontece que, para Honneth, quando se entende esse tipo de liberdade social como o núcleo de todas as representações de liberdade e se toma as outras ideias de liberdade de maneira apenas derivativa, seguindo a teoria hegeliana, é possível concluir que nas sociedades modernas o que é justo deve antes satisfazer ao padrão que concederá a esses indivíduos, em igual medida, a oportunidade de participar em instituições de reconhecimento. (HONNETH, 2015, p. 115-7).
Posto isto, o que Honneth compreende que justiça deva conter é analisado sempre de acordo com o significado que o valor da liberdade individual assumiu nas esferas de ação institucional. Como a liberdade está vinculada às instituições, uma concepção de justiça talhada pelo valor da liberdade não pode fazer que nada se desenvolva e se justifique sem a apresentação simultânea do aparato de instituições correspondentes. Logo, a teoria não deve se limitar à derivação de princípios formais, mas deve abranger a realidade social, pois só nela existem as condições sob as quais o objetivo, por ela buscado, de prover a todos a maior liberdade possível pode acontecer. Em outras palavras, é a referência ética à ideia de liberdade, necessária para que uma teoria da justiça deixe os contextos puramente formais e ultrapasse as fronteiras para a matéria social. Dessa forma, o autor aponta que usufruir da liberdade individual significa agir, perante as instituições, na interação normativamente regulamentada com os outros, através de experiências de reconhecimento intersubjetivo.
3. A realização da liberdade social na esfera de consumo
As instituições que realizam a liberdade social são entendidas como a “realidade da liberdade”. Para o autor, essa realidade só acontece,
Quando os indivíduos estão em tal reconhecimento recíproco que suas consunções de ação podem ser apreendidas sempre como condição de satisfação dos objetivos de ação de sua contraparte, afinal, eles podem vivenciar a realização de suas intenções como algo que, nessa medida, consuma-se completamente isento de coerções e, portanto, “livremente”, uma vez que é desejado ou aspirado pelos outros no seio da realidade social (HONNETH, 2015, p. 224).
O passo seguinte, portanto, é o estudo das instituições e dos sistemas de ação da liberdade social. Acerca destes sistemas de ação, Honneth os entende a partir das teorias de Parsons (instituições relacionais) e Hegel (esferas éticas). Como Honneth explica,
Esses sistemas de ação têm de ser descritos como “relacionais”, porque neles complementam-se reciprocamente as atividades dos membros individuais [...] eles podem ser considerados “éticos” por envolverem uma forma de obrigação que não tem a contrariedade de um mero “devido” (HONNETH, 2015, p. 227).
As expectativas de comportamento dos indivíduos dentro dessas instituições relacionais são institucionalizadas sob a forma de papéis sociais que, normalmente, asseguram uma correta integração das atividades no cumprimento dos respectivos papéis. Desse modo, as ações, que em si são inconclusas, complementam-se na reciprocidade da ação conjunta prevista por todos os participantes. Assim, a moral vista dentro dessas instituições não é a concessão recíproca da possibilidade de autodeterminação individual, mas um componente intrínseco das práticas sociais que, juntas, constituem um sistema de ação relacional (HONNETH, 2015, p. 227-8). Entretanto, seguindo Hegel, Honneth entende que,
Esses sistemas de ação só formam esferas de uma liberdade social se as obrigações de papéis constituintes dos sujeitos puderem ser concebidas como capazes de assentimento reflexivo. Se obrigações desse tipo fossem impostas socialmente ou forçadas, os sujeitos não poderiam reconhecer na complementariedade recíproca de suas ações uma realização “objetiva” de sua própria liberdade, desejada e aspirada de dentro para fora (HONNETH, 2015, p. 228).
Então, a tese central de Honneth é de que a liberdade individual só alcança uma realidade socialmente experimentável e socialmente vivida somente em complexos institucionais com obrigações de papéis complementares. Isto significa, em outras palavras, que o indivíduo experimenta a liberdade individual somente no contexto de obrigações sociais que surgem do fato dele desempenhar certos papéis sociais. Afinal, a liberdade é social não isola o sujeito do contexto social no qual ele está inserido, já que ela só pode ser vivida em tal contexto, isto é, na interação com outros indivíduos. Desse modo, como já exposto, o objeto deste capítulo é uma leitura do desenvolvimento de uma das três esferas institucionais nas quais se realiza a liberdade social, qual seja, a esfera do consumo inserida dentro do agir na economia de mercado. Portanto, agora buscar-se-á analisar como Honneth percebe essa realização da liberdade social no mercado e nas relações de consumo.
Como afirma Pinzani (2012), a tarefa mais árdua na obra de Honneth talvez seja mostrar como a esfera do mercado pode ser o lugar onde se realiza a liberdade social dos indivíduos. O próprio Honneth inicia o tema reconhecendo que “de modo geral, parece hoje um tanto equivocado pensar o sistema de ação em economia de mercado como uma esfera de liberdade social” (HONNETH, 2015, p. 324). Tais dificuldades são justificadas ao passo em que o “sistema da economia de mercado capitalista não parece minimamente orientado à construção de uma relação de reconhecimento recíproco” (PINZANI, 2012). O problema resumido por Pinzani é o de que, ainda que
Tal esfera pressupõe a institucionalização de direitos individuais que correspondem à criação da liberdade jurídica; e que, portanto, nela os indivíduos possuem um mínimo de liberdade. Contudo, prevalece a concentração no interesse particular e uma visão pela qual cada um vê no outro meramente um meio para alcançar seus fins particulares. O atual mercado capitalista (quer o mercado de trabalho, quer o mercado "tradicional" onde se trocam mercadorias) tende a isolar os indivíduos uns dos outros e a convencê-los de que a única coisa que conta é a maximização dos lucros individuais, não a satisfação das carências sociais (PINZANI, 2012).
Assim, é somente com o advento do Estado de Direito que são criadas as condições institucionais capazes de compor uma esfera de relações de intercâmbio juridicamente ordenadas entre os indivíduos que atuam de maneira estratégia. Entretanto, o sistema capitalista, apesar de sua proteção de ser livre de toda e qualquer influência estatal, se deve historicamente a uma intensa atividade intervencionista do Estado que possibilita o estabelecimento das condições jurídicas para a liberdade contratual (HONNETH, 2015, p. 329).Honneth aborda a visão de Marx, que entende de forma crítica que o modo de produção capitalista não seria capaz de conduzir ao aumento da liberdade individual, uma vez que os verdadeiros mantenedores (trabalhadores) tinha de concordar com um contrato de trabalho aparentemente “livre” sob a coação da ausência de alternativa (HONNETH, 2015, p. 333), pois “os trabalhadores não teriam escolha além de aceitar contratos cujas consequências eram a espoliação do trabalho e a exploração econômica” (HONNETH, 2015, p. 333-4). A saída, portanto, é uma visão conforme
A concepção de Hegel e Durkheim, a esfera do agir mediado pelo mercado só pode satisfazer sua função publicamente pensada, que é a de integrar as atividades econômicas dos indivíduos de maneira harmônica e não coercitiva, por meio de relações contratuais, se houver uma consciência de solidariedade em todas as relações contratuais, tornando obrigatório um tratamento recíproco que seja justo e equitativo (HONNETH, 2015, p. 335).
Assim, é necessário analisar o sistema de economia de mercado a partir de uma classe de regras morais não contratuais que o precedam. Honneth entende que a esfera do mercado, mesmo que tenha a influência de normativas econômicas, deve possuir uma estrutura de normas e princípios normativos independentes das relações econômicas e se configurar como uma esfera de relações de “reconhecimento recíproco”. Esta estrutura é essencial, pois na ausência de limites do mercado capitalista ocorre uma anomalia social que põe em risco o potencial normativo desta esfera institucional. Nas palavras de Campello,
Com efeito, Honneth vê o mercado como espaço de liberdade social na medida em que possibilitaria a satisfação recíproca de carências e preferências individuais e, nesse sentido, a referência ao mercado seria indissociável de uma discussão sobre o seu conteúdo moral: as relações de mercado só podem ser legítimas se são capazes de realizar tais demandas. Se o processo de diferenciação na modernidade que dá origem à estabilização do mercado é vista, aqui, como necessária, o processo de perda desse propósito é entendida como consequência de um “desenvolvimento errado”. Ou seja, as evidentes contradições e esgotamento do mercado no seu modelo atual em satisfazer demandas individuais são problemas ocorridos no seu próprio desenvolvimento e que impedem a realização do seu potencial normativo. (CAMPELLO, 2013, p. 194-5)
A partir do exposto, somente quando as normas de ação estabelecidas no mercado forem seguidas de forma coletiva e, nesse sentido, quando o mercado for concebido como esfera de liberdade social é que estarão dadas todas as condições sociais sob as quais um ordenamento econômico de mercado pode se desenvolver sem impedimentos. O entendimento é de que o ordenamento econômico de mercado depende de um contexto ético por meio de normas de ação pré-contratuais, pois apenas através desse pressuposto normativo tal ordenamento pode possuir a concordância de todos os envolvidos (HONNETH, 2015, 338-340). Em outras palavras,
O mercado econômico não deve ser considerado isoladamente do horizonte de valores da sociedade democrática liberal que o circunda; em vez disso, nos processos de intercâmbio econômico nos quais os ofertantes estrategicamente se contrapõem numa concorrência por oferta e procura, normas e valores pré-mercadológicos estão inseridos mesmo quando violados ou quando deles se divergir, pois sob tais condições a disposição dos sujeitos para a colaboração ativa desaparece nos processos correspondentes (HONNETH, 2015, p. 354-5)
O exposto significa que a permissão para a constituição do mercado, de que os indivíduos se orientem tendo em vista seu lucro, deve satisfazer à condição normativa de que os sujeitos possam ser entendidos como um meio apropriado à realização complementar de seus próprios objetivos. Assim, a liberdade contratual, cuja institucionalização possibilita a dinâmica da economia capitalista, depara sempre com seu limite ao não transpor fronteiras para além das quais já não é mais possível aos indivíduos concebê-la como uma conformação de sua liberdade social (HONNETH, 2015, p. 357).
Ao estudar Hegel e Durkheim, Honneth percebe que estes vinculam a existência da economia de mercado à condição de realizar uma liberdade de nível mais elevado. O mercado deve, por meio de processos de trocas, contribuir para uma complementação de intenções de ação individuais. Isso significa que os atores econômicos devem ser antecipadamente reconhecidos como membros de uma comunidade cooperativa. Portanto, o alcance das liberdades contratuais, sancionadas no mercado, deve ser consideravelmente reduzido para que sejam levadas em conta as exigências de um reconhecimento recíproco entre indivíduos considerados como parceiros de cooperação (HONNETH, 2015, p. 361).
Diante dessa perspectiva, Honneth propõe que
Contra as tendências assim delineadas de redução e unilateralidade, impõem-se a tentativa de, em associação à tradição do economismo moral, reconstruir a economia de mercado atual de maneira normativa considerando-se quais pontos de inserção e quais conformações institucionais de realização da liberdade social nela se encontram. Ao fazê-lo, devemos nos concentrar, sobretudo, nos mecanismos discursivos e nas reformas jurídicas, pois assim o desdobramento dos princípios de solidariedade que lhe subjazem podem sempre chegar à materialização mais evidente (2015, p. 370).
A proposta do autor, então, é analisar a esfera do consumo para que a partir da reconstrução normativa seja possível compreender de que forma estas contribuem e como acontece nestas a liberdade social. No que concerne à essa esfera, Honneth parte do pensamento de Hegel que ao refletir a respeito do “sistema das necessidades” compreende que com o estabelecimento da economia de mercado surge outra dimensão da nova forma de liberdade individual. Desse modo, por meio das possibilidades que são abertas à compra individual pelo mercado de bens, os sujeitos aprendem a se entender como consumidores, livres para formar suas vontades pessoais e, assim, a sua identidade, pela via da busca hedonista e pela aquisição satisfatória de mercadorias (HONNETH, 2015 p. 372).
O entendimento de Hegel considerava que a esfera do consumo mediado pelo mercado se tratava de uma relação intersubjetiva de reconhecimento. O clássico idealista alemão afirmava que os interesses dos consumidores e produtores engrenam-se mutuamente, já que sua satisfação só se faz possível na reciprocidade. Como aborda Honneth, “Hegel chega a ir mais longe ao falar da necessidade de um “orientar a si pelo outro”, pois ambas as partes devem considerar o “modo de pensar” ou as intenções de ação de cada outra para poder realizar seu objetivo, seja consumir ou produzir” (HONNETH, 2015, p. 373). Portanto, para Hegel, o consumidor nada tem de um ator soberano, que decide sobre suas preferências sozinho, todavia, ele é um participante do mercado que anseia por reconhecimento e se mantém consciente de sua dependência dos produtores.
No início da retomada histórica Honneth observa que no início do século XIX eram comuns e frequentes certos tipos de levantes e convulsões sociais. Nestes, os sujeitos reclamavam seu direito de, na condição de consumidores, serem abastecidos de bens fundamentais compatíveis com suas condições financeiras. Seu intuito era de não reduzir o mercado às transações econômicas em sentido estrito, desse modo, essas “revoltas do pão” e boicotes a bens tinham de se autoclassificar como reações morais da sociedade frente ao mercado. Além disso, no próprio século XIX as reações morais dos consumidores não diziam respeito apenas à questão dos preços que podem ser considerados legítimos para bens de uso elementar. Na verdade, as revoltas contemplavam, também, a questão de certos bens deverem ou não ser levados ao mercado e de onde estariam as fronteiras de um consumo considerado socialmente aceitável.
Transcorrido séculos, ainda antes da Primeira Guerra Mundial, o consumo, na visão de Honneth, foi deslocado para uma posição que quase equivalia eticamente à do trabalho. Nessa época ainda subsistia a ideia de que a esfera de consumo mediada pelo mercado consistiria também numa instituição de liberdade social, na qual os diferentes interesses se entrelaçam de maneira complementar. Afinal, além da ideia socialmente disseminada de que era preciso fazer justiça ao mercado de consumidores, existia, também, uma forma de consciência coletiva que hoje pode ser entendida observando as cooperativas de consumo que começavam a surgir naquela época, dentro das quais o consumo era considerado uma atividade social.
No entanto, após a Segunda Guerra Mundial, a indústria de bens de consumo soube aproveitar a disposição em compensar os anos de privações ocasionados pela guerra, com a rápida aquisição do maior número possível de bens de consumo. A partir disso, então, se estabeleceu na esfera de consumo o que se pode chamar de uma cultura capitalista. Nessa perspectiva,
Indivíduos desenvolveram uma disposição motivacional para se apropriar inteiramente do valor simbólico das mercadorias oferecidas e propagandeadas, com base na interpretação de sua identidade pessoal. A conduta de compra do consumidor não mais se orientava pelo caráter de uso dos bens disponíveis no mercado, mas pela promessa de felicidade pessoal e de desenvolvimento da personalidade, que vinha embutida na competência profissional (HONNETH, 2015, p. 400).
Após o estudo histórico, Honneth apresenta a ideia de que na tradição do economismo moral,
O mercado de bens de consumo pode ser considerado uma relação institucionalizada de reconhecimento recíproco, quando os fornecedores empresariais e os consumidores são pensados de tal maneira em referência um ao outro que contribuíam de modo complementar para a realização dos interesses legítimos da outra parte: assim, os consumidores só poderiam realizar sua liberdade de satisfação de necessidades individuais ao se abrirem para a perspectiva de maximização de lucros mediante demanda num mercado, e os empresários, inversamente, só poderiam realizar sua maximização de lucros se efetivamente produzissem bens para aquela demanda de consumidores que tivesse originalmente acenado (HONNETH, 2015, p. 392).
Dessa forma, as necessidades dos consumidores devem se adaptar de tal maneira entre si que os lucros desejados pelos fornecedores se mantenham num contexto de acessibilidade coletiva, para que a oferta dos bens possa se realizar num sentido considerado ético. Posto que o mercado foi concebido por todos os seus participantes como instrumento de intercâmbio institucional, em cuja função, consumidores, fornecedores e produtores, se ajudem reciprocamente na realização de seus respectivos objetivos.
Contudo, essa plasticidade moral da esfera de consumo somente é perceptível onde existem atores coletivos que pressionam por alterações das regulações dominantes. Afinal, a instituição do mercado de bens de consumo não é exclusiva para transações entre fornecedores e consumidores individuais, nesse mercado também podem atuar atores coletivos que, pautados por motivos morais, queiram impor o princípio subjacente de uma satisfação coletiva de necessidades (HONNETH, 2015, p. 395).
Um dos resultados dessa relação é a chamada “moralização” ou “eticização” do comportamento do consumidor. Atualmente, cada vez mais os indivíduos devem se orientar por pontos de vista ecológicos, morais e sociais ao consumir. Nesses grupos, cuja atitude é descrita como pós-material, o ato de consumir depende de um respeito a critérios morais, como a proteção de recursos naturais. Essa mudança de atitude de parte da população levou muitas empresas e corporações a mostrarem respeito por esses valores. Afinal, as empresas, objetivando seu próprio interesse, se guiam pelos princípios morais enviados por grupos de consumidores. Honneth observa que,
Podemos estar inclinados a reconhecer essas tendências à “moralização” do mercado de bens de consumo como um movimento a proporcionar prospectos de maior reciprocidade entre consumidores e empresas. Juntamente com as crescentes oportunidades de intervir politicamente nos processos de tomadas de decisões das empresas, vemos que a mudança nos hábitos de compra de parte da população conduziu à real possibilidade de perceber a liberdade social na esfera de consumo (HONNETH, 2015, p. 410).
No entanto, assumir essa perspectiva, adverte o autor, também poderia “nos fazer ignorar uma série de tendências importantes e contraditórias. A começar pelo fato de que o número de consumidores que efetivamente aplicam critérios morais tem sido desmedidamente superestimado” (HONNETH, 2015, p. 411). Visto que, a compreensão da importância de critérios morais por parte dos consumidores não necessariamente é colocada em prática, pois necessidades materiais, sensações de onipotência ou o egocentrismo mais básico representam sérios obstáculos. Por essa razão, Honneth afirma que o comportamento pouco mudou e continua meramente individualista, já que não há motivação institucional para instalar um intercâmbio de conhecimentos entre os consumidores e, desse modo, uma maior pressão sobre seu próprio comportamento. A percepção é de que onde há suficiente riqueza não existe esforço em reduzir o consumo por motivações de caráter ético. “Os consumidores, aparentando evidente orgulho, investem o máximo possível em bens de luxo cuja única função é mostrar a lacuna entre eles e as classes mais pobres” (HONNETH, 2015, p. 412).
Diante desse contexto, Honneth (2015, p. 411-2) aponta que apesar da aparente reorientação de parte dos consumidores, existe uma grande carência de fóruns públicos onde seja possível a análise e discussão coletiva das necessidades de consumo. Portanto, essa carência de mecanismos discursivos, locais de negociação e espaços para discussão, impede os consumidores de adotar uma perspectiva diferente, seja entre eles próprios, seja entre consumidores e fornecedores/produtores. Assim, a carência é claro indicador de que uma suposta moralização do mercado não foi completamente realizada, visto quese convive com um consumo ostensivo e puramente relacionado ao status. Logo é possível observar que existem
Dois amplos grupos de consumidores: o primeiro guia-se fortemente por motivos éticos, enquanto o segundo se permite a aquisição de bens de luxo sempre com renovada inocência. Em razão da falta de meios de comunicação abrangentes, estamos longe de elucidar se não haveria uma obstrução recíproca quanto aos modos pelos quais as diferentes classes fazem uso de bens de consumo (HONNETH, 2015, p. 413-4).
Dessa forma, a conclusão do autor é de que, atualmente, quase não há uma coordenação discursiva do comportamento de consumo, que seria a condição necessária para a liberdade social nessa esfera. Além disso, as medidas de proteção jurídicas do consumidor estão mais relacionadas com as condições para o desenvolvimento de uma liberdade que não é social, mas meramente jurídica. Por isso que, apesar de existirem nos mais diversos países, os órgãos de proteção ao consumidor se mostram impotentes para combater o desvirtuamento do consumo, pois à medida que exercem uma função eminentemente negativa, de controle, e estando distantes dos consumidores, carecem da possibilidade de influenciar os mesmos.
Em virtude dessa situação, as empresas e corporações ativas no mercado de bens de consumo se aproveitam para assumir o controle dos mecanismos discursivos desta esfera. Ou seja, “em nossos dias, os fornecedores dominam quase completamente o sistema de comunicação que lhes permite uma influência muito maior sobre as necessidades e preferências do consumidor” (HONNETH, 2015, p. 415). Esse fenômeno é observável no atual nível de fetiche por marcas e a rapidez com quem as campanhas publicitárias penetram não sujeitos. Além disso, inexistem na esfera do consumo grupos intermediários, espaços de discussão e mecanismos de generalização que seriam responsáveis por formar uma opinião publicamente reconhecida. Nesse sentido, as decisões a respeito da regulação da esfera de consumo são tomadas e executadas por um restrito círculo de órgãos governamentais e associações de especialistas, nos quais os consumidores não têm participação alguma.
Assim sendo, “não é possível falar hoje numa “moralização dos mercados” vinda de baixo, da parte dos consumidores” (HONNETH, 2015, p. 416). A conclusão do autor é de que na esfera de consumo, o crescimento do poder das empresas – decorrente da internacionalização da produção e do comércio – está relacionado com o enfraquecimento dos contrapesos discursivos que tornam os consumidores cada vez mais privatistas e, consequentemente, mais indefesos. Portanto, no longo prazo, só um discurso público é possível de garantir uma restrição efetiva no nível de consumo. Logo,
Em nossos dias a esfera do consumo mediada pelo mercado carece de todas as precondições institucionais que poderiam convertê-la numa instituição social da liberdade social. Não se pode dizer que exista nela uma reciprocidade institucionalizada na satisfação de interesses ou necessidades, já que uma das partes, a dos consumidores, atualmente quase não dispõe de instrumentos discursivos por meio dos quais estaria em condições de generalizar as variadas e divergentes preferências de tal modo que pudesse obrigar a outra parte, a das empresas, a considerar essas preferências sob pena de fazer fracassar a concepção de produtos e políticas de preços (HONNETH, 2015, p. 420-1).
Contudo, Honneth (2015, p. 421-2) alerta para uma situação que se esconde por detrás da falta dos espaços discursivos, as crescentes diferenças econômicas e sociais seriam o maior obstáculo de fortalecer o poder de oposição dos consumidores. Visto que dificultariam sua unificação e comunicação. Diante disso, todos os esforços para que se realize a liberdade na esfera de consumo não terão sucesso enquanto a distância socioeconômica entre as classes sociais originarem perspectivas de futuro e oportunidades de consumo muito diferentes entre os indivíduos. Assim, em transição para as considerações finais, aponta-se que Honneth vê que o estudo dessas diferenças sociais deve passar da esfera do consumo para a do trabalho, pois a posição que o membro da sociedade ocupa na estrutura social não decide seu papel no processo de circulação econômica, e sim, em termos marxistas, sua posição no sistema de produção capitalista.
Considerações Finais
Quando o proletariado parte do princípio de que firmou livremente um contrato de trabalho com a burguesia, a defesa do direito ao trabalho, do respeito ao contrato ou do combate a exploração é entendida como um processo realizado pelo proletário enquanto sujeito de direito jurídico. Contudo, a institucionalização da liberdade social na esfera do mercado de trabalho capitalista exige também, além das garantias jurídicas de igualdade de oportunidades, o estabelecimento de mecanismos discursivos que permitam ao proletariado influir, coletivamente ou em grupos, nos interesses da burguesia. Assim,
O estabelecimento da liberdade social nessa esfera, ou seja, sua ampliação à condição de instituição “relacional”, exige, [...] que institucionalmente lhe fossem conferidos mecanismos discursivos, permitindo aos implicados uma influência recíproca na localização de interesses de cada um deles e, pouco a pouco, emprestando forma aos objetivos de cooperação de caráter mais amplo. Em ambos os lados devem passar a vigorar regras institucionais que impliquem um ancoramento do significado social e cooperativo das atividades econômicas na consciência dos partícipes (HONNETH, 2015, p. 440-1).
O momento atual que a esfera de trabalho se encontra é de “retração do salário real, precarização das condições de contratação e aumento da insegurança” (HONNETH, 2015, p. 471). Além disso, é possível somar a esse quadro a diluição das fronteiras das condições de trabalho, ou seja, a “premência cada vez maior para que o trabalhador se comporte como “moeda corrente no mercado” e exigências de rendimento interiorizadas individualmente” (HONNETH, 2015, p. 471). Por isso que as condições estabelecidas na esfera do trabalho mediada pelo mercado são consideras injustas por grande parte dos assalariados, visto que não há uma adequada valorização do trabalho da parte delas, como há também uma exigência de uma disposição exagerada para a flexibilidade. Em outras palavras,
A instituição do mercado de trabalho capitalista é considerada ilegítima ou injusta quando deixa de garantir um rendimento que assegure a vida e não valoriza adequadamente, com o montante do salário e a reputação social, o desempenho concreto, não oferecendo, tampouco, possibilidades para que se vivencie a inclusão cooperativa a divisão social do trabalho (HONNETH, 2015, p. 472).
Afinal, deve-se ter em mente que o montante de um salário deve ser a expressão simbólica da medida da valorização social dos esforços do trabalho. Por consequência, a deterioração dos rendimentos induzida política e economicamente e a crescente precarização dos postos de trabalho são indícios de uma perda de reconhecimento coletivamente vivenciada. Honneth aponta que tais anomalias na esfera do trabalho, ainda que sejam percebidas subjetivamente e consideradas injustas pela maioria, não suscitam reações coletivas de revolta. Para fundamentar esta posição, Honneth (2015, p. 473) aborda o fato de que o setor de serviços ou na periferia não qualificada do minguante trabalho industrial, em parte alguma se encontra articulações de interesses coletivos, apenas formas privatizadas de resistência. Logo, “tudo o que se evidencia como “negações” no seio da realidade da vida social do mercado de trabalho possui hoje o caráter de uma surda estratégia de evasão, não raro individualizada; a ela parece faltar força para se articular publicamente (HONNETH, 2015, p. 472).
O diagnóstico, então, é de que os motivos para essa anomalia (desenvolvimento errado) observada no final do século passado, certamente estão relacionadas à completa estratificação do proletariado. Em outras palavras, isso significa que a comunicação acerca de temas compartilhados não tem lugar, parecendo ter se apagado os esforços do movimento trabalhista para socializar o mercado de trabalho a partir de baixo. Desse modo, o indivíduo,
Na sensação de ser o único responsável por seu próprio destino no mercado de trabalho, talvez esteja a chave para o opressivo mutismo com que hoje se aceitam todas as perdas de garantia e flexibilização na esfera do trabalho em sociedade. Se há não mais de quarenta anos prevalecia a concepção de que havia uma responsabilidade mútua quanto às vicissitudes do mercado de trabalho, hoje disseminou-se a ideia de que, em se tratando de vida produtiva, a sobrevivência e o êxito devem-se unicamente ao próprio esforço (HONNETH, 2015, p. 475-6).
A conclusão do autor é de que apesar de nos últimos séculos se observar que várias reformas políticas fracassaram frente ao poder mercantil do grande capital, ainda assim, é possível conceber a “reforma gradativa do mercado de trabalho como um projeto social sustentado pela ampla anuência de uma visão moral e social da economia capitalista” (HONNETH, 2015, p. 478). Pois, no início do capitalismo e culminando no breve período pós-guerra, os indivíduos compartilhavam a crença de que o mercado econômico deveria beneficiar a todos os participantes para então ser entendido como uma instituição da liberdade social. Contudo, como já exposto, nas últimas décadas ocorreu uma intensa individualização da ação no mercado de trabalho, de modo que já não se atribui a um “nós”, mas ao sujeito o próprio sucesso econômico. Diante dessa perspectiva,
Tudo o que no passado foi considerado necessário para se aproximar de um estado de colaboração mediada pelo mercado poderia, no melhor dos casos, ser considerado reformas de caráter pacificador visando deter a luta de classes e, no pior dos casos, um produto supérfluo de crenças sociais com tendência a paralisar os esforços do sujeito econômico individual e, injustificadamente, atenuar a pressão por concorrência (HONNETH, 2015, p. 479).
Isso ocasiona uma anomalia importante para Honneth (2015, p. 481), qual seja, a imagem que a sociedade tem do mercado. Por uma ótica individualista, este não é percebido como um organismo social, sobre o qual a comunidade, de forma cooperativa, tem responsabilidade uns com os outros, mas é visto como um local de concorrência pela otimização do benefício pelo qual todos devem responder. Portanto, “o grau de anomalia na esfera mediada pelo mercado do trabalho social mede-se exatamente por essa reconversão da promessa de liberdade social na de pura liberdade, ainda meramente individual” (HONNETH, 2015, p. 483).
A solução no horizonte para o autor são ações proposta por associações transnacionais de sindicatos e organizações não governamentais, para que a força de comunidades transnacionais criadas com o objeto de influir no mercado de trabalho possibilite a socialização do mesmo. Assim, apesar das dificuldades atuais, Honneth acredita que o mercado capitalista conserva a possibilidade da realização da liberdade social. Para fundamentar sua posição, Honneth lembra as categorias abordadas em Smith (empatia), Durkheim (solidariedade) e Hegel (confiança), optando pela “interpretação de que só é possível fundamentar um livre mercado se são preenchidas condições prévias vinculadas a um conteúdo moral” (CAMPELLO, 2013, p. 195).
Indo além, o que autor transmite é que para a realização da liberdade social na esfera de consumo, é preciso que em todas as outras esferas de ação, os indivíduos possam reconhecer, nas obrigações de papéis reciprocamente complementares, uma condição para realizar seus próprios fins (HONNETH, 2015, p. 232). Assim, torna-se indispensável discutir, ainda que brevemente, o significado da categoria “eticidade” em Honneth. Em O Direito da Liberdade, Honneth busca desenvolver um modelo dinâmico de eticidade, com ênfase nas relações intersubjetivas e comunicativas da sociedade. Dessa forma sob o conceito de eticidade é esboçado um modelo das relações institucionais de liberdade que contenha uma teoria normativa nos padrões de uma teoria de reconhecimento. O conceito de eticidade apresentado nesta obra é que de ele é o sistema de normas de ação – não apenas juridicamente ancoradas, mas também institucionalmente harmonizadas, que possuam legitimidade moral.
Desse modo a esfera da eticidade democrática honnethiana significa a realização da liberdade social tanto na esfera institucional das relações pessoais, quanto na esfera institucional de ação nas economias de mercado e na esfera institucional de abertura política. Assim, a ideia da eticidade democrática tem por dada a democracia somente onde efetivamente se praticaram os princípios de liberdade institucionalizados nas diferentes esferas de ação e onde esses princípios estão sedimentados em práticas e costumes. Em outras palavras, entre as respectivas esferas temos a mesma relação de reciprocidade contributiva que em cada uma delas se produz entre as atividades especificadas pelo papel de cada um dos indivíduos, unidos em um “nós”. Afinal, conforme Honneth (2015, p. 632) ensina, o sistema social da eticidade democrática constitui uma complexa rede de dependências recíprocas, na qual a realização da liberdade social em uma esfera institucional – como o consumo, por exemplo – depende que nas outras esferas também sejam realizados os seus princípios de liberdade.
REFERÊNCIAS
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